Um homem de poesia e de prosa
Jose Aparecido da Silva entrevista o poeta e promotor aposentado Annibal Augusto Gama
Um homem das letras que descobriu ainda menino o encantamento e a magia que o mundo literário podia oferecer. Promotor aposentado e escritor por vocação, Annibal Augusto Gama revela um pouco das paixões e dos encantamentos que a vida proporcionou. Mineiro de Guaxupé, do alto dos 89 anos, mantém o humor e a paixão pela esposa Jaçanã, que faleceu. Radicado em Ribeirão Preto há mais de 40 anos, teve três filhos e, hoje, divide o tempo entre a paixão pelos livros, netos, bisnetos e Pichorro, um dengoso cachorro da raça Shih-Tzu, um fiel companheiro em todos os momentos do dia.
Além dos cinco livros publicados, escreveu dezenas de poesias, crônicas e mantém a escrita ativa com sua coluna semanal no jornal A Cidade. A literatura continua sendo a sua segunda maior paixão na vida, tanto que já prepara duas novas obras, entre elas “Damião, Damião”. Apesar de afirmar que está num período de pausa e de meditação, já reuniu cerca de 20 ou 30 rascunhos, “tudo ainda engavetado”, como revelou em entrevista ao amigo e professor José Aparecido da Silva.
José Aparecido: Para o poeta Carlos Drummond de Andrade, Itabira foi apenas uma lembrança, mas como dói. A saudade dos seus tempos em Minas Gerais também dói?
Annibal: Dói! Principalmente, a saudade da meninice, quando eu tinha entre 7 e 8 anos. Uma das passagens que recordo com carinho ocorreu quando eu era vizinho da minha mulher, Jaçanã. Morávamos na mesma rua, uma casa de frente para outra. Minha mãe comprou uma cadeirinha de palha e eu ficava sentado na varanda. Ela, com inveja, tentava tirar a minha cadeirinha. Essa briga durou até o dia que ela me arranhou e o pai dela comprou uma cadeirinha para ela. Jaçanã ficava sentada lá e eu, do lado da rua. Pouco tempo depois, fui morar na fazenda do meu pai, Asdrubal. Fiquei muito tempo fora, até que um dia, quando estudava em Franca, participei da maratona Euclidiana, em São José do Rio Pardo, onde fui até premiado. Depois da prova, dei um pulo na casa do tio Martiniano, em Guaxupé, Minas Gerais. Conversávamos bastante quando entrou na casa uma moça de uns 18 anos. A tia Brasilina perguntou se eu sabia quem era. Era a Nanã, apelido de infância da minha esposa. Começou, ali, tudo de novo e acabamos nos casando. Essa história representa muito na minha vida. Nos 57 anos de casados, ela foi uma companheira inolvidável! A sua ausência é dolorosa para mim, fico o dia inteiro pensando nela, tanto que, às vezes, quase chego a vê-la.
José Aparecido: Como foi sua carreira profissional em oito décadas?
Annibal: Casei antes de me formar, quando estava no quarto ano da Faculdade de Direito do Largo do São Francisco. Meu pai me ajudou nessa fase. As dificuldades eram muitas e cheguei a parar os estudos para trabalhar, mas voltei para concluir o curso. Advoguei por algum tempo e logo prestei concurso, passando para promotor. Naquela época, o candidato a uma vaga pública tinha que prestar duas provas: na primeira, passava, classificava e era nomeado promotor interino. Depois tinha que prestar um novo concurso para classificação final. Como promotor de Justiça, andei por 12 cidades do Estado de São Paulo, a começar por Santo André, São Joaquim da Barra, cidade em que nasceu meu terceiro filho e Ribeirão Preto. Voltei para São Paulo, onde me aposentei depois de 40 anos de promotoria.
José Aparecido: A Faculdade do Largo São Francisco sempre foi um berço de poetas criativos. Como você vê a literatura atual?
Annibal: Há 50 anos, a poesia era muito retrógrada. Já tinha acontecido a revolução de arte moderna com a Semana de 1922, que trouxe uma mudança literária muito grande, mas os poetas continuavam a fazer versinhos à moda de Castro Alves e de Fagundes Varela. Alguns da Faculdade já prenunciavam uma revolução da poesia, como o Mário Chamie, meu contemporâneo de curso. Ele iniciou mudanças e foi um dos fundadores do movimento da poesia-práxis.
José Aparecido: Quando começou a sua paixão pelas letras?
Annibal: Minha paixão começou cedo, aos seis anos. Eu mal sabia ler quando fui para a fazenda do meu pai, no Rio Pardo. Ele adorava ler muitos romances policiais. Depois repassava para mim, eu lia os livros sob a luz de lamparinas porque, na época, não havia energia elétrica na região. Comecei a ler obras do inglês Edgar Wallace, que considero meu tio. Ele é um romancista não ortodoxo da literatura policial, mas tinha uma imaginação terrível. Quando foi chamado para os Estados Unidos, em uma semana escreveu o script do filme King Kong, que virou um clássico do cinema. O Edgar era um sujeito apaixonante e dizia: “para o otimista, a cebola é da família dos lírios, e para o pessimistas, os lírios são da família da cebola.
José Aparecido: O que o motiva a escrever?
Annibal: Talvez sejam as lembranças, talvez a imaginação, mas principalmente, a leitura, que também é uma motivação para a escrita. Essas coisas entrelaçadas servem de motivação para escrever. Se eu não escrever ou não ler, eu não vivo.
José Aparecido: Algumas vezes, obra, personagem e autor se misturam. O que faz com que isso ocorra?
Annibal: Além da imaginação, é essencial a participação da vida na criação literária, pois sem ela, o autor extravasa e não reflete devidamente a realidade. Vivendo, conhecendo e conversando com as pessoas, você cria muitos tipos. Aliás, cada um de nós é um tipo, tem uma individualidade. Na vida, aprende-se com todo mundo, inclusive com os mais humildes que, às vezes, ensinam muito mais do que pessoas graduadas. Com isso, começamos a tirar tipos, não uma figura pura, da natureza ou da convivência social, mas de alguém que se mistura com outros para criar o personagem. Às vezes, um papel de segunda mão acaba dominando a trama.
José Aparecido: Há alguma obra sua na qual você se espelha mais?
Annibal: Na ficção, talvez o “Tiro pela Culatra” ou o “Manual para Aprendiz de Fantasma”; na poesia, “Herança Jacente”. O primeiro que eu lancei, “50 anos Falando Sozinho”, foi uma reunião de nove livros, um calhamaço com uma história muito curiosa: eu escrevia e ia amontoando, até que um dia Gilberto Kujawski andou lendo um poema meu e insistiu para que eu publicasse. Acabei concordando. Quando o livro foi lançado, minha mulher disse: assim como eu escrevi “Os 50 anos Falando Sozinho”, ela escreveria um livro intitulado “os 50 anos Dormindo Sozinha”, porque eu escrevia muito até de madrugada.
José Aparecido: A leitura pode ser algo interessante e eficaz num Brasil com dificuldade de ler e de interpretar?
Annibal: A leitura é educação, não só informação. Uma educação moral e também sentimental. Antigamente, não tínhamos muitas opções de lazer, ou era a leitura ou os passeios na praça, o footing. Hoje, o mundo oferece a tecnologia com um número tão exagerado de diversões que a leitura está sendo abandonada. No nosso tempo de escola, os professores obrigavam a leitura, principalmente os de português. Um aluno lia um trecho, passava para outro dar continuidade ao texto e depois interrogava-se sobre a interpretação do que havia sido lido. Com isso, desenvolvia-se o método e o processo da leitura que não se faz mais em sala de aula. As escolas brasileiras se degradaram de tal maneira que muitos alunos saem, inclusive da faculdade, sem saber ler ou interpretar corretamente.
José Aparecido: Você acredita que o livro no papel acaba um dia?
Annibal: O livro é um modelo fundamental que nunca desaparecerá. Pode ser que, com o tempo, fique restrito a uma confraria de leitores, a poucas pessoas, mas nunca desaparecerá.
José Aparecido: Que relação você estabelece entre o mundo de imagens da leitura e o das imagens da pintura?
Annibal: Nos livros de ensaios, como “Diamantes de Ofir”, há uma mensagem chamada de “a imagem e a decolagem”. Tudo o que vemos na vida, absorvemos como imagem. O mundo é uma imagem e para cada um de nós a mesma imagem pode ter várias formas. A imagem é uma representação que cada um tem da vida, do mundo ou das pessoas. Cada um de nós cria a imagem para a representação da realidade de acordo com o seu olhar.
José Aparecido: Em sua vida de escritor, quais os livros mais marcantes?
Annibal: Em primeiro lugar, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Dom Casmurro” e “O Ateneu”, mas há muitos outros. Estas obras são fundamentais, mas apesar disso, ninguém vive só com um livro. A leitura é sucessiva, uma reminiscência, uma absorção que se faz diariamente através de um livro ou de outro. Todo livro é um palimpsesto, um espaço onde o autor escreve o que outro já escreveu. A mudança ocorre apenas da época e do estilo de cada um.
José Aparecido: Como a mulher aparece nos seus livros e quadros?
Annibal: A mulher é sempre a inspiradora, é tudo na vida!
José Aparecido: O que é a vida, o futuro? Quais são os seus olhares para a vida?
Annibal: Esta pergunta é muito embaraçosa. Embora eu seja católico, mas não frequente a igreja, e tenha lido toda obra de São Tomás de Aquino e muitos livros de alta categoria, cada vez fico mais embaraçado para dizer o que é a vida. Você passa de filósofo a filósofo e cada um diz algo diferente. Um, por exemplo, dizia com bons argumentos que não existia o principio da casualidade.
José Aparecido: Você tem de memória um pequeno poema para finalizar?
Annibal: De memória, só poema curto, um deles diz o seguinte: “de todas as coisas que eu vi e nas quais acreditei, as únicas verdadeiras são aquelas em que não cri.”