Doações de órgãos aumentam, mas desconhecimento ainda é um dos principais obstáculos

Doações de órgãos aumentam, mas desconhecimento ainda é um dos principais obstáculos

Setembro Verde é dedicado ao incentivo à doação de órgãos; no primeiro semestre deste ano o estado registrou um um aumento de 10,5% em relação ao mesmo período do ano passado.

Os recentes acontecimentos envolvendo o apresentador Fausto Silva, o Faustão, causaram comoção nacional e lançaram holofotes sobre um tema de enorme importância: a doação de órgãos. Acometido por uma insuficiência cardíaca, o apresentador recebeu um coração novo no dia 27 de agosto, depois de passar 20 dias na fila do transplante.

 

A pauta ganha ainda mais importância, pois, neste mês, acontece a campanha Setembro Verde, período de conscientização e incentivo à doação de órgãos. O período enfatiza a importância dessa atitude nobre e generosa que, apesar de salvar muitas vidas, ainda é cercada por desconhecimento, mitos e preconceitos.

 

“Campanhas como o Setembro Verde são sempre válidas para chamar a atenção das pessoas e da sociedade como um todo para a doação e o transplante de órgãos. O Brasil tem o maior sistema público de transplante de órgãos do mundo que precisa ser mais conhecido pela população”, afirma o médico intensivista Marcelo Bonvento, coordenador da Organização de Procura de Órgãos (OPO) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HCFMRP/USP).

 

O estado de São Paulo conta com dez OPOs, sendo quatro na Capital e seis no interior. A OPO do HCFMRP é a segunda maior do interior paulista e tem como atuação fortalecer a doação na região e alinhar as ações junto às centrais regionais e a Central Estadual de Transplante.

 


O médico intensivista Marcelo Bonvento, coordenador da Organização de Procura de Órgãos (OPO) do HCFMRP/USP

 

Números aumentam

 

Segundo o Governo de São Paulo, no primeiro semestre deste ano o estado registrou 5.077 transplantes de órgãos, um aumento de 10,5% em relação ao mesmo período do ano passado.

 

Nas operações de coração, foram 75 órgãos transplantados de janeiro a junho, dois a mais que em 2022, também superando os primeiros semestres de 2021 (73), 2020 (67), 2019 (74) e 2018 (64), de acordo com os registros da Central de Transplantes do Estado. Neste ano, também houve aumento do número de doadores. Foram 612, um crescimento de 13,5% se comparado ao mesmo período do ano anterior. Houve ainda diminuição da recusa de familiares, com 38,6% no primeiro semestre de 2023, ante 41% entre janeiro e junho de 2022.

 

De acordo com a Central de Transplantes do Estado, as maiores demandas são por operações de rim, córnea e fígado, com lista de espera de 16,2 mil, 3,7 mil e 462 pacientes, respectivamente. Quanto aos transplantes cardíacos, 180 pessoas estavam na fila até o mês passado.

 

Os pacientes que precisam de transplantes são inscritos no Cadastro Técnico do Sistema Estadual de Transplantes de São Paulo. A gestão do cadastro e da distribuição de órgãos é feita em conjunto com o Sistema Nacional de Transplantes e depende de fatores como disponibilidade de doadores, ordem cronológica, gravidade do caso e viabilidade de tratamentos alternativos, com prioridade aos casos em que há risco iminente de morte.

 

“Ainda há muitas pessoas na lista, esperando por um órgão, mas vale ressaltar que a lista é dinâmica e estamos conseguindo fazer os transplantes, ainda não tanto quanto gostaríamos”, ressalta o médico Marcelo Bonvento. “O sistema atende a todos os que estão nesta lista, funciona de maneira íntegra e transparente e tem credibilidade internacional”, frisa.

 

Desconhecimento dificulta a doação

 

Dados do Sistema Nacional de Transplantes do Ministério da Saúde apontam que, de 1º de janeiro até 27 de agosto deste ano, o tempo de espera para o transplante de coração foi menor do que 30 dias para 72 pacientes da lista, o equivalente a 27,5% do total de pessoas transplantadas. Para outros 65 pacientes (29%), o tempo de espera foi de 30 a 90 dias.

 

Isso significa que mais da metade do percentual de pacientes (52,3%) teve a oportunidade de receber a doação em até três meses.  Um dos principais obstáculos, de acordo com os especialistas, é a taxa de recusa das famílias que está em 45%, considerada elevada. No Brasil a lei determina que a família seja consultada e consinta a doação dos órgãos, mesmo que o doador tenha expressado o seu desejo em vida.

 

Para Débora Terrabuio, médica hepatologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC/FMUSP), a abordagem à família após a perda de um ente querido é uma situação muito delicada.

 

“Existe um tabu em não se conversar sobre a morte ainda em vida.  Há ainda muitos mitos e desconhecimentos a respeito da doação como, por exemplo, a diferença entre morte encefálica e coma. A primeira é uma situação irreversível onde os sinais vitais são mantidos por meio de aparelhos. Já o coma pode ser um processo reversível”, explica. “As pessoas pensam também que, com a doação dos órgãos, o corpo ficará desfigurado ou haverá uma demora maior para ser velado, o que não é verdade”, disse a médica em entrevista concedida ao Jornal da USP.

 

Para ela, a conversa com as famílias e o apelo por campanhas de conscientização são dois pontos importantes neste debate. A médica destaca ainda que é necessário conversar com a sociedade sobre o tema e destacar a seriedade que envolve todo o processo.

 

É importante conversar sobre isso, não só em setembro, mas em todos os meses do ano. Eu tenho plena confiança na transparência da nossa lista de transplante e acredito que temos que gastar nossos esforços e nosso tempo em divulgar a importância da doação de órgãos. Um único ‘sim’ tem a possibilidade de salvar ou melhorar a qualidade de vida de mais de vinte pessoas”, acrescenta.

 

“Estimulamos as famílias a terem esse diálogo em casa para respeitar a vontade do doador em vida e, desta maneira, ampliar o número de doadores”, complementa o médico Marcelo Bonvento.

 

Débora Terrabuio, médica hepatologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Novo órgão, nova vida

 

O motorista aposentado Adailto Silva, de 51 anos, recebeu um novo fígado há 9 anos. Em 2008 ele foi diagnosticado com hepatite B, faz o tratamento e, quatro meses depois, seguiu a vida normalmente. Em 2012 recebeu o diagnóstico de câncer de fígado e a substituição por um novo órgão era a única alternativa de tratamento e cura.

 

“Quando você recebe o diagnóstico de uma doença grave é muito ruim, mas quando sabe que, para a cura, você vai precisar passar por um transplante, é pior ainda. Meu mundo virou de cabeça para baixo, minha vida praticamente parou para que eu pudesse me dedicar à minha saúde”, revela. “Minha sorte foi ter sido diagnosticado no início da doença, assim as chances de cura aumentam”, acrescenta.

 

Foram dois anos de espera na fila do transplante e, em 2014, Adailto recebeu um novo órgão, dando início a um longo período de recuperação marcado por muitos altos e baixos.

 

“Tive muito apoio da equipe médica e da minha família, isso foi importante. Foram dois anos de tratamento, mas hoje minha saúde está estável, me sinto muito bem e foco minha energia e meu trabalho em ajudar pessoas que estão passando por situações semelhantes, esclarecendo, informando, dando suporte e apoio”, frisa.

 

Para Adailto, a desinformação é um dos grandes obstáculos para o aumento no número de doadores. “Como você vai pedir para uma pessoa doar seus órgãos se ela não sabe como o sistema funciona?”, questiona.

 

“É preciso esclarecer, derrubar tabus e preconceitos que ainda existem. Penso que a doação de órgãos deveria ser um assunto abordado nas igrejas, escolas, nas reuniões familiares, nas partidas de futebol... esse é o assunto do momento e precisamos falar sobre ele”, concluiu.

 


O motorista aposentado, Adailto Silva, recebeu um fígado novo em 2014

 

MITOS E VERDADES

Quem tem condições financeiras “maiores” passa na frente na fila para receber um órgão?

Mito. Todos os cidadãos brasileiros, independente da classe social ou das condições financeiras, são selecionados por compatibilidade com o doador. A decisão de quem receberá o órgão também passa por critérios previamente estabelecidos, como: tempo de espera e urgência do caso. Todos esses dados

 

Para ser um doador, não é necessário deixar nada por escrito em nenhum documento?

Verdade. Para ser doador, o paciente precisa apenas avisar seus familiares de primeiro ou segundo grau (pai, filho, irmãos, avós, cônjuges). Eles serão responsáveis por assinar o documento autorizando a doação dos órgãos e tecidos.

 

A doação deixa o corpo deformado?

Mito. Os órgãos e tecidos doados são removidos por meio de uma cirurgia e o corpo recebe todos os cuidados que o de uma pessoa viva. A doação não desfigura o corpo e o sepultamento pode acontecer normalmente.

 

Após a doação de órgãos o corpo precisa ser sepultado em caixão lacrado?

Mito. O corpo pode ser velado ou cremado normalmente e não precisa de nenhum preparo especial a não ser que seja levado a lugares mais distantes, como outras cidades, estados ou países.

 

Quase todos os órgãos e tecidos do corpo podem ser doados?

Verdade. Os órgãos e tecidos podem ser doados são: coração, pulmão, fígado, rins, pâncreas, intestinos, pele (camada superficial), ossos, válvulas cardíacas e córneas. São processados por um programa de computador seguro que impede fraudes.

 

Idosos ou pessoas que já tenham tido alguma doença não podem ser doadores?

Mito. Todas as pessoas podem ser consideradas potenciais doadoras, independentemente da idade ou do histórico médico. Uma avaliação com base em exames clínicos, de imagem e laboratoriais é feita no paciente falecido para determinar a possibilidade de transplante, e quais órgãos e tecidos podem ser doados.

 

Fonte: Hospital Israelita Albert Einstein

 


Foto: Revide

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