Um grande legado
Odilla pretendia deixar de herança para Ribeirão Preto o universo criado em seu imaginário
É quase impossível não pensar em perfeição ao observar os trabalhos de Odilla Mestriner, com sua riqueza de detalhes. E, de certa forma, a palavra tem tudo a ver com o olhar crítico da artista em relação à própria obra, que a levava a produzir uma grande quantidade de esboços até que visse reproduzida a ideia exata de seu imaginário.
É uma amostra desse universo que Odilla pretendia deixar de herança para Ribeirão Preto quando idealizou um instituto onde todos pudessem se aventurar pelo mundo criado por ela e por outros artistas, ampliando conhecimento por meio de palestras, oficinas, mostras e outras iniciativas com a finalidade de divulgar a arte. O projeto também compreendia uma biblioteca sobre o tema.
Odilla morreu em fevereiro de 2009, mas seu sonho permaneceu. Da mesma forma que ocorria em sua infância, quando fazia com que seus irmãos interrompessem uma brincadeira e ficassem inertes, servindo como modelos para seus retratos, a família Mestriner se rendeu aos encantos dos traços daquela menina que, a despeito da atrofia nervosa que acometeu suas mãos na infância, empunhou o pincel para se contar. “O Instituto Odilla Mestriner é a realização do desejo de Odilla, que queria garantir o acesso às obras que gostava ou que foram premiadas nos salões nacionais e internacionais”, conta Bia Mestriner, sobrinha da artista e coordenadora do acervo de mais de 300 obras, escolhidas pela própria desenhista, que manteve para si trabalhos representativos de todas as fases de sua carreira, sob protestos de colecionadores e críticos.
Os primeiros passos rumo ao sonho de Odilla foram dados por seus irmãos, que se manterão à frente do Instituto até que seja eleito o primeiro presidente, e conseguiram envolver verdadeiros pesos-pesados no Conselho Curador da Instituição: Jacob Klintowitz, famoso crítico e curador de arte; Ricardo Resende, diretor do Centro Cultural São Paulo e ex-diretor da Funarte, no Rio de Janeiro; Carlos Alberto Dêgelo, advogado que muito contribuiu para as leis de incentivo à Cultura; Tadeu Chiarelli, diretor do Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC), além de outros nomes. Há três meses, com a inscrição no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), o Instituto passou a existir oficialmente.
O trabalho de catalogação está sendo realizado por Beatriz Prandi e Nayara Bessi, alunas do Curso de Ciências da Informação e Documentação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, sob orientação da doutora Giulia Crippa. “Também estamos realizando a catalogação externa, pois sabemos que há obras de Odilla na Bélgica, na Alemanha, nos Estados Unidos e nas maiores instituições do país, como a Pinacoteca e Museu Nacional de Belas Artes”, destaca Bia.
Com a oficialização do Instituto Odilla Mestriner, a luta da família e dos curadores do Conselho é conseguir um local adequado, que possibilite a exposição das obras e a realização das demais atividades a que ele se propõe. “Com o Instituto, o acervo de Odilla passa a ser da sociedade de Ribeirão Preto. Queremos, agora, unir forças para que ele se torne realidade”, afirma Maria Luiza.
Conforme Jacob Klintowitz, o Instituto é fundamental para organizar a obra, preservar, classificar, defender sua história, promover eventos e estudos sobre a obra e a vida de Odilla Mestriner. “Organizar a iconografia da artista, levantar o que existe e manter o arquivo atualizado. Trata-se de uma entidade cultural, sem fins lucrativos, que tratará da obra de Odilla”, explica o crítico de arte.
O diretor do Centro Cultural São Paulo, Ricardo Resende, argumenta que o Instituto é a garantia da permanência da obra de Odilla Mestriner. “Em uma sociedade contemporânea, marcada pelo excesso de informações e de imagens que nos levam a esquecer rapidamente nossos heróis, nossas tradições e nossos princípios, e que muitas vezes apaga nossa própria memória, uma iniciativa como esta, de levar adiante uma obra, é muito bem vinda”, enfatiza.
Paulo Sérgio Fabrino Ribeiro e Rogério Ruiz reuniram, em sua coleção, 66 obras das mais variadas fases da artista, material que originou um livro de sua autoria sobre Odilla, que já está aprovado pelo Ministério da Cultura e será publicado por meio da Lei Rouanet. Paulo Sérgio afirma que, além da importância do Instituto, Ribeirão Preto e região também serão beneficiados em outros segmentos. “O Instituto poderá se tornar uma referência cultural e turística, como é Portinari para Brodowski”, destaca.
Olhares sobre Odilla
Em sua rotina, Odilla destinava 12 horas ao desenho: começava às 8h e só saía do atelier à noite. Como define Maria Luiza, a artista era uma pessoa circunspecta, mas bem-humorada. “Odilla era disciplinada e tinha um nível de autoexigência muito alto”, conta.
Apesar desse jeito ensimesmado, sua obra sempre fez referência à comunicação e à coletividade. Segundo Maria Luiza, o hobby da artista era estudar em seu ateliê. Odilla convivia tranquilamente com as pessoas, mas melhor ainda consigo mesma. “A convivência que ela estabelecia não era tão profunda. Mas ela revelava seus anseios, frustrações e desejos por meio da pintura; dava-se muito bem com a solidão, ou seja, o que era considerado lazer pelas pessoas comuns, era perda de tempo para ela. Odilla costumava dizer ‘A minha melhor companhia sou eu mesma’”, conta Maria Luiza.
A presidenta do Instituto ressalta, ainda, que mesmo na produção de telas, Odilla usava pincéis muito finos, sempre priorizando o traço. “Seu desenho era muito elaborado, daí o fato de ela trabalhar muitas horas seguidas. A própria forma de expressão de Odilla exigia um trabalho minucioso”, explica Maria Luiza.
Sua afinidade com os pincéis começou na infância e, além da vocação precoce, foi influenciada por uma atrofia nervosa que afetou sua mãos. Após completar o primeiro grau passou a se dedicar às artes, tendo grande incentivo dos familiares.
A vocação ficou evidente quando a menina começou a desenhar o rosto de familiares, na adolescência. “Desde pequena, Odilla nos obrigava a posar para ela. Queríamos brincar, mas ela fazia com que ficássemos parados porque tinha descoberto um ângulo interessante”, ela conta.
Quando começou a se dedicar realmente ao desenho, passou a se autodenominar de “operária da arte”, tamanha a disciplina com que se lançava ao trabalho, característica que lhe rendeu, futuramente, críticas positivas. Klintowitz destaca que Odilla é “uma artista importante, de obra sedimentada, madura e com fases definidas”, qualidades que a transformam em uma das principais artistas da região. O crítico ressalta, também, que a obra de Odilla tem coerência, unidade e elevada qualidade estética. “Odilla é uma artista que tem uma visão de mundo e sua obra tem esta característica, a de expressar um estar e um ser no mundo. É uma obra que problematiza a relação homem-universo, fazendo, o tempo todo, um balanço da angústia humana diante da realidade, do homem confrontado com o seu destino”, define Klintowitz. O crítico acrescenta que a obra de Odilla possui poesia, lirismo, encantamento, mas não se resume a isso. “É também, e fortemente, uma obra que apresenta o espanto do homem diante do destino e de sua relação com a vida. E é deste espanto, a partir deste ponto, que o homem estrutura sua relação e medita sobre comportamento e ética. É um tesouro que a região tenha um artista desse porte e que, ao longo da vida, tenha permanecido na própria região, um grande patrimônio”.
Ricardo Resende acrescenta que Odilla permaneceu em Ribeirão Preto porque nunca se deixou seduzir por ofertas de fácil apelo. “A artista construiu da sua cidade interiorana uma carreira respeitável. Ela nos deu, com isso, uma lição, ao nos mostrar não ser necessário articular ou se atrelar a correntes contemporâneas em voga, ditatoriais na estilização das tendências artísticas, para desenvolver um trabalho sério, poético e pessoal”, afirma.
Odilla por Odilla
Uma das características da personalidade de Odilla Mestriner era justamente o fato de não gostar de falar de si. Ela costumava dizer que sua obra dizia tudo que tinha que ser dito a seu respeito: “Eu não tenho que falar de mim porque minha arte fala muito de mim; minha visão conceitual está nos meus trabalhos”, Odilla costumava dizer, conforme Maria Luiza. Em um depoimento escrito por ela em 2005, percebe-se claramente que falar de si para Odilla era falar sobre o seu trabalho: “...Meu trabalho se divide na dualidade emoção-razão. Caracteriza-se por uma estrutura rígida, austera, simétrica, fechada, conseqüências da minha maneira de ser e de viver. A temática se restringe ao meu universo vivencial: casas, pássaros, gatos, árvores, cidades. A trajetória do trabalho se faz à medida em que procuro sair de mim mesma para uma participação maior na busca de novos conhecimentos, informações, exposições, revistas e livros...”
Quem quiser conhecer um pouco mais sobre o instituto pode se informar pelo endereço
www.odillamestriner.com.br.
Conheça a música composta por Bia Mestriner em homenagem à tia Odilla: acesse
www.revide.com.br.
Texto: Carla Mimessi
Fotos: arquivo da família e Carolina Alves