Professores apontam dificuldades no ambiente escolar para lidar com a neurodiversidade

Professores apontam dificuldades no ambiente escolar para lidar com a neurodiversidade

Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, estabelece diretrizes para o diagnóstico precoce, tratamento adequado e acesso à educação

Graças aos avanços da ciência, hoje se sabe que o cérebro humano funciona de maneira diferente para cada indivíduo. Ao identificar formas atípicas do neurodesenvolvimento, os profissionais chegaram ao conceito de neurodiversidade, que promove a ideia de que todos os indivíduos são diferentes, inclusive em seu funcionamento neurocognitivo.

 

A partir daí os estudos avançaram ainda mais e chegou-se a diagnósticos como o de Transtorno do Espectro Autista (TEA), Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), transtornos de linguagem, coordenação motora e transtornos específicos de aprendizagem como a dislexia e discalculia, entre outros. Vale ressaltar que diagnóstico não é rótulo, mas um direcionamento, acesso e garantia de direitos aos indivíduos neurodivergentes. 


Kédima Martins é mãe de três crianças, uma delas com TDAH. Todas estudam na rede pública municipal onde ela é professora há 13 anos. Segundo Kédima, a neurodiversidade é uma realidade bastante presente no ambiente escolar, mas os profissionais da educação não recebem formação e capacitação adequadas, tampouco suporte material, para atender essa demanda a contento. 


“As buscas por suporte são individuais e fora do ambiente profissional”, diz a professora, formada em Pedagogia e Letras/Libras, com pós-graduação em Atendimento Educacional Especializado (AEE), Surdocegueira, Neuropsicopedagogia, Educação Especial (Deficiência Auditiva), Educação Infantil e Alfabetização. “A sociedade não é inclusiva. Temos esforços individuais ou feitos por pequenos grupos e isso reflete na escola. Há equipes que se esforçam diariamente, pessoas que arcam com recursos próprios em busca de uma formação continuada. Infelizmente, os poucos profissionais capacitados não são valorizados”, observa. 


Para Kédima, conviver com as diferenças traz muito aprendizado, mas essa convivência deve acontecer com amparo legal, que só é possível por meio da implantação de políticas públicas.  “Caso contrário a realidade educacional é de sofrimento. Apesar de os professores seguirem lutando pela educação, precisamos que a sociedade saiba o quanto eles ainda estão desamparados. Professores não precisam de textos e aulas gravadas em plataforma com justificativa que está sendo ofertado formação continuada e sim de trocas presenciais com especialistas”, conclui.


Priscila Machado também é professora e mãe de um menino autista de 4 anos. O filho estuda em uma escola particular e ela dá aulas na rede pública municipal, onde enxerga a mesma realidade vivida por Kédima. “A equipe escolar não está preparada para lidar com a neurodiversidade. A gente, como mãe, conta sempre com a sorte de encontrar pessoas com empatia e vontade de aprender, nunca encontramos pessoas prontas, isso é muito raro. Tanto na escola pública, quanto particular, esses profissionais não são preparados, nem os regulares ou os que, teoricamente, estariam lá para essas especificidades, como atuar em salas de recurso ou como mediadores”, revela. 


Priscila diz que a escola em que trabalha é um ambiente escolar receptivo. Este ano ela organizou três palestras com temas voltados à neurodiversidade para os professores e gestores. “Meus colegas recebem bem estes conteúdos, mas temos que contar com essas alternativas porque formação é algo raro, superficial e pouco atraente. Fiz cursos e me mantenho atenta e atualizada sobre conteúdos que abordam as deficiências, tento me capacitar sozinha”, desabafa.


Raquel Del Monde, médica especialista em autismo, confirma essa boa vontade e interesse por parte dos educadores em busca de formação e capacitação para atender alunos neurodivergentes. Apesar disso, o panorama geral ainda é de despreparo para lidar com alunos que trazem questões de desenvolvimento atípico. “Os professores não têm essa formação específica, a grade curricular não contempla essa capacitação e eles acabam sem apoio institucional, sem respaldo e, por isso, há muita dificuldade no ambiente escolar”, afirma a médica, formada pela USP Ribeirão Preto, com residência em Pediatria (Unicamp) e Treinamento em Psiquiatria da Infância e Adolescência (Unicamp). 


O conhecimento de Raquel nessa área não é apenas profissional. Ela foi apresentada aos desafios e particularidades de um desenvolvimento atípico quando recebeu o diagnóstico de autismo do primeiro filho, há mais de 15 anos. “Vivencio esse cenário de educação inclusiva há duas décadas, quando ficou claro que meu filho precisava de um suporte diferente do que estava sendo oferecido e considerado padrão. Na época, vivemos situações de muito preconceito e, apesar dos avanços, seguimos na luta, buscando esse espaço para uma educação verdadeiramente inclusiva, em que todas as dificuldades e necessidades sejam atendidas. Vejo uma evolução grande com a inclusão do tema neurodivergência na vida das pessoas, mas ainda lidamos com o capacitismo. É preciso avançar para reduzir esse julgamento de que pessoas com deficiência são inferiores, que gera barreiras no ambiente escolar”, enfatiza.


Em 2012, foi sancionada a Lei Berenice Piana (nº 12.764/2012) que instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, estabelecendo diretrizes para o diagnóstico precoce, tratamento adequado, acesso à educação e proteção social e inserção no mercado de trabalho. Apesar de contemplar apenas o TEA, a lei é considerada um avanço, mas ainda há muito a evoluir na prática, especialmente no campo da educação, já que a falta de capacitação dos profissionais é um dos principais obstáculos para a inclusão, de fato, das crianças e jovens com neurodiversidades. 


A médica enfatiza que a legislação, apesar de muito importante, ainda é falha ao excluir pessoas com outros tipos de transtorno do desenvolvimento, especialmente a dislexia e a discalculia, que impõem dificuldades muito grandes para o aprendizado. “É preciso contemplar outras especificidades para que as neurodiversidades tenham respaldo mais abrangente”, afirma. 

 

Formação e suporte


Na rede municipal de ensino, a Secretaria de Educação de Ribeirão Preto informa que os professores de Atendimento Educacional Especializado (AEE) são especialistas no atendimento da Educação Especial. A pasta também realiza formações constantes, por meio da Divisão de Educação Especial. 


“As formações estão alicerçadas a partir da Resolução CNE/CP Nº 1, de 27 de outubro de 2020, que dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica. Ela busca garantir aos professores sólidas situações de aprendizagem, fortalecendo uma cultura de rede que prioriza a aprendizagem dos estudantes e a atuação das comunidades escolares como protagonistas do processo educativo”, diz a nota.


A Educação Especial da rede municipal conta com 178 professores de AEE, 412 agentes de suporte operacional (profissionais de apoio) e mais 394 professores mediadores.
Quanto ao serviço de psicologia, a Secretaria informa que atende as demandas trazidas pelas diversas Divisões da Secretaria Municipal de Educação, pelas equipes gestoras das escolas e trabalha nas ações de promoção de saúde mental, fortalecimento do espaço escolar, compreensão da identidade, características e potencialidades do território educacional, promovendo e participando da articulação com os serviços de proteção integral das crianças e adolescentes atuantes no município. 


Também faz parte do escopo de trabalho do Serviço de Psicologia Escolar a realização de atividades formativas acerca da prevenção e promoção da saúde mental e do desenvolvimento das habilidades socioemocionais no ambiente escolar.


Já a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo esclarece que os estudantes da educação especial — com deficiência (auditiva, física, visual, intelectual), Transtorno Global do Desenvolvimento (TGD), Transtorno do Espectro Autista (TEA) e altas habilidades/superdotação —, contam com docentes especializados no contraturno e no projeto de ensino colaborativo, professor de libras e profissional de apoio escolar. Nesta área, a Escola de Formação e Aperfeiçoamento dos Profissionais do Estado de São Paulo (Efape) oferece Curso de Educação Especial para que os profissionais da educação entendam as especificidades e contribuam com os processos de ensino e aprendizagem de cada estudante.


No final de agosto, a pasta iniciou o Psicólogos nas Escolas, programa na rede estadual com 550 psicólogos que passam a integrar o quadro das unidades de ensino. A contratação tem como objetivo melhorar a qualidade do processo de ensino-aprendizagem. O programa prevê que esses profissionais atuem principalmente em conjunto com os professores orientadores de convivência e diretores escolares.

 

Prêmio para iniciativas


Ações e iniciativas de êxito desenvolvidas em prol das pessoas com deficiência no ambiente escolar serão reconhecidas pelo Governo de São Paulo que lançou, em setembro, o Prêmio de Educação em Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo. A iniciativa envolve, de forma conjunta, as secretarias da Educação e dos Direitos da Pessoa com Deficiência. O objetivo é fomentar iniciativas em cinco categorias: escolas, diretorias de ensino, professores, estudantes e grêmio estudantil. 


Serão avaliadas boas práticas promovidas na rede entre 2022 e 2023 e voltadas a temas como esporte inclusivo, tecnologia assistida, comunicação inclusiva, acessibilidade curricular, convivência e enfrentamento ao capacitismo. O Prêmio deve ser realizado anualmente em setembro, em decorrência do Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência (21/09). 
Cada categoria premiará três projetos no valor total de R$ 25 mil. No caso das diretorias de ensino e escolas a premiação será de R$ 2 mil. Já para o grupo de professores o valor será de R$ 1.500,00, enquanto estudantes e grêmios estudantis receberão R$ 1 mil. Estão previstas ainda cinco menções honrosas de R$ 500,00 cada. As datas e calendário da primeira edição do Prêmio serão divulgados em breve. 


Foto destaque: Pixabay

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