
Uma boa prosa mineira
Marcos Felipe de Sá conta detalhes de sua rotina de trabalho, lembra da infância e revela suas preciosidades de hoje
Professor Titular da USP, superintendente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP-RP, presidente da Fundação de Pesquisas Médicas de Ribeirão Preto (FUPEME), presidente do Conselho Curador da Fundação Hemocentro de Ribeirão Preto e membro de instituições nacionais e internacionais ligadas à pesquisa e ao ensino das ciências médicas, Marcos Felipe Silva de Sá dispensou mais de duas horas de um de seus dias atribulados de trabalho para receber a jornalista Rose Rubini. Como um autêntico mineiro, o guaxupeano contou em detalhes a rotina de trabalho, algumas lembranças da infância e as paixões dos dias atuais. A prosa foi acompanhada pela jornalista Máisa Valochi.
Rose: Como surgiu a sua relação com Ribeirão Preto?
Marcos Felipe: O meu sonho era fazer faculdade de Medicina em Ribeirão Preto. Aqui, tinha o Colégio Otoniel Motta, que era muito conhecido. Então, fiz um vestibulinho e vim fazer o Colegial na cidade. Na minha classe no Otoniel Motta, éramos em 27 alunos e 25 passaram no vestibular sem cursinho.
R: Por que optou pela Medicina?
M: Desde menino optei pela Medicina. Morava em frente a uma casa de saúde e lá tinham dois irmãos médicos, Antônio dos Santos Coragem e Dolor dos Santos Coragem, que exerciam a Medicina com dedicação, em tempo integral. Eles examinavam, medicavam, esperavam fazer o efeito, examinavam novamente. Faziam todo o acompanhamento do paciente. Esta foi a grande motivação que eu tive.
R: Como aconteceu a escolha pela Ginecologia e Obstetrícia?
M: Quando era estudante de Medicina, eu me envolvi com uma liga estudantil que dava cursos para normalistas. Nesses cursos, eu falava muito de Ginecologia. Ensinava sobre gestação, pregava a pílula anticoncepcional e a prevenção de câncer ginecológico. Acabei me identificando com a área e fui muito bem acolhido. Fui monitor do departamento durante dois anos e fiz residência em Ginecologia e Obstetrícia. Durante a residência, já era muito entrosado no departamento e acabei ficando. Depois, veio a pós-graduação e fui convidado a ficar no departamento. Então, montei o Serviço de Endocrinologia Ginecológica, que, mais tarde, virou o serviço de Reprodução Humana.
R: Como está o Serviço de Reprodução hoje?
M: Hoje, o nosso Serviço de Reprodução tem projeção internacional. Já formamos muitos professores na área, que estão espalhados pelo Brasil. Eu sou membro do corpo editorial da principal revista de reprodução do mundo, a Fertility and Sterility, que é americana. Através dela, mantemos intercâmbio com várias universidades internacionais.
R: Como o senhor se organiza dirigindo o Hospital das Clínicas, mantendo uma vida acadêmica ativa e o laboratório?
M: Eu chego aqui às 8h, às vezes mais cedo, e à noite trabalho em casa, corrigindo textos, teses, trabalhos e preparando aula. No Departamento de Ginecologia e Obstetrícia, hoje, tenho poucas funções acadêmicas, mas mantenho meus vínculos na pós-graduação. Minha vida está muito ligada a este lugar. Eu fui da primeira turma de pós-graduandos da faculdade, em 1971. Fiz residência médica no Hospital das Clínicas, mestrado e doutorado na Faculdade de Medicina da USP. Depois, fiz minha livre-docência e fui para os Estados Unidos. Realizei meu pós-doc na Faculdade da Califórnia, em San Diego, entre 1979 e 1980. Em 1988, fiquei uma temporada na Universidade de Valência, na Espanha, no Serviço de Reprodução Humana.
R: O senhor chegou a clinicar?
M: Nunca tive clínica particular. A Faculdade de Medicina tem uma clínica civil que oferece a possibilidade de atender pacientes pagantes dentro do HC. A lei que criou a Faculdade de Medicina previu que os docentes em tempo integral podiam fazer esse tipo de atendimento. E isso foi o grande ponto forte desta Faculdade para fixar o corpo docente em tempo integral. O contato do aluno com o corpo docente é muito próximo, permanente. Quem organizou essa clínica fui eu, quando diretor da Fundação de Apoio ao Ensino Pesquisa e Assistência (FAEPA), criada no modelo da universidade onde estagiei nos Estados Unidos. A vantagem é a fixação do docente porque ele tem uma receita adicional ao salário e é uma boa fonte de renda do HC.
R: Quais são os principais desafios da sua administração?
M: O que mata a população adulta hoje são as doenças cardiovasculares, o câncer e as causas externas (acidentes de veículos, homicídios e outras tragédias). Temos que nos preparar para isso. O atendimento da cardiologia já foi ampliado. A unidade coronariana será triplicada e já está em obras. Na emergência, os leitos na unidade coronariana também serão aumentados. Nos espaços que serão desocupados pelas crianças, com a construção do HC Criança, será implantada uma CTI de 40 leitos. Esse é o maior desafio: criar essas unidades estratégicas para o SUS. Inclusive, as prioridades do governo federal, que coincidem com as do governo do estado, são as emergências médicas.
R: Algum dos seus filhos seguiu o seu caminho?
M: A minha esposa, Marina, também é médica. A especialidade dela é a Oftalmologia. Nossa filha mais velha, Ana Carolina, formou-se em Medicina, fez residência médica e pós-graduação em Ginecologia e Obstetrícia, na área de Reprodução Humana aqui na Faculdade de Medicina da USP, em Ribeirão Preto, e pós-doutorado na Espanha, em Valência. Atualmente, trabalha no Departamento de Ginecologia e Obstetrícia, no Laboratório de Reprodução. Já orienta alunos de pós-graduação e tem vários trabalhos de pesquisa premiados e publicados no exterior. Os outros dois filhos são engenheiros, formados na Escola Politécnica da USP.
R: Nas horas vagas, o que o senhor gosta de fazer?
M: Eu tenho um sítio em Minas, chamado São Francisco, meu santo protetor. Ele é um exemplo de desprendimento, abnegação. Lá no sítio, eu reúno a minha família. Tenho dois filhos que moram em São Paulo e uma filha que mora aqui, além dos parentes do meu pai e da minha mãe. O ponto de encontro da família é lá. Eu me escondo no sítio nos fins de semana. Como gosto de jogar tênis, todo ano realizo um torneio, no sábado mais próximo ao dia de São Francisco, 4 de outubro. Tem o campeonato, com medalhas, taça, uma festa no final. É muito bom. Além disso, gosto de cinema e de futebol. Sou fanático pelo São Paulo.
R: Ficou bravo com o resultado no último campeonato?
M: Muito bravo. Futebol me tira do sério. Fiquei “de mal” do time há um tempo, depois voltei a assistir. Agora estou em paz com o São Paulo. Na minha família, todos são são-paulinos: esposa, filhos, filha, genro, noras e netos. Tenho três netos e o quarto chega em abril. Estamos programando o batismo dos meninos no Morumbi. Aqui em Ribeirão Preto, sou comercialino, mas já fui muito mais torcedor. Nesta temporada, meu palpite é que o Corinthians será o campeão.
R: Quando está em Minas, quais são as suas atividades por lá?
M: Acordo um pouco mais tarde, caminho pela lavoura de café, leio, descanso bem, jogo tênis, frequento o clube e tomo uma cervejinha com os amigos. Ali na mesa do clube estão as minhas fontes para o jornal, que fecha toda quinta à noite. Na sexta, ele já está nas bancas.
R: Em que momento o jornal surgiu na sua vida?
M: O jornal Folha do Povo foi fundado pelo meu pai, há 74 anos. Eu era menino e me lembro que ele fazia tipo por tipo e tinha um funcionário que imprimia. Depois, passou a ser linotipo e, agora, é tudo informatizado. O jornal nunca foi fonte de receita da família. O meu pai foi professor, diretor da Faculdade de Filosofia de Guaxupé. O jornal era o hobby dele. Quando ele ficou doente, pediu para darmos continuidade. Somos em cinco irmãos e nenhum mora na cidade. Em 1985, quando ele morreu, eu escrevia o jornal aqui e entregava na rodoviária o pacote ao motorista como encomenda. Hoje, tem jornalista, diagramador e eu faço o editorial, tenho meus informantes, minhas fontes. São cerca de 1.200 exemplares. É um jornal para servir a cidade.
R: Que tipo de leitura o senhor prefere?
M: Gosto muito de leitura, particularmente de romances, livros da história antiga e contemporânea, e biografias de grandes personagens. No momento, estou lendo “Breve história do cristianismo” e “Equador”.
R: Quais as lembranças mais marcantes da sua infância?
M: Só tenho boas lembranças. Sou filho de professores, com uma família grande, de muitos amigos. Meus pais, Sebastião de Sá e Isabel Silva de Sá, eram religiosos, bastante rigorosos. O meu pai era comendador da Igreja Católica, o comendador Sá, como era conhecido. Eles sempre me apoiaram na escolha profissional e se sentiram realizados com a minha conquista. Nunca pensei em fazer outra coisa que não fosse a Medicina.
Um feliz reencontro
“Apaixonada por ciências e tecnologias e curiosa por natureza, conhecer um pouco do dia a dia do Hospital das Clínicas foi um dos privilégios jornalísticos que vivenciei desde que cheguei à cidade, em 2003. Ao reencontrar o superintendente Marcos Felipe em sua segunda gestão no HC, fiquei feliz ao ver que muitos dos seus projetos, criados entre 1995 e 2003, foram implantados com sucesso e com ótimos resultados para a administração do Hospital, para o corpo clínico e para milhares de pacientes vindos de todo o território nacional. Com a tranquilidade e a persistência de um bom mineiro, Marcos Felipe mantém sob sua coordenação uma instituição com números de fazer inveja a muitas cidades da região. São mais de sete mil pessoas, entre médicos, docentes, residentes, enfermeiros e pessoal de apoio que lutam 24 horas por dia para salvar vidas. Visionário e de personalidade cativante, por meio do diálogo e da integração, Marcos Felipe mostra que, por mais que se faça, ainda há muito a fazer para resgatar a verdadeira essência da Medicina Pública, com gestão eficiente e melhor aplicação dos recursos públicos para elevar o acesso da população à Medicina de ponta.”
Rose Rubini, jornalista
Fotos: Carolina Alves