Uma doença, muitas manifestações

Uma doença, muitas manifestações

O lúpus é a terceira e última abordada na série sobre o Fevereiro Roxo, campanha que visa conscientizar também sobre Alzheimer e fibromialgia

Doença inflamatória crônica de origem autoimune, o lúpus tem diagnóstico, sintomas e tratamento difíceis tanto para o médico quanto para o paciente e pode se manifestar de formas diferentes, sendo a mais comum o eritematoso sistêmico. Segundo estudos, é uma das mais graves entre as mais de 80 doenças autoimunes conhecidas e a principal causa de internação entre as reumáticas. No Brasil são cerca de 65 mil, segundo a Sociedade Brasileira de Reumatologia. A maior incidência está na faixa etária entre 20 e 45 anos e entre mulheres.


Ribeirão Preto possui, no Ambulatório de Lúpus do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – campus USP, a maior amostra de acometidos pela doença do Brasil, de acordo com o reumatologista Flávio Calil Petean, professor assistente da especialidade. “Porque se trata de um hospital de referência nacional no tratamento do lúpus, onde os médicos especialistas lidam com a doença todos os dias, em grande escala. Mais de 100 pessoas são atendidas por semana. Desse total, em média seis são casos novos”, afirma.


O reumatologista Flávio Calil Petean: ‘hoje o tratamento do lúpus é muito rico’

 

A forma de apresentação do lúpus, de acordo com Petean, é muito variada. “Há manifestações que podem ir do fio de cabelo à unha do pé. A pessoa pode ter uma crise convulsiva, um surto psicótico ou epilepsia como primeira manifestação e assim por diante”, diz ele. Porém, 80% dos pacientes apresentam quadro cutâneo – lesões de pele classicamente localizadas na região do nariz e acima da boca, e de fotossensibilidade, quando áreas expostas ao sol ficam com lesões avermelhadas, ardência e até feridas. Quadro de dores nas articulações corresponde a 5% dos pacientes.
 

DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO


De acordo com o reumatologista Carlos Faria, o diagnóstico precoce, defendido na campanha Fevereiro Roxo, faz diferença no tratamento do lúpus porque evita lesões de órgãos irreversíveis. Para o diagnóstico utiliza-se critérios estabelecidos pela European League Against Rheumatism (EULAR) juntamente com o American College of Rheumatology (ACR), de 2019. Neles há contagem de sinais, sintomas e alterações em exames laboratoriais para se estabelecer o diagnóstico de lúpus. Entre os critérios internacionais de diagnóstico Petean relaciona manifestações da pele, articulações, renais, cardíacas e pulmonares, além de lesões da boca, e explica que é tanto clínico quanto laboratorial – ou seja, dado a partir dos sintomas do paciente com base na experiência do médico, mas com suporte de exames. Os primeiros pedidos são os tradicionais hemogramas, que dão pistas importantes, como de anemia, baixa de glóbulos brancos e dos linfócitos das plaquetas; e de urina, que acusa algum acometimento renal. 



O reumatologista Carlos Faria: diagnóstico precoce faz diferença

 

O diagnóstico pode ser fechado por neurologista, nefrologista, dermatologista, infectologista, ortopedista ou qualquer outro especialista que tenha iniciado a pesquisa dos sintomas, uma vez que a doença pode comprometer diferentes órgãos, como nervos, rins, pele e articulações, além de poder apresentar febre de causa indefinida. Após confirmado, o reumatologista assume o tratamento, que para Petean é “como construir uma casa” cujo alicerce corresponde às orientações sobre proteção solar, cuidados com alimentação, controle de colesterol, triglicérides, diabetes e tireoide, além da administração de medicamentos. O primeiro prescrito é a Cloroquina – aquela mesma sobre a qual você ouviu tanto falar durante a pandemia de coronavírus. Depois, vêm os corticoides, imunossupressores e novas drogas chamadas imunobiológicas.  “Hoje, o tratamento do lúpus é muito rico. Importante ressaltar que nenhum é igual ao outro. Cada paciente requer uma combinação diferente, mas as orientações sobre sol, alimentação, sal e Cloroquina é comum a todos, sem exceção”, comenta Petean.
 

SEQUELAS E RISCO


O lúpus pode deixar todo tipo de sequelas: neurológicas, pulmonares, cardíacas, de pele, perda de visão e amputações de membros, sendo a insuficiência renal a mais temida. Segundo Petean, não dá para prever qual paciente terá e quais, pois a evolução é diferente em cada caso. “Quando a gente vê o perfil de como a doença começou e os exames laboratoriais, conseguimos ter ideia sobre se o paciente vai evoluir bem ou mal. Se ele não fizer o que a gente manda, isso influenciará a ocorrência de sequelas”, afirma o reumatologista.


Ainda de acordo com ele, pacientes com manifestações mais graves podem desenvolver depressão, ansiedade, entre outros transtornos de saúde mental, desencadeados pelo estresse causado pelos sintomas ou de saber que a doença pode ser fatal. O médico frisa, porém, que a evolução para óbito é mínima atualmente. “Existem, sim, casos que, infelizmente, não respondem a nenhum tratamento, mas equivalem a uma minoria ínfima. No HC, a maioria das mortes por lúpus é por culpa do paciente que não seguiu as regras do jogo. Mas há os casos que evoluem muito bem e as pessoas vivem bem”, garante.


O profissional também desmistifica a crença de que lúpus não tem cura. “Tenho o exemplo da minha irmã, que teve a doença, seguiu o tratamento direitinho e hoje está curada. Mas não é isso que prometemos aos pacientes. Nosso foco é oferecer e garantir controle da doença, remissão e vida normal” conclui.


Crise paralisa rins de jovem


Um alerta específico de Petean vai para meninas que, a partir da menstruação, apresentem alguma alteração de pele não habitual ou dores articulares. “A mulher é infinitamente mais propensa à ocorrência do lúpus em função de suas questões hormonais”, diz.

No caso de Lívia Souza Santos, estudante de Direito de 20 anos que faz controle da doença desde os 18, o primeiro sintoma notado foi queda de cabelo. Quando procurou um médico do SUS (Sistema Único de Saúde) na cidade de São José do Rio Preto, onde morava com o namorado, o sintoma foi atribuído a uma anemia decorrente do fato de ter amamentado a filha, que teve aos 15 anos de idade. Dois meses depois, apareceram manchas em seu rosto e ela buscou nova consulta. “Disseram que era pelo fato de eu ser branquinha e tomar muito sol e indicaram uso de protetor solar”, lembra. 


Em seguida, as pernas de Lívia começaram a inchar e apresentar feridas, que também apareceram na boca. Desta vez, quem a atendeu em um Pronto Atendimento lhe instruiu a beber água e bar banho de iodo nas pernas. Mas duas semanas depois de iniciar esse tratamento ela começou a sentir muita dor nas articulações e sono incontrolável o dia todo. “Naquela altura eu havia me mudado de volta para Ribeirão Preto [sua cidade natal]. Aqui fui a uma Unidade Básica de Saúde, onde o médico pediu exames que acusaram lúpus”, narra. 


Já com muito sangramento e anemia, Lívia foi encaminhada à Unidade de Emergência do Hospital das Clínicas, localizada no Centro da cidade, onde seu primeiro contato foi com o reumatologista Carlos Faria. Foi ele quem determinou sua internação na UTI (Unidade de Terapia Intensiva). “Ela quase perdeu os rins”, lembra o médico.


“Precisei fazer hemodiálise por três meses”, conta a jovem. Ela lembra ainda que a neurologia e a nefrologia demoraram para encaixar o remédio certo para controle de sua pressão arterial. “Foi desesperador no começo. Eu chegava em casa, tinha convulsão e voltava para o hospital. Minha família ficou apavorada. Perdi a visão de um olho. Do esquerdo enxergo bem pouco”, relata.


Demorou quatro meses para Lívia sair da crise e seus rins voltarem a funcionar. Ela não tem dúvidas de que, se tivesse sido diagnosticada na primeira vez que buscou atendimento médico, teria sofrido bem menos. O reumatologista Carlos Faria, no entanto, não tem certeza se o diagnóstico mais cedo teria evitado tudo o que se seguiu no caso dela. “Há muitas variáveis. De qualquer forma é preciso ficar muito atento aos sintomas”, frisa.
Resiliente, Lívia está melhor hoje e segue à risca as regras de convívio com a doença, que consistem em tomar corretamente as medicações para os rins e o controle da pressão, evitar exposição ao sol mesmo com protetor solar e retornar ao médico – segue acompanhada por Faria – de seis em seis meses. Graças a isso os sintomas se mantêm sob controle, possibilitando-lhe uma qualidade de vida razoável. “Uma vez ou outra não acordo muito bem, tenho dores nas articulações ou aparecem roxos na minha pele do nada. Mas, no geral, fazendo tudo certinho, levo vida normal”, conclui. 


Fotos: Arquivo Pessoal

Compartilhar: