Uma Nova Chance
Iniciativas no município buscam soluções para essa realidade

Uma Nova Chance

Falta de vínculo familiar, de moradia e de emprego são as principais demandas de mais de mil moradores de rua que, diariamente, transitam pelos espaços públicos de Ribeirão Preto;

Estima-se que no Brasil existam mais de 100 mil pessoas que passam as noites dormindo nas ruas, sob marquises, em praças, embaixo de viadutos e pontes, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que constam em levantamento realizado em 2016. Em Ribeirão Preto, a estimativa é de que haja mil moradores de rua. 

A crise econômica e desemprego são fatores centrais para aumento da pobreza, segundo Thiago Lemos Possas, professor de Sociologia Jurídica do Centro Universitário Estácio Ribeirão Preto e Doutor em Direito pela USP. De acordo com o especialista, dados da Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas) e do Instituto Limite, relativos a um relatório realizado entre junho de 2017 e junho de 2018, mostram que a população em situação de rua cresceu aproximadamente oito vezes em apenas cinco anos. Para o especialista, são números preocupantes. 
Thiago aponta a crise econômica e desemprego como fatores centrais para aumento da pobreza
No município, segundo Tiago, algumas políticas públicas tentam conter esse aumento — entre elas, a Política Municipal para a População em Situação de Rua. Em abril deste ano, também foi criado o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a População em Situação de Rua. “No entanto, é notório o crescimento dessa população nos últimos anos. Ao percorrer regiões como a do entorno da rodoviária e a do centro da cidade nota-se, claramente, que há uma enorme demanda de ações do poder público”, comenta.

A questão, para o professor, vai além: se o problema das pessoas em situação de rua é multifatorial, a solução só pode ser intersetorial. Ou seja: a solução demanda uma ampla gama de políticas públicas que abarquem os diversos fatores envolvidos no problema, como saúde, moradia, educação e formação profissional, geração de emprego, e diversos setores da sociedade e do Estado, com destaque para a atuação dos movimentos sociais. 

Nesse cenário, surge o argumento da falta de recursos públicos, entretanto, Tiago contextualiza. “Há uma fala do escritor José Saramago que resume muito bem toda essa discussão:  ‘há um mal econômico, que é a errada distribuição de riqueza. Há um mal político, que é o fato de a política não estar a serviço dos pobres’. Se os atores políticos não priorizarem o combate à pobreza não haverá solução para o problema”, argumenta. 

Diante das dificuldades para quantificar o número dessa população, resta apenas uma certeza: todos buscam uma nova chance de vida.  Bruno Aparecido Medeiros, de 27 anos, natural de São Sebastião do Paraíso, é uma dessas pessoas que chegaram à cidade almejando um bom emprego e a construção de uma família. No entanto, o vício em drogas e, segundo ele, as constantes brigas com a mãe e os irmãos, que ficaram em Minas Gerais, transformaram sua vida. 
De traficante a usuário de drogas, Bruno busca a ressocialização por meio das atividades do Solar Fides
Bruno já morou em acampamento de movimentos sem-terra, foi traficante, usuário de drogas e também chegou a ser contratado por um restaurante na cidade, onde trabalhou por quase dois anos. A recaída pelo uso da cocaína foi a principal inimiga. “Nessa época, tentei retornar para Minas Gerais, mas briguei de novo com a minha família e voltei para as ruas”, relembra. 
Há um mês, ele chegou ao Solar Fides, em Ribeirão Preto, onde, finalmente, tem a oportunidade de voltar à sociedade ressocializado. Junto de mais nove colegas, em uma casa ampla, com horta e piscina, divide seu dia entre atividades de marcenaria, aulas de informática e a organização da rotina do novo lar. Por ali, pode ficar por até um ano — tempo em que a equipe de profissionais presume sua recuperação. E tudo dependerá de si mesmo.

O Solar Fides oferece uma rotina diária intensa com a finalidade de fazer com que os moradores sigam regras para uma boa convivência, além de criar autonomia para dar sequência a suas vidas fora dali. O espaço comporta 12 homens com idade acima de 18 anos em situação de vulnerabilidade social. 

Com a nova chance, Bruno pretende dar uma guinada na vida e mudar seu destino. “Estou limpo desde que cheguei aqui. Abandonei o cigarro e as drogas e prometi pra mim mesmo que vou voltar para minha terra só quando eu estiver bem. Não quero mais levar preocupações para a minha família”, afirma. 

Dignidade para continuar
Uma pausa e o silêncio interrompem a entrevista com André Aparecido Gustavo, de 39 anos. Os motivos são as lembranças do que a vida nas ruas levou: um filho que não vê há mais de dez anos, um emprego fixo e a esposa. As lágrimas revelam o desejo mais profundo de retomar o contato com eles e recuperar o tempo perdido. 
André aguarda pelo reencontro com o filho
Responsável pela horta, André está no Solar pela terceira vez. Natural de Itatiba (SP), a memória de infância se limita aos pais separados, à falta de contato com os irmãos e à vida sem laços afetivos. “Várias questões me levaram às ruas: fraqueza, influências de terceiros e lugares que frequentei. Em partes, a falta de convívio familiar influenciou a situação, mas a culpa por ter perdido tudo é estritamente minha. As maiores decisões e os caminhos que eu percorri foram por opções minhas”, recorda. 

Drogas, alcoolismo e prostituição foram as companhias de André por seis anos. Há seis meses no Solar, tem um propósito: continuar sóbrio, livrar-se dos vícios e reconstruir a vida. “Primeiramente, é permanecer firme em Deus e apagar meu passado para dar um rumo novo à reconstrução da minha vida. Talvez até receber a bênção de Deus com uma família nova, já que os melhores anos do meu filho eu perdi, mas vou esperar pelo reencontro com ele no momento certo”, acrescenta emocionado. 
Solar Fides oferece rotina diária para que os moradores sigam regras de boa convivência, além de criarem autonomia
O Solar Fides é mantido, atualmente, com doações que tentam, de alguma forma, suprir mais de R$ 20 mil de dívidas mensais. Para complementar a renda, há pouco mais de um ano, foi implantado o projeto de torrefação de café, proveniente de Muzambinho, sul de Minas Gerais, Patrocínio (MG) e Batatais. 

O café Solar Fides é vendido em eventos realizados pela casa e em alguns estabelecimentos de Ribeirão Preto. Dionísio José de Oliveira, de 44 anos, é um dos acolhidos que trabalha na torrefação industrial construída na casa. Atualmente, ocupa a função de coordenador de torra.  “Estar à frente desse projeto me faz sentir um privilegiado. Agradeço a Deus por ter colocado essas pessoas na minha vida”, comenta. 

Dionísio chegou ao Solar com o histórico recorrente da maioria dos que ali estão: tem irmãos moradores de rua e a relação com a mãe desconstruída. Enviado à Colômbia por meio de um projeto da igreja que mantém o Solar, viu uma chance de sua vida ser transformada. 
Dionísio teve a oportunidade de fazer curso de barista e hoje atua como coordenador de torra na instituição
Por lá, Dionísio fez curso de barista e terminou os ensinos Fundamental e Médio. “Usei drogas por 25 anos correndo risco de morrer e, principalmente, de nunca mais sair dessa vida e das ruas. Com a coordenação do projeto, ganhei mais responsabilidade e qualidade de vida”, acrescenta. 

Para Fabiana Guiraldelli Salviano Santos, de 42 anos, assistente social do Solar Fides, essa era a oportunidade que Dionísio tinha de estudar e mudar a sua vida. “Enxergamos nele um líder nato, mas isso precisava ser lapidado. Encaminhamos o Dionísio para outros projetos para estudar para que, quando voltasse, pudesse assumir a torra de café daqui. Deu certo, felizmente”, relembra. 
Para Fabiana, acolher cada um dos moradores de rua é oferecer a eles a possibilidade de mudança de vida
Para assistente social, acolher cada um deles é oferecer a possibilidade de mudança de vida. “É enxergar na vida do outro a possibilidade de mudança e de regenerar esses moradores de rua e devolvê-los ao convívio social sem riscos de recaída”, finaliza.

Entrega solidária
Cobertores, roupas, produtos de higiene pessoal e marmitas. Esses são os itens entregues aos moradores de rua próximo à Rodoviária e algumas comunidades da cidade, entre elas, a do Brejo, Nova Vila União, Vida Nova e Via Norte.  O trabalho é feito por voluntários da Ong Anjos da Rua, que surgiu há três anos pela iniciativa de um grupo de amigos da cidade que tinham em mente um único objetivo: ajudar o próximo. 
Tiago Marcussi é responsável pela Ong Anjos da Rua, que distribui marmitas e materiais de higiene aos moradores de rua
Até hoje, foram mais de 50 mil moradores beneficiados com a distribuição dos materiais. Semanalmente são cerca de 500 marmitas. Dados como esse ainda estão em levantamento, mas enchem de orgulho o coordenador do projeto, Tiago Marcussi, tesoureiro da Ong. “Servir nossos irmãos menos favorecidos é muito gratificante. É uma experiência ímpar, porque não estamos nas ruas apenas distribuindo cobertores ou marmitas, estamos distribuindo amor”, argumenta. 

Sem solução
Para o promotor de Justiça de Ribeirão Preto Sebastião Sérgio da Silveira, as políticas de transferência dessa população para a cidade natal ou a chamada “política higienista” não resolvem. Pelo contrário, criam-se outros problemas, porque, segundo ele, a maioria dessas pessoas está nas ruas por falta de opção, não por conveniência. “Alguns não possuem casa ou família interessada e outros estão desassistidos por absoluta falta de políticas públicas do poder público. Em Ribeirão Preto, por exemplo, registramos diversas reclamações de violência praticada por servidores municipais contra tais moradores”, denuncia.
“Não existe, segundo tenho conhecimento, qualquer política pública destinada à recuperação e devolução dessas pessoas para locais adequados”, aponta Sebastião Sérgio da Silveira
Algumas dificuldades na quantificação dessa população, a identificação das reais aflições de cada um, para o promotor, também são desafios na elaboração de medidas assistenciais. A primeira ação, de acordo com Sebastião, seria a volta do projeto “Consultório nas Ruas”, para atendimento dessas pessoas no local onde elas estão. “A manutenção dessa situação gera muito mais despesas, porque a prefeitura sempre combate os efeitos com remoções, atendimentos médicos de urgência, fornecimento de refeições, entre outros. O atendimento, de forma geral, é deficiente e improvisado. Existem os CRAS, CREAS e CETREM, órgãos que ‘enxugam gelo’. Não existe, segundo tenho conhecimento, qualquer política pública destinada à recuperação e devolução dessas pessoas para locais adequados”, aponta.

Centro POP
Em Ribeirão Preto, o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP), equipamento administrado pela Secretaria da Assistência Social, tem a função de acolher e atender a população em situação de rua da cidade. 
Segundo Larissa, o Centro POP também atua com a finalidade de reinserir os moradores de rua à sociedade em longo prazo, por meio de atividades
A coordenadora do Centro POP, Larissa Soares de Melo, explica que a principal atuação do órgão é baseada no contexto socioassitencial, com a finalidade de acompanhar as pessoas em situação de rua e, por meio do acolhimento, quando necessário, também encaminhá-las a outros serviços, como abrigos, casas de passagem e equipamentos de atendimento em saúde. 
Na instituição são atendidas pessoas nascidas ou não no município, mas que possuem vínculos com a cidade, com o objetivo de estabelecer a reinserção social. O POP funciona como um “Centro Dia”, com funcionamento de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h, e são oferecidos atendimentos básicos para autocuidado, alimentação, convivência e acompanhamento técnico. 

Apesar de todo suporte, tanto para a ressocialização quanto para o retorno da pessoa à sua cidade de origem, de acordo com Larissa, o maior desafio é o momento em que essa pessoa retorna às ruas. Em algumas situações, a reinserção à sociedade implica em outras demandas, como moradia, por exemplo, que contribui para a retomada de vida. “Essa questão tem sido amplamente discutida em Ribeirão Preto, pois em demais cidades existem projetos de repúblicas e moradias temporárias onde os reinseridos podem ficar sob acompanhamento dos serviços assistenciais. Esse momento chamado de ‘porta de saída’ deve ser mais bem estruturado”, completa. 

Para ela, o trabalho de atendimento às pessoas em situação de rua é complexo, mas também há uma riqueza de possibilidades na construção dos cuidados. O importante, segundo a coordenadora, é saber que existem políticas que norteiam esse atendimento, mas que o cuidado é totalmente desenvolvido de forma individualizada. A história de cada um é vista como uma nova perspectiva com diversas dificuldades, mas também com uma nova chance. 



Texto: Cristiane Araujo | Fotos: Julio Sian e Luan PORTO

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