Uma leitora de mundos
A psicóloga Josmara Molina entrevista a sua admiradora, a professora Marisa Giannecchini
Em um país em que apenas uma parcela da população tem acesso ao Ensino Superior e pouco se lê, uma professora com graduação em Letras Românicas e em Grego pela Universidade Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), com mestrado e doutorado em Estudos Literários e diversas especializações, poderia se dar por satisfeita e até vestir o salto alto, que lhe cairia muito bem. Este, porém, não é o caso da professora Marisa Giannecchini Gonçalves de Souza, que, apesar do extenso currículo e da ampla experiência na educação, mostra paixão por cada trabalho realizado, especialmente porque dão continuidade à construção do seu próprio conhecimento e de seus alunos.
Os estudantes que hoje a acompanham já fazem parte da segunda geração de alunos da professora, que prefere avaliar que não ensina literatura, gramática ou ortografia em suas aulas de português, mas, sim, a pensar. Ex-aluna de Marisa, a empresária Josmara Molina afirma que foi isso mesmo que aprendeu no antigo ginásio cursado na Escola Estadual de Primeiro Grau Alcides Correa, quando acompanhou as aulas da professora por quatro anos. Na conversa com a ex-professora, Josmara resgata a trajetória de Marisa.
Josmara: Como surgiu seu interesse pelas salas de aula?
Marisa: O começo da minha vida educacional ocorreu como um forte desejo de dar aulas. Ainda pequena, inventava uma sala de aula, colocava as carteiras vazias à minha frente e ensinava alunos fantasticamente presentes. Para isso, utilizava os livros de física e de matemática dos meus irmãos, mais velhos e já no colegial, cujos códigos eu não conhecia, mas pelos quais tinha grande encantamento. Talvez se eu tivesse feito um teste vocacional, teriam me encaminhado para as exatas, pois adoro matemática. Para mim, a preferência também está ligada à experiência vivida e à relação com o professor. Aos 13 anos, ainda em Olímpia, minha cidade natal, 22 alunos ficaram de recuperação em matemática e fui designada para ensiná-los. Guardo um gosto imenso por ter aprovado 21, mas também tenho muita tristeza pelo aluno que não conseguiu passar e foi humilhado pelo pai, frente a todos, pelo fracasso. O momento ficou na memória.
Josmara: Por que, então, seguiu pelo caminho das Letras?
Marisa: Apesar de pensar matematicamente e ver similaridade entre a matemática e a poesia, segui a direção apontada pelo meu pai, uma pessoa muito amorosa, mas que achava que, naquele tempo, as duas filhas deviam estudar Letras. Portanto, fui para as Letras, que inicialmente pareciam não ter nada a ver comigo. Como eu gostava de estudar, passei bem pela universidade, onde escolhi as línguas derivadas do latim, e me centrei no francês. Aos 21 anos, recém-formada, tornei-me professora universitária e dava aulas para estudantes do 3º e 4º anos. Morria de medo daqueles alunos, aos quais eu ensinava em francês. Assustei-me porque sabia que ainda não conhecia a realidade, acreditava que aqueles estudantes mereciam estar com um professor mais qualificado. Decidi, então, prestar um concurso e me tornei professora de português da escola pública. Na mesma época, meu marido foi transferido para a região de Ribeirão Preto e escolhi trocar a universidade pelas aulas para crianças. Naquele momento, sabia que deveria direcionar meus esforços para a base. Aos 28 anos, vim para Ribeirão Preto e passei os 12 anos seguintes lecionando no Alcides Correa. Lá, aprendi a aprender.
Josmara: A troca da universidade para as salas de aula do Ensino Fundamental foi válida?
Marisa: Sem dúvida tomei a melhor decisão da minha vida. Ao sair da universidade, tinha algumas estratégias para ensinar, mas o que acontece no dia a dia é bem diferente. Na escola, meus erros podiam ser corrigidos no ano seguinte. Montava um programa, achava que daria certo, mas muitas vezes os alunos não demonstravam interesse. No outro ano, eu já mudava a sistemática completamente, pois passaria quatro anos com aquela turma. Para isso, pus-me a ler e senti necessidade de buscar as origens. Naquele momento, irritava um pouco ouvir que tudo vinha dos gregos — a Filosofia, a Medicina, a Política, o Teatro e outros. Já fazia planos para minha aposentadoria: estudaria grego. Mas não precisei esperar tanto, pois a Unesp de Araraquara abriu o curso de Grego. Mesmo trabalhando em Ribeirão Preto e fazendo especialização em Araraquara, decidi ingressar na graduação regular de grego.
Josmara: Qual foi a sensação de voltar para a universidade na condição de aluna?
Marisa: Quando fiz a primeira faculdade, vinha de uma cidade pequena, de horizontes menores, qualitativamente consistentes, mas me faltava um olhar para o mundo. Era estudiosa, mas não tinha grande abertura. Na primeira graduação, tive professores, por exemplo, que eram amigos particulares de Fernando Pessoa e como eu tinha medo daqueles homens! Levei muito tempo para entendê-los. Já a segunda faculdade foi uma bênção. Qualquer coisa que se faça pela segunda vez, e que daquilo já não depende seu ingresso no mercado de trabalho, faz-se pelo prazer. Fiquei apaixonada pelo curso de grego.
Josmara: Que lições aprendeu durante sua experiência como professora no início da carreira?
Marisa: Descobri que a educação funciona, também, fora da sala de aula. Se você cria um vínculo com o aluno e propõe atividades diferentes, eles embarcam. Fazíamos gincanas e outras ações tendo a literatura como pano de fundo. Pensava que, mesmo que os alunos não estivessem interessados nos livros clássicos, no futuro eles acessariam aquele conhecimento, de alguma maneira, em outro momento. Acredito que o professor não pode buscar resultados imediatos, é preciso fazer e deixar a vida andar. Nunca acreditei, também, que o aluno se indispusesse comigo por uma questão pessoal. Os jovens vivem uma fase de constantes questionamentos e é natural que se perguntem por que precisam estudar determinados conteúdos. Acho isso bonito, pois só se pode saber escolher quando já existe um aprendizado. Para saber nadar, é preciso, um dia, ter sido posto na água. Perguntando, o aluno começa a descobrir o que faz sentido para ele.
Josmara: O que a levou de volta à universidade como professora?
Marisa: Depois que terminei o curso de grego, completamente apaixonada, tornei-me uma figura fácil na universidade. Veio, então, o convite para prestar a docência em grego e minha orientadora insistiu para que eu fizesse a prova. Como sempre gostei de desafios, aproveitei os 12 dias restantes para me preparar. Enquanto era o desafio, não havia uma escolha feita. Mas tudo o que poderia dar errado naquela prova, deu certo. Sorteei um dos poucos textos que havia preparado e arrasei. Na entrevista, decidi que não mentiria em nenhum aspecto: se sabia, respondia, se não sabia, era honesta. Falei mais não do que sim, mas ganhei a banca pela coragem de assumir meu desconhecimento. Aprovada, chorei por um mês! Não queria deixar os meninos do Alcides, mas tinha muita vontade de fazer um mestrado e um doutorado. Esta acabou sendo minha escolha e me tornei professora universitária de grego.
Josmara: Esse retorno foi positivo?
Marisa: Se eu não tivesse estudado grego, talvez não tivesse trabalho hoje. Ser formada em grego antigo, com mestrado e doutorado em semiótica, abriram muitas portas. Além disso, o grego me deu um tempo histórico diferenciado. Na Filosofia, por exemplo, os pensadores que sucederam os gregos fizeram, na verdade, uma releitura do que já havia sido analisado. A todo momento, retomamos pensamentos históricos. Isso dá muito orgulho. Num encontro na universidade, alguém me disse que havia estado na “minha terrinha”. Pensei em várias possibilidades, como Olímpia, Araraquara, Ribeirão Preto e outros lugares. Mas a resposta me surpreendeu. Ela me disse: “estive na Grécia”.
Josmara: Quando você atuava na escola pública, e eu era sua aluna, a qualidade do ensino era outra. Hoje, sabemos que a realidade mudou. O que aconteceu?
Marisa: Com 22 anos, eu era uma professora concursada. Se eu não tivesse feito mais nada, já teria um direito adquirido. Isso é péssimo para o ser humano. Claro que a estabilidade é importante, mas é preciso criar um plano de carreira e outras formas de estimular o professor. Pouquíssimas pessoas escolhem o ensino como carreira hoje porque não há perspectivas. Acredito que nem seja apenas uma questão salarial, que deve ser melhorada na mesma medida da cobrança pelo desempenho. Para mim, ser professor é uma atitude. Apesar de socialista no sentido de desejar uma sociedade mais justa para todos, gosto dos mecanismos da empresa privada, nesse caso, com estímulo à produção e à diferenciação individual, promovendo o critério de mérito, com oportunidades desde a base da escolaridade.
Josmara: Diante da falta de qualidade no ensino público, acredita que as cotas para ingressar nas universidades públicas resolvem?
Marisa: Penso que a escola tem que ser democrática, mas não concordo com os mecanismos do Estado. Tem um pensador italiano, Gramsci, que diz: “dê ao povo o direito de entender todos os discursos e estará fundada a democracia”. Se a pessoa sabe ler, escrever e tem competência discursiva, encontrará o seu caminho. Sinto muito que a cota exista no formato atual. Se me convencerem de que a curto prazo será assim, mas que a médio e longo prazos as questões de educação no país serão resolvidas, aceito esse primeiro momento. Mas se essa solução for única e permanente, acho péssimo. Acompanho muitos alunos que se desestimulam diante desse quadro e tento olhar os dois lados da questão. Ser contra cotas parece uma posição elitista, mas sempre dei aulas na escola pública, a meninos cujos pais não sabiam sequer ler e, mesmo assim, foram capazes de se desenvolver. O que precisamos é resgatar outro nível educacional. Tem muito a ser feito, mas é possível.
Josmara: Fiquei feliz quando meu filho mais velho disse que teria aulas com você. Como é ensinar duas gerações: há muita diferença entre os alunos do início da sua trajetória para os estudantes de hoje?
Marisa: Sinceramente, não vejo muita diferença entre as gerações. O público com o qual convivo se descobre aos poucos. Quando o aluno não se envolve é porque eu ainda não descobri como fazê-lo interagir. O garoto de 15 anos realmente não está muito interessado em estudar ou ler autores clássicos ou contemporâneos que têm qualidade de produção. Mas quando se é jovem, há pouca preocupação na vida, portanto, é a hora de aprender. Para isso, é preciso se apaixonar, o que, às vezes, demora um pouco, mas não é nada pessoal. O professor precisa ter dentro dele a verdade que busca. A minha é: não quero que meu aluno seja o maior; quero que, de onde ele saiu até onde chegar na minha mão, tenha havido uma evolução. Preparo meus alunos para escrever bem, serem capazes de uma produção que responda a uma pergunta com clareza pela vida afora. Não sou uma professora pré-vestibular.
Josmara: Mas hoje os jovens são muito ligados à internet. Essa conectividade ajuda ou atrapalha na formação dos estudantes?
Marisa: Acho que os jovens podem ser sujeitos de várias linguagens. Estudando semiótica, aprendemos que tudo é linguagem, inclusive o silêncio. Mas é preciso deixar claro que esse código deve ser adequado à demanda. É natural que o aluno, entre amigos, escreva de outra maneira, não vejo problema. Mas ele precisa saber que quando estiver escrevendo uma redação ou respondendo uma questão discursiva, precisa usar outra modalidade discursiva. Também dou aulas de Atualidades, criadas para dar um panorama geral do Brasil e do mundo para os meninos que não têm o hábito de ler jornal e não estão estimulados pelo contexto das notícias. Separo algumas notícias durante a semana, apresento uma parte oralmente e outra, lemos juntos. Nessas aulas, permito o uso do celular e eles pesquisam as informações que não sei. A escola hoje precisa dessa interação. Mas esta não é uma regra para todas as disciplinas, a toda hora. Quando estamos em outras aulas, eles respeitam.
Josmara: O acesso facilitado à informação é positivo?
Marisa: Para mim, uma pessoa culta é aquela que tem disposição para aprender e sabe onde buscar o conhecimento. As pessoas não precisam se preocupar em saber tudo, em ler todos os livros, em ver todos os filmes. É bom deixar espaço para aquilo que não se sabe. É mais importante concentrar-se em fazer aquilo que se faz bem feito do que tentar saber todas as coisas, o que é sempre ilusório. Precisamos ter uma reserva de potencialidade. Se tivesse tempo, faria muito mais. Mas não cabe, então, fique sem. Precisamos tentar viver com mais intensidade aquilo que fazemos.
Josmara: No Centro Cultural Evohé, como conduz seu trabalho?
Marisa: O público que vem para cá chega por indicação, formando uma rede. Meu trabalho é com leitura e produção de textos com alunos a partir de 13 anos até adultos. Mas para escrever, é preciso ter repertório. Por isso, a leitura é a base do nosso trabalho — não a quantidade, mas a profundidade. Por isso, a gramática e a norma culta estão entre nossos focos. Aqui, ele aprende textos mais elaborados, não apenas da literatura. Temos alunos que fundamentalmente buscam uma familiaridade com a linguagem escrita. Aqui, ele fica o tempo que quiser, até que crie o hábito de escrever continuamente e possa levar isso para a vida inteira. Entre os adultos, trabalho muito com psicólogos, psiquiatras e psicanalistas que querem estudar os mitos gregos. Tenho também grupo de semiótica.
Josmara: Dá tempo para se dedicar, também, à universidade?
Marisa: Na UNESP, faço parte do Caderno de Semiótica Aplicada (CASA). Publicamos e traduzimos livros, participamos de eventos, vamos a congressos dentro e fora do Brasil. Se ficarmos em Ribeirão Preto achando que o mundo se restringe à cidade, não veremos a vida acontecer. Nunca estamos prontos. Para mim, o conhecimento é uma constante construção. Sabemos muito pouco e não podemos fazer nada sozinhos.
Josmara: Quais são seus planos para o futuro?
Marisa: Amanhã, muito do que eu digo pode mudar. Não domino a verdade, sou uma leitora de mundos. Quero continuar lendo o mundo e ensinando as pessoas o valor da simbolização. Como fazer isso? Não sei, mas alguma coisa eu farei. Se não sonhamos, não há continuidade. Pretendo reformular meu trabalho até aqui. Na Universidade, estamos com o projeto de um livro e participarei de um trabalho da Secretaria da Educação de formulação de vídeos para o Ensino a Distância. Só me envolverei com aquilo que puder mudar o modo de ser da minha alma e dos outros. Quero ajudar a transformar o mundo à minha volta. Também estou em um projeto de urbanização. Junto com um grupo de pessoas, vou trabalhar em uma praça, colocá-la em funcionamento e cuidar de sua limpeza e manutenção. Sonho com o dia em que estarei sentada no banco dessa praça lendo um livro. Tenho que viver para ver isso acontecer. Para finalizar, gostaria de deixar uma pensamento de Guimarães Rosa que reflete aquilo que penso sobre a educação e a vida: “Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.”
Marca de aprendizado
“Conheci a Marisa aos 10 anos, quando estava no que seria hoje o 6º ano do Ensino Fundamental. Ela foi minha professora de português durante os quatro anos seguintes, mas o que ela me ensinou não foi apenas gramática e ortografia. Foi com a Marisa que conheci o prazer pela leitura. Foi ela, também, quem despertou minha curiosidade para as mais variadas questões do mundo. Além disso, Marisa me ensinou, muito cedo, a lutar pelos meus objetivos.”
Josmara Bianco Molina, empresária e psicóloga
Texto: Luiza Meirelles | Fotos: Carolina Alves