Violência contra a mulher

Violência contra a mulher

Desde 2015, Ribeirão Preto conta com um cartório específico — e desenvolve uma série de projetos — para atender às vítimas de agressões de gênero

Sob diversas formas e intensidades, a violência contra a mulher continua sendo uma realidade recorrente no Brasil. Só no ano passado, foram 536 agressões por hora, de acordo com dados do Fórum de Segurança Pública. Os números, no entanto, não configuram um retrato exato do problema. Diante de um quadro de opressão e de fragilidade, tanto física quanto psicológica, muitas vítimas ainda se sentem tomadas pelo medo e não denunciam. Por outro lado, o debate público crescente, alertando que essa prática não deve ser tolerada ou legitimada, somado ao fortalecimento de redes de apoio e à estruturação de um respaldo jurídico — baseado na Lei 11.340/06, batizada como Lei Maria da Penha, que completou, recentemente, 13 anos —, tem incentivado mulheres a buscarem ajuda para evitar ou dar um basta ao sofrimento o quanto antes. Na entrevista a seguir, a 4ª juíza auxiliar de Ribeirão Preto, Carolina Moreira Gama, aprofunda o tema. Coordenando o Anexo da Violência Doméstica e Familiar e, também, a Justiça Restaurativa, a magistrada repercute algumas das ações realizadas na cidade no sentido de garantir informação e proteção às mulheres. 

A desigualdade de gênero e o preconceito continuam enraizados na sociedade atual?

Muito embora possamos elencar, hoje, vários avanços em prol da igualdade de gênero, a sociedade brasileira é reconhecidamente machista. Via de regra, os discursos dos ofensores do sexo masculino são baseados em considerações calcadas na forma patriarcal de suas vivências, ou seja, repetem ações que vêm permeadas por ciúme desmedido e pelo que entendem que deva ser exclusivo à esposa em termos de lugar, de comportamento e de tarefas domésticas, por exemplo.

As mulheres são, constantemente, colocadas em uma situação de vulnerabilidade e expostas a atos de violência?

Sim. As estatísticas mostram que as violências são de diversas ordens — físicas, psicológicas, sexuais, patrimoniais e morais —, e, principalmente, vivenciadas no âmbito doméstico ou mais restrito. Também se verifica, na prática, que as agressões costumam ser repetidas e escalonadas em agressividade ou intensidade, com a diminuição do espaço de tempo para que tornem a ocorrer. Portanto, as mulheres se encontram em uma situação de vulnerabilidade. Isso se dá, pelo menos mais recentemente, menos por conta do que ela obtém das respostas institucionais (formais ou legais ) e mais da falta de apoio ou de solidariedade de outros familiares, amigos e vizinhos. A mulher ainda se percebe muito sozinha, o que apenas agrava a sua exposição e temor frente ao agressor.

Os números que evidenciam o problema têm aumentado nos últimos anos?

Nota-se, de fato, uma incidência maior nos últimos anos, mas, devido ao histórico de subnotificação desses casos, não se pode concluir, necessariamente, que a violência tem escalonado. Embora os números de feitos ou de registros das agressões ainda se encontrem em uma crescente, o fato é que a mulher tem tomado meios mais rápidos e eficazes de conter o que sofre. Antes, as vítimas alegavam que sofriam por anos, ou vezes multiplicadas, antes de lavrar a primeira ocorrência policial. Hoje, muitas já não admitem a primeira vez. Essa postura faz com que os índices ganhem volume e apareçam aos olhos do público. O caminho da delegacia e do Judiciário, e mesmo o alcance da Lei Maria da Penha, são conhecidos, o que é uma grande conquista para a mulher.

Os crimes mais recorrentes são os de lesões corporais, ameaças, injúrias e perturbações ao sossego ou à tranquilidadeO debate crescente em relação a esse tema e à sororidade ajudam, de alguma maneira, a empoderar as mulheres?

A sororidade e todo tipo de caminho empático e acolhedor para a mulher são fundamentais em prol de sua segurança e empoderamento. Assim como é muito difícil para a vítima se libertar sozinha de uma situação de opressão, a ordem judicial também depende desse apoio ou articulação de rede, dos demais agentes públicos e mesmo de outras pessoas mais próximas dessa mulher. São elas que, conhecendo a ordem do juiz, poderão auxiliá-la direta ou rapidamente, inclusive acionando a polícia no caso de uma nova aproximação do agressor, por exemplo.

Mesmo assim, muitas vítimas ainda têm medo de buscar ajuda?

Ainda se percebe o medo da vítima, inclusive o de ser tachada, malquista ou constrangida por familiares e pessoas mais próximas por conta de sua iniciativa, enquanto denunciante. Outro motivo que as impede de buscar ajuda se relaciona aos complexos sentimentos de afetividade para com o ofensor, tudo a permear a repetição do ciclo de violência, na famosa nova chance ou na ideia de que ele poderá, ainda, mudar de comportamento.

Quais são os crimes mais prevalentes?

Os que mais se verificam no dia a dia são os de lesões corporais, leves ou não, ameaças, injúrias, perturbações ao sossego ou à tranquilidade. O crime mais grave é, evidentemente, o feminicídio, quando a vítima mulher acaba morta por conta dessa sua condição ou no âmbito da violência doméstica.

Que medidas essas vítimas podem buscar junto à lei para se protegerem?

As medidas protetivas estão previstas na Lei Maria da Penha, mas, além delas, outras podem ser necessárias e possíveis de serem dadas pelo juiz. Entre as mais comuns, destaca-se a do afastamento do ofensor do lar, a não comunicação e não aproximação desse ofensor em relação à vítima e/ ou familiares dela. Em Ribeirão Preto, temos aplicado as medidas sob prazo indeterminado, ou seja, ela fica mantida até que se possa ter certeza da segurança da vítima, além de ser dada independentemente do processo criminal. Isso significa que, ao contrário do que ocorre em outras cidades, aqui temos considerado que a medida protetiva tem caráter essencialmente satisfativo, não precisa vir atrelada com um inquérito ou processo criminal. Isso atende à vítima quando ela entende que apenas precisa da medida protetiva urgente, mas não quer ver o agressor criminalmente implicado ou mesmo quando não se reúne o suficiente para esse processo.

Aqui na cidade existe o Anexo da Violência Doméstica e Familiar. Ter um cartório específico para atender esses casos representa uma evolução significativa nessa batalha?

O Anexo foi criado em março de 2015, graças à articulação e aos esforços conjuntos promovidos tanto pelos juízes criminais de Ribeirão Preto, como também pela Prefeitura — que hoje fornece auxílio ao funcionamento do setor por meio de Convênio com o Tribunal de Justiça — e por outros tantos atores da nossa sociedade civil. Felizmente, naquela época, a nossa cidade já contava com uma boa e fortalecida rede de proteção à mulher, além da demanda ser bastante exigente. Em outros municípios, alguns até com população mais expressiva, ainda não existe setor ou cartório especial para a violência doméstica, onde esses feitos restam atrelados a varas criminais comuns. Do que avaliamos no dia a dia, a especialização se mostra essencial para um trabalho bem direcionado, uniforme e ágil. Para se ter uma ideia, logo no início, o Anexo recebeu pouco mais de 2.000 processos e, agora, já estamos com quase 6.000 — o que corresponde quase ao dobro de todos os feitos de uma Vara Criminal dessa cidade, que engloba outros tipos de crime. De novo, isso não significa, necessariamente, um aumento dos ataques contra a mulher, mas sim que muitas delas encontram apoio ou guarida no sistema judicial. Agora, o pleito é por uma Vara especializada.

De que forma assegurar que as medidas serão, de fato, cumpridas?

Firmamos parcerias com a Guarda Municipal e com a Polícia Militar local, que se mobilizou para o destaque e a formação de policiais no chamado Projeto Cabo Leandra Dias. Esse grupo de agentes é capacitado para atuar em casos onde há crimes contra a mulher, respondendo rapidamente às solicitações. É essencial, ainda, que a vítima possa acionar sua rede familiar e de apoio, indicando aos conhecidos que ela conta com a medida. Para os casos mais graves, ou de descumprimento reiterado, a prisão preventiva é decretada contra o ofensor.

Como reverter esse quadro?

Além dos serviços jurisdicionais típicos, o Anexo tem se voltado a parcerias com a rede pública municipal, como o Núcleo de Atendimento Especializado à Mulher, formando uma rede consistente e muito útil de amparo às vítimas. Temos, por exemplo, o Projeto Efêmera, co-criado e coordenado pela artista Elaine Almeida, onde mulheres são convidadas a dialogar sobre suas vivências, ao mesmo tempo em que produzem camisetas e sacolas, que, vendidas, podem auxiliar em suas independências financeiras. Há, ainda, a Oficina Prosseguir, uma parceria com consteladores e advogados que busca solucionar questões relacionadas à ordem familiar como um todo. As sessões ocorrem mensalmente, no recinto do Fórum. Destaco, por fim, a Justiça Restaurativa. Trata-se de um novo meio ou ferramenta que o Juízo mantém para casos específicos, na avaliação de que apenas o caminho judicial comum ou criminal não promoverá as necessárias mudanças. A finalidade é promover a efetiva responsabilização dos envolvidos e engajá-los em uma cultura de paz e de harmonia familiar, independentemente do que possa sobrevir do próprio processo tradicional.

A magistrada destaca o trabalho realizado pelo Anexo da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher Nesse contexto, é preciso, também, fazer um trabalho de reabilitação com o agressor?

Uma das nossas preocupações é tomar o devido cuidado a respeito da intimação e advertência do ofensor. Em muitos casos, notamos que ele descumpria a medida porque não a compreendia ou porque questionava sua abrangência. Elaboramos uma série de ações de conscientização graças à atuação do nosso próprio setor técnico, juntamente com a Defensoria Pública, com o Seravig e mesmo a partir da capacitação dos Oficiais de Justiça. Os agressores participam de rodas de conversas para reflexão de temas relacionados à suas condutas e, também, sobre outros tópicos que permeiam as causas da violência, como drogas, álcool, ciúmes e machismo. O Projeto Olhar, promovido pelos facilitadores Paola Miorim, Amilton Forcinetti e Constantino Sarantopoulos, reúne os autores para práticas combinadas de ioga e meditação, comunicação não violenta e discussões sobre valores importantes e caros à boa convivência. 

Essas intervenções têm gerado bons resultados?

Tem dado ótimas respostas: as estatísticas mostram que, via de regra, a reincidência em violência doméstica supera os 60% de casos. Entre esses homens tratados por tais cursos, aqui em Ribeirão Preto, esse índice está para menos de 5%. 

Compartilhar: