Em busca de uma saída

Em busca de uma saída

No tratamento para dependência química, 333 pessoas passaram por comunidades terapêuticas de forma voluntária em Ribeirão Preto no ano passado, em uma jornada longa e cheia de obstáculos

Quando a filha saiu de casa pela primeira vez, aos 17 anos, e passou um final de semana inteiro sem dar notícias, a mãe sabia que a culpa era da dependência química. “Ela estava agindo diferente, mais fechada, agressiva. Eu já desconfiava do consumo de álcool, mas tive certeza mesmo quando as drogas vieram. Daí muda tudo, tanto que ela sumiu essa primeira vez, depois de uma discussão, porque eu cobrei explicações sobre o uso das drogas”, conta a mãe da jovem, que hoje tem 20 anos e faz tratamento em uma comunidade terapêutica.  

 

“Já tentamos de tudo, CAPS, atendimento com médico do SUS, mas ela sempre ia e voltava, parecia algo sem fim, que a gente estava andando em círculos”, diz a comerciante que não quis se identificar. 

 

A adesão ao tratamento é um dos principais desafios na jornada em busca de uma saída do ciclo de dependência. Segundo a Secretaria de Assistência Social de Ribeirão Preto, a média de conclusão do tratamento nas comunidades terapêuticas — de internação voluntária —, é de 34,5%. Ou seja, praticamente um terço dos 2,2 mil pacientes acolhidos nos últimos sete anos não conseguiram concluir o tratamento e se livrar da dependência.  

Apenas no ano passado, 333 pessoas passaram pelas comunidades terapêuticas de Ribeirão Preto e região. Segundo a psicóloga e coordenadora do Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e Outras Drogas (CAPS AD II) de Ribeirão, Ana Elidia Torres, a questão cultural e social do uso das substâncias é um desafio.  

 

“Muitas vezes, os pacientes querem se isolar para cessar o uso, mas precisam aprender a lidar com essa questão dentro de sua rotina e com um tratamento de base comunitária. Nesse sentido, a redução de danos é a estratégia mais adequada para apoiar essas pessoas em seus desafios, com tratamentos personalizados para cada pessoa. Para ampliar o acesso e melhorar o cuidado, é preciso também diminuir estigmas e preconceitos”, afirma a psicóloga.

 “Tratamento, a princípio, é baseado nos sintomas do usuário, pois cada tipo de droga reage de forma diferente no corpo”, explicam as professoras Sandra Pillon e Natália Pegoraro

Processo de reabilitação 

 

Segundo Natália Priolli Jora Pegoraro, professora doutora do departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem da USP Ribeirão Preto, o tratamento é um processo que envolve a reabilitação biopsicossocial, e requer acompanhamento ao longo do tempo, assim, se torna complexo. “Ele não apenas depende do desejo do usuário em querer parar de usar a substância, mas também envolve os efeitos que a droga causa no organismo (prazeres, sensações) e o que ela causa nos vários aspectos de sua vida, bem como as motivações para o seu uso”, explica. 

 

Sandra Pillon, professora titular do departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem da USP Ribeirão, afirma que a dependência de drogas é uma condição duradoura, que requer tratamento ao longo da vida. “É caracterizada por um conjunto de sinais e sintomas causados pelo uso crônico de álcool e/ou de drogas, uma vez que essas substâncias alteram profundamente o funcionamento cerebral e o comportamento (sensações, emoções e prazer). Os sintomas da dependência se desenvolvem gradualmente ao longo da vida, pelas mudanças do hábito de uso e as adaptações da droga no corpo”, explica.  

 

Uuma vez que a dependência não tem uma única causa, o tratamento se torna mais difícil, pois não se refere somente à retirada da droga do organismo, mas há vários fatores que conjuntamente influenciam o seu desenvolvimento. “São fatores biológicos, como os genéticos; psicológicos, como os impactos do desenvolvimento sobre a personalidade e a cognição; e socioculturais, como condicionamento, aprendizagem social e influências culturais e étnicas. Por ser uma síndrome com diferentes níveis de gravidade, o tratamento da dependência química começa com um diagnóstico criterioso de cada um desses elementos. Pode ser realizado por uma equipe multidisciplinar, que deve levar em consideração as particularidades de cada caso, e o tratamento pode ser medicamentoso ou combinado com outras formas de terapias, para a obtenção de melhores resultados”, explicam as especialistas. 

 

A Escola de Enfermagem da USP Ribeirão possui o Programa de Cuidados e Reabilitação aos Usuários de Álcool (PROCURA), criado em 2005, que é composto por uma equipe de enfermeiros, que promove atividades de natureza assistencial, de orientação e de prevenção e redução de danos para os problemas relacionados ao uso de álcool e/ou outras drogas para alunos, funcionários e docentes (e seus familiares) do Campus USP de Ribeirão Preto. Os atendimentos ocorrem por demanda espontânea ou por meio de encaminhamentos.  

 

Formas de tratamento 

 

Hoje, o tratamento para as pessoas com dependência química pode ser feito de forma voluntária, como é o caso das comunidades terapêuticas que têm vagas geridas pelo município, ou de forma involuntária — que se dá sem o consentimento do usuário, normalmente direcionado pela família em clínicas e instituições particulares —, e a compulsória, que ocorre por meio de determinação da Justiça. 

 

Luciana Penteado, diretora do Hospital Fundação Penteado, em Ribeirão Preto, explica que, com a lei 13.840 de 2019, ficou estipulado que a internação do dependente somente deverá ser feita em unidades de saúde ou hospitais gerais com equipes multidisciplinares e deverá ser obrigatoriamente autorizada por um médico. “A internação involuntária tem de ser autorizada por um médico e indicada, depois de uma avaliação detalhada sobre o tipo de droga usada, o padrão de uso e com a comprovação da impossibilidade de adotar outras alternativas terapêuticas”, explica.  

 

No hospital, o primeiro especializado no tratamento de álcool e drogas do Brasil, que atua há 25 anos na área, há 104 leitos e todo o valor pago pelo tratamento é voltado a custear as despesas da instituição. O hospital também dispunha de vagas sociais, sem a cobrança de mensalidade, mas precisou encerrar o serviço por conta dos custos. Luciana explica que é feito um trabalho multidisciplinar com os pacientes, todos homens, e que são dependentes de diversas idades, de 18 a 78 anos. “Temos um perfil variado de pacientes, de diferentes idades e classes sociais. O uso de droga é um problema de saúde pública, que afeta a todos, é uma questão social e emocional, por isso, defendemos o acompanhamento e o tratamento multidisciplinar para uma mudança de comportamento”, afirma. 

O tratamento base na clínica é de seis meses, mas o tempo pode variar caso a caso. A diretora destaca que o acompanhamento após a internação é importante. Segundo uma pesquisa de 2022 com pacientes e ex-pacientes da clínica, a taxa de pacientes recuperados ficou em 23%. 

 

Há saída 

 

O hoje terapeuta Laudelino Bieli Junior, de 40 anos, é um exemplo de superação da dependência e de sucesso no tratamento. Dependente químico dos 14 até os 23 anos de idade, ele está em sobriedade há 17 anos. “Me envolvi cedo no uso de álcool e drogas e todo o processo do tratamento foi muito importante para mim, a internação, foco em espiritualidade, as reuniões, porque eu não acreditava que tinha um problema, achava que era só ‘falta de vergonha na cara’ ou falta de vontade. Com o tratamento, entendi que tinha uma dependência grave, que precisava desse acompanhamento”, conta. 

 

Com o vício em álcool, maconha e cocaína, Laudelino fazia parte de um grande grupo de pessoas que precisa de um tratamento de recuperação, por conta do uso de múltiplas drogas. Como explicam as especialistas, o tratamento da dependência química é muito afetado, dependendo do tipo de droga usada. “O uso de múltiplas drogas é o que mais interfere no resultado do tratamento, pois esses usuários estão sujeitos ao desenvolvimento de outros problemas, que vão além da intensidade e da interação dos efeitos da substância usada, apresentam níveis mais graves da dependência e com mais dificuldades de se manterem no tratamento”, ressaltam Sandra e Natália. E quanto mais cedo é o contato com as drogas, maior probabilidade de desenvolver a dependência. “Por isso, quanto mais cedo a busca pelo tratamento ocorrer, mais precocemente os problemas serão evitados”, esclarecem as professoras. 

 

Laudelino conta que começou com o álcool, na adolescência, para se integrar socialmente. “Pessoas da minha família bebiam, amigos, então, também comecei dessa forma. Depois, por curiosidade, experimentei a maconha e fiquei dependente. Já a cocaína eu comecei por conta de uma decepção amorosa. Era uma sensação de insaciedade, quanto mais consumia, mais o organismo pedia. Temos um ditado que diz ‘um é pouco e mil não bastam’.”, relata. Durante o tratamento, o terapeuta se interessou por esse universo e decidiu ajudar outras pessoas que, assim como ele, perderam a batalha para a dependência. Depois de ficar em recuperação, ele retomou o tempo perdido para as drogas, voltou a estudar, se especializou e hoje atua no hospital. “A droga tirou muitos anos da minha vida, mas com o tratamento, consegui recuperar o tempo e ainda ajudar outras pessoas”, acrescenta. 

 

Políticas estadual e prevenção 

 

Política do Estado de São Paulo, o programa Recomeço, desenvolvido pela Secretaria de Desenvolvimento Social (SEDS) e gerido pela Coordenadoria de Política Sobre Drogas do Estado de São Paulo (COED) também é uma opção de tratamento em Ribeirão Preto.  

 

Em nota, a Secretaria Municipal de Assistência Social explica que o programa objetiva o atendimento de pessoas maiores de 18 anos, que fazem uso problemático de álcool e outras drogas, por meio do acolhimento voluntário em comunidades terapêuticas (C.T.s). O atendimento é realizado em articulação com a rede de serviços públicos regionais, para garantir o atendimento dos acolhidos, que devem apresentar condições clínicas e psíquicas estáveis para realizar acompanhamento terapêutico por meio do programa, que determina como abordagem a abstinência de consumo e o isolamento social, como recurso de intervenção em caráter protetivo, transitório, voluntário e gratuito.  

 

Hoje, são 142 vagas disponíveis para Ribeirão Preto e região, sendo 35 vagas para mulheres na Comunidade Terapêutica Amostra e 107 vagas masculinas distribuídas nas comunidades terapêuticas Caminho da Paz, Horto de Deus, Viver e Comarev em Batatais.  

 

CAPS AD 

Além disso, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o serviço de referência para atendimento dessa população é o CAPS – Centro de Atenção Psicossocial, que faz o acolhimento, cuidado, tratamento e reabilitação.  Para acessar o CAPS AD II, a população pode buscar pessoalmente o serviço na Rua Pará, n◦ 1310, com atendimento de segunda a sexta-feira das 8h às 18h, e na segunda e quarta-feira até 21h. Ainda pelo SUS, há oferta de cuidado no CAPS infantil, responsável por atender crianças e adolescentes com transtornos mentais graves e persistentes e os que fazem uso de crack, álcool e outras drogas.  

PROERD

 

Além do combate aos crimes associados ao uso das drogas, a Polícia Militar do Estado também atua na prevenção com foco em reduzir o consumo, a dependência e as ocorrências dessa natureza. O Programa Educacional de Resistência a Drogas e Violência foi criado em 1993 como uma parceria da Polícia Militar com as escolas. O objetivo é conscientizar crianças e adolescentes dos riscos das drogas lícitas e ilícitas. De 2017 até 2023, mais de 4300 crianças participaram do PROERD no 3º Batalhão de Polícia de Ribeirão Preto. São realizadas palestras, aulas e a distribuição de materiais para os jovens. São dez lições ministradas por um Policial Militar fardado, em escolas estaduais, municipais e particulares, nos 5º e 7º anos do Ensino Fundamental, sendo cada aula aplicada uma vez por semana, durante o trimestre letivo. 

 

NÚMEROS

 

  • A dependência química atinge cerca de 6% da população brasileira, segundo pesquisas da Organização Mundial de Saúde (OMS).  
  • 12 milhões de pessoas fazem uso de algum tipo de droga e são caracterizadas como dependentes químicos.  
  • 18% da oferta mundial anual de cocaína é consumida por 2,8 milhões de brasileiros, ou seja, 1,4% da população. 
  • O consumo de drogas é um problema enfrentado por 94% dos municípios brasileiros, segundo uma pesquisa realizada em outubro de 2023 pelo Observatório do Crack, da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), com a participação de 3.336 cidades.  


Foto: Pixabay (Ilustrativa)

Compartilhar: