Perspectiva feminista no Direito

Perspectiva feminista no Direito

A professora Fabiana Cristina Severi defende o uso de abordagens teóricas e métodos jurídicos feministas para eliminar estereótipos de gênero

Coordenadora do projeto Reescrita de Decisões Judiciais em Perspectiva Feminista, que é formado por pesquisadoras e acadêmicas brasileiras de diferentes regiões do Brasil, a professora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da Universidade de São Paulo (USP) Fabiana Cristina Severi defende que o trabalho avalia como o raciocínio jurídico feminista pode transformar decisões judiciais ou torná-las mais sensíveis aos interesses, necessidades e perspectivas de mulheres e de outros grupos marginalizados.

 

De acordo com ela, o uso dessa abordagem não compromete a imparcialidade das decisões judiciais. Em entrevista para a Revide, Fabiana também explica que sua dedicação à docência tem sido em contribuir para que novas gerações de profissionais do Direito saibam reconhecer o valor e a importância de se defender a democracia, os direitos humanos e a igualdade em suas práticas profissionais futuras.

 

Quais são os objetivos do projeto Reescrita de Decisões Judiciais em Perspectiva Feminista?

 

O projeto reúne esforços colaborativos de professoras e pesquisadoras do Direito pertencentes a várias instituições de Ensino Superior no país, públicas e privadas, de distintas regiões, para reescrever decisões judiciais proferidas por tribunais brasileiros utilizando, para isso, abordagens teóricas e métodos jurídicos feministas. A reescrita é um exercício didático. Portanto, não produz efeitos sobre a decisão original. É uma prática acadêmica de imaginação, que visa avaliar os possíveis efeitos que o uso da abordagem feminista poderia ter produzido em um caso real.

 

O projeto está sendo desenvolvido há mais de um ano aqui no Brasil, como experiências de sala de aula, envolvendo estudantes de graduação e de pós-graduação em Direito. A iniciativa acompanha propostas desenvolvidas em diversos países, como Inglaterra, Estados Unidos, Índia, África do Sul e México.

 

Tal como tem ocorrido nessas experiências estrangeiras, o projeto brasileiro tem conseguido avaliar como o raciocínio jurídico feminista pode transformar decisões judiciais ou torná-las mais sensíveis aos interesses, necessidades e perspectivas de mulheres e de outros grupos marginalizados. Ele se propõe a favorecer a construção de modelos argumentativos que poderão ser usados por profissionais das diversas áreas do Direito, disseminando uma forma de pensar e decidir o Direito.

 


Como a Justiça brasileira entende o feminismo no país?  

 

No Brasil, é mais comum considerarmos o feminismo como movimento social que busca garantir a ampliação dos direitos das mulheres e não como uma abordagem teórica de análise do Direito. Mas, em outros países, como os Estados Unidos, as teorias feministas sobre o Direito são estudadas nos cursos jurídicos há muito tempo, ao lado de outras tantas vertentes teóricas.

 

Então, outro objetivo do projeto brasileiro é, por meio das experiências de reescrita, acelerar a incorporação das teorias feministas nos cursos de Direito do país, ao mesmo tempo em que demonstra como ela pode ser bastante importante para a análise de muitos casos ou conflitos jurídicos.

 

Por que, mesmo quando as mulheres são vítimas, muitas vezes elas são tratadas como rés pela Justiça brasileira?

 

Ao contrário do que prevalece no senso comum, a decisão judicial não está imune a vieses e estereótipos. Ainda que de modo irrefletido, juízes e juízas tomam como parâmetro para analisar um caso a sua própria visão de mundo ou os estereótipos que trazem consigo sobre outras pessoas ou grupos sociais.

 

Em uma sociedade tão sexista e racista como a nossa, os estereótipos sobre as mulheres, especialmente as afetadas por múltiplas formas de discriminação, quando reproduzidos nas decisões, acabam sendo prejudiciais na garantia de direitos. Até pouco tempo atrás, muitos estereótipos estavam presentes na legislação brasileira. Em um passado não tão distante, tínhamos leis que consideravam mulheres casadas como sujeitos relativamente incapazes e que atribuíam ao marido o dever de autorizar a profissão de sua companheira (situações previstas no Código Civil de 1916).

 

Estes são alguns exemplos de leis que refletiam o pensamento machista predominante à época. Após a Constituição Federal de 1988 ter reconhecido o direito à igualdade e à não discriminação, a legislação brasileira foi alterada para eliminar a presença desses tipos de diferenças baseadas em estereótipos sexistas. 

 

Fabiana Severi afirma que, em uma sociedade tão sexista e racista, os estereótipos sobre as mulheres, quando reproduzidos nas decisões judiciais, acabam sendo prejudiciais na garantia de direitos

 

Essa mudança tem sido colocada em prática?

 

No dia a dia dos tribunais, a eliminação de estereótipos não é tão simples. Ainda é comum que mulheres que enfrentam um processo acabem sendo revitimizadas, que saiam do lugar de vítima para o centro das acusações.

 

Muitas vezes, isto ocorre em função de vieses que guiam a atuação do magistrado, como se existissem condições para que aquela mulher seja digna da tutela requerida. Em casos de violência sexual, por exemplo, observa-se o estereótipo da “mulher honesta”: a construção de uma mulher recatada, que não sai sozinha com determinadas vestimentas e que não cria situações nas quais uma violência se mostraria “justificável”. Ou seja, ela acaba sendo responsabilizada indiretamente pelo injusto sofrido.

 

Poderia citar algum exemplo?

 

Pudemos conhecer os detalhes de um caso que se tornou emblemático no Brasil em termos de revitimização por meio do podcast Praia dos Ossos. Trata-se de um feminicídio envolvendo Ângela Diniz e seu então companheiro Doca Street. Pela sequência de oito episódios, é possível percebermos como os advogados do réu mobilizam uma série de estereótipos de gênero que, ao final, vão convertendo o réu em vítima e a vítima em alguém responsável pela sua própria morte.

 

Essa dinâmica não aconteceu só neste caso, mas era quase um padrão da Justiça brasileira. O argumento da legítima defesa da honra utilizado neste caso célebre foi aceito por tribunais brasileiros em muitos casos e só passou a ser proibido em processos como o de feminicídio em 2021, após decisão do Supremo Tribunal Federal. Por essa tese, a defesa argumentava que era aceitável o comportamento do réu de assassinar ou agredir a vítima, porque ela teria ferido sua honra, seja pela prática do adultério ou por ações que ela tenha realizado que não seriam compatíveis com o ideal de mulher honesta. 

 

É possível mudar esse panorama no país?

 

É possível – e necessário – mudar esse panorama no país. Isso passa pela ampliação do conhecimento técnico de operadores e operadoras do Direito sobre como analisar determinados casos judiciais sob a perspectiva de gênero ou feminista. Porque são essas abordagens que ajudam a eliminar estereótipos de gênero que têm sido prejudiciais às mulheres e a outros grupos em vulnerabilidade.

 

É importante que advogados e juízes tenham mais conhecimento sobre as perspectivas feministas para atuarem em processos de forma mais respeitosa e, de fato, justa, sem deixarem a imparcialidade de lado?

 

Uma dúvida muito recorrente das pessoas quando ouvem falar do projeto é se o uso de teorias ou abordagens feministas não comprometeria a imparcialidade das decisões judiciais. Isso porque as pessoas acham que usar uma abordagem feminista seria já se colocar, desde o início da análise de um caso, em favor da mulher ou das mulheres envolvidas no conflito, em detrimento dos direitos da outra parte.

 

Mas o que as experiências que estão acontecendo em nossa rede de pesquisadoras têm demonstrado é algo muito distante disso. Elas têm permitido a identificação de diversos tipos de vieses nas decisões originais que, estes sim, afetaram a imparcialidade. Costumamos responder que o conhecimento sobre e o uso de perspectivas feministas contribui para que profissionais do Direito levem ainda mais a sério o princípio da imparcialidade. O contato com as perspectivas feministas permite que os profissionais de Justiça ampliem seus olhares sobre as formas de enxergar um mesmo problema.

 

Não necessariamente a perspectiva feminista vai levar, sempre, a um resultado favorável às mulheres em um caso concreto. Podemos considerar, inclusive, processos em que as mulheres estão nos dois polos ou casos em que não estamos discutindo algum tema que envolva alguma questão de gênero ou de direitos das mulheres. O que está em questão nas teorias feministas e nos estudos de gênero é mais algumas formas de raciocínio jurídico e menos uma defesa das mulheres, de modo essencialista.

 

É necessário que os cursos de Direito no país trabalhem melhor as questões de gênero? Como é possível fazer isso?

 

Pouca gente sabe, mas a Lei Maria da Penha, que foi aprovada em 2006, previu em seu texto, como diretriz de prevenção à violência doméstica e familiar contra mulheres e meninas, a inclusão de conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher nos currículos escolares brasileiros de todos os níveis de ensino, incluindo o Ensino Superior.

 

Nos cursos jurídicos, essa diretriz é de crucial importância. São os cursos de Direito que formam quase todos os profissionais que atuam no sistema de Justiça. Sem a formação correta para as questões de gênero, raça, etnia e direitos humanos, é muito difícil que tais profissionais consigam atuar com a diligência devida em muitos casos jurídicos, pois são esses conteúdos formativos que ajudam a problematizar a cultura machista, sexista e violenta que atravessa todos e todas nós. 


Fotos: Revide

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