Uma vida pela arte

Uma vida pela arte

Artista plástico Macalé enfrentou o racismo e a falta de incentivo para produzir sua arte; hoje, aos 82 anos, lembra com orgulho de sua trajetória

Meu legado não é o dinheiro”, afirma o artista plástico Jaime Domingos Cruz, o Macalé. A frase sintetiza sua trajetória de mais de 40 anos em prol da arte. Pintar acalma e alegra o coração de Macalé, que entende sua obra como uma extensão da própria vida. Materializando vivências e sentimentos nas tintas e nas telas, o artista se dedica a espalhar seu apreço por essa atividade.

 

Nascido de uma família humilde em Orlândia, veio ainda criança para Ribeirão Preto. Aqui, ele já trabalhou na lavoura, como pedreiro, pintor de paredes e chegou a ter uma carreira promissora no ciclismo. Mas, foi nas tintas que ele se encontrou. Na década de 70, sem nunca ter frequentado uma escola de arte, começou a expor suas obras em volta da fonte luminosa na Praça XV de Novembro.

 

Além das artes plásticas, Macalé se apropriou do manto de educador e passou a ensinar arte para crianças. Hoje, aos 82 anos, lembra com orgulho da trajetória, da luta contra o racismo e da batalha para criar com dignidade os cinco filhos com sua arte. 

 

Como surgiu o interesse pela arte?

 

Eu comecei a brincar com a minha filha e a ensinar ela a fazer alguns rabiscos e desenhos para a escola e acabei tomando gosto pela arte, pelas cores. Eu ia pintando os trabalhos e ia pendurando na parede da sala. Certa vez, um colega meu de Araraquara foi em casa e me perguntou de quem eram aqueles trabalhos. Ele me incentivou a expor para outras pessoas. Antigamente, alguns artistas levavam seus trabalhos para expor e vender lá na Praça XV. Resolvi ir até lá em um sábado, para ver como era o movimento, e decidi levar meus trabalhos.

 

Quando eu os coloquei lá, algumas pessoas riam, outras perguntavam o preço, mas eu não tinha nem colocado preço, não fazia ideia de que poderia ganhar dinheiro com isso. Somente na segunda semana eu vendi um trabalho. Nessa época, o radialista Hélio Miranda, da rádio PRA-7, me convidou para dar uma entrevista. Com isso, eu ganhei um pouco mais de visibilidade. E foi o Hélio que me deu a ideia de levar os trabalhos para uma galeria. Com isso, conseguimos marcar a minha primeira exposição e nunca mais parei.

 

 

Até esse ponto, o senhor não tinha consciência do próprio talento?

 

Eu brincava às vezes, mas nunca levei a sério. Primeiro porque eu não possuía conhecimento nenhum de arte, não havia lido história de nenhum artista, não conhecia nem o Candido Portinari. Estudei até o quarto ano do Ensino Fundamental e nunca fui para uma faculdade de artes. Hoje, tenho orgulho que minhas netas passaram por uma universidade. 

 


“Estudei até o quarto ano do ensino e nunca fui para uma faculdade de. Hoje tenho orgulho que minhas netas passaram por uma universidade”, conta Macalé

 

E como foi o seu começo como pintor?

 

Comecei com cinco tubinhos de tinta, que seriam descartados de uma residência que meu irmão trabalhava fazendo limpeza. Nessa época, eu era um ‘faz-tudo”. Era pedreiro, marceneiro, fazia pintura de paredes. Durante o dia, eu trabalhava nas obras, e à noite, ainda como hobby, eu pintava. Por muito tempo, eu unia dois trabalhos: passei a trabalhar com decoração de paredes, colocava papel de parede, cortinas, carpete, era um trabalho mais voltado para a estética. Eu fui o responsável pela decoração do antigo CineCauim da Rua Lafaiete.

 

O senhor também realizou trabalhos voltados para a educação. Como eram essas atividades?

 

Realizei trabalhos no Museu do Café, na Praça Sete de Setembro, em várias escolas e até na rua da minha casa. Eu sentia a necessidade de ajudar as crianças. Eu tirava as minhas manhãs de domingo para ensinar arte para essas crianças. Isso durou cerca de dez anos. Boa parte dessas atividades foi tirando dinheiro do meu próprio bolso. Eu mesmo fazia os pincéis a partir de varetas e bambu e produzia as tintas para a criança. 


Atualmente, como o senhor lida com a situação do Museu do Café?

 

Recentemente, quando fui fazer uma visita lá, eu até passei mal ao ver o estado em que ele estava. Foi preciso até chamar ambulância. A emoção foi muito grande ao ver o abandono e tudo caído. Daí o coraçãozinho quase não aguentou. 

 


Nas aulas voluntárias de arte que lecionava, Macalé construía os próprios pincéis 

 

O senhor comentou sobre a falta de incentivo e recursos para a realização dessas atividades culturais na cidade. Por que isso acontece?

 

Eu acho que Ribeirão Preto não dá tanto apoio para o artista da própria cidade. A maior parte desses artistas sai daqui para tentar ganhar a vida em São Paulo ou fora, porque aqui você não consegue vender uma obra, viver da arte. Todo mundo olha o quadro e fala ‘que bacana, Macalé! Muito bonito’, me dão alguns tapinhas nas costas e fica por isso mesmo. Além disso, eu sou um negro, o que torna a situação mais difícil ainda. Temos que matar uns dez leões por dia para poder ficar de pé, e eu vou matando.

 


Série de obras "O sol nasceu para todos", de Macalé

 

Uma série de trabalhos que chama a atenção é a “O sol nasceu para todos”. Qual é a história por trás dessa obra?

 

É a história da minha vida. Todo o tempo que eu morei em Ribeirão Preto, nunca tive uma casa para morar. E, depois de muita luta, consegui comprar um terreno e eu mesmo construí minha casa. Nessa época, como pedreiro, fazendo casa para os outros. Esse trabalho simboliza a residência que eu construí, e eu entendo que todo mundo deve ter uma casa. Por isso que eu falo que o sol nasce para todos, ele nasce para mim e para você.

 

E onde entra o ciclismo nessa história?

 

Essa história aconteceu antes de começar com os quadros. Nos anos 1960, eu morava na esquina da Rua Onze de Agosto com a Teresa Cristina. Ali, uns amigos tinham uma oficina que consertava bicicletas. Eles se reuniam todos os dias, à tarde, para falar sobre ciclismo, competições e viagens. Eu ia lá para escutar essas histórias. Nessa época, eu trabalhava na lavoura. Um amigo meu, percebendo o meu gosto pelo ciclismo, me deu uma bicicleta. Ela era bem velha e eu fui a reformando aos poucos.

 

A primeira volta mais longa que fizemos foi até Brodowski. A primeira competição que eu participei foi, ainda, para bicicletas de passeio. Logo na primeira volta, eu levei um tombo na esquina da Rua Barão do Amazonas com a Duque de Caxias. Daí, na minha segunda corrida, eu liderei a maior parte do tempo, só que, como não conhecia o percurso, perdi na subida do Morro do Cipó, que, atualmente, é o Morro do São Bento. Faltavam uns 200 metros só. Mas nessa, pelo menos, eu cheguei em segundo lugar.

 


Macalé teve uma carreira promissora no ciclismo, mas a falta de patrocínio o impediu de prosseguir 

 

E quando o ciclismo deixou ser a prioridade?

 

Foi quando ficou muito difícil financeiramente, mal existia patrocínio. Eu não conseguiria manter a minha casa e meus cinco filhos. Para fazer o ciclismo foi uma luta. O meu treinador me disse para eu migrar para o atletismo, porque o ciclismo era muito caro. Ele dizia: ‘o atletismo você usa um tênis, uma camiseta e um short, só. Você não vai conseguir se manter no ciclismo’. Na verdade, ele e o filho corriam também e eles não queriam perder para um negro. Quase não haviam negros correndo, a maioria eram brancos. Queriam me tirar porque eu me destacava. 

 

O senhor participou de movimentos de militância e antirracismo?

 

Sim. Porque éramos muito discriminados. Por isso, nos reuníamos para falar sobre o racismo. O racismo era ainda mais intenso naquela época. Não podia fazer nada diferente que te criticavam, taxavam como macumbeiro. Quando levávamos nossa arte para bares e esses espaços, a elite da cidade não gostava. Não queriam que eu criasse asas, mas eu fui desviando deles e criando minhas asas. Eu não faço isso pelo dinheiro, faço para deixar algo para os meus netos, para que as pessoas tenham uma memória minha depois que eu for. 

 


Foto: Luan Porto

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