Bur(r)ocracia

Bur(r)ocracia

O serviço público deve ser compreendido inteligentemente e com uma dose inevitável de fluidez, racionalidade e economicidade. Governos existem para servir as pessoas e não para se servir da sociedade.

 

"O progresso é, por definição, aquilo que escapou à previsão das regras e regulamentações; está, pois, forçosamente fora do campo das atividades burocráticas" (Ludwig Von Mises)

 

 

O tema deste artigo revela-se interessante e oportuno, por versar sobre questão conflituosa, cercado de estigmas.

 

De início, cumpre trazer o significado do vocábulo. Conforme o dicionário Aurélio[1], burocracia é a “administração da coisa pública por funcionários, sujeitos  a hierarquia, rotina e regulamento inflexíveis”

 

Por outro lado, para o citado glossário, o termo pode ser utilizado de forma pejorativa, qual seja, “a morosidade ou complicação no desempenho de serviço administrativo, decorrente do poder abusivo da burocracia”.

 

Neste contexto, a burocracia, enquanto desvio de natureza de atos normais, não precisa de lógica para viver. Ao contrário, ela prescinde da inteligência, pois cada ato se justifica por si mesmo, independentemente da sua finalidade.

 

Daí, decorrem as suas sequelas, como os inesgotáveis reconhecimentos de firma; as autenticações de documentos; as comprovações de pagamentos de custas e de depósitos recursais; os intermináveis recursos; os famosos carimbos colocados nas folhas onde nada está escrito - nelas, se carimbando a expressão: “EM BRANCO”, e etc.

 

O excesso de normas e regulamentos, não compiladas e esparsas criou uma estrutura estatal sobremodo ineficiente, tendo como corolário uma acachapante e “preguiçosa” burocracia fundada na desconfiança e presunção da má-fé do empreendedor, perniciosa a livre iniciativa da atividade econômica. 

 

Deste modo, tudo deve ser provado, sendo de nenhuma importância a informação dada pelas partes. Afirmamos, portanto, que a burocracia é alimentada pela desconfiança, que gera insegurança, carecendo de infindável ritualismo formalista, com ilusório aparato de segurança e com enorme distanciamento da Justiça, cada vez mais formal do que real.  

 

Reconhecemos que a forma dá segurança aos atos da vida civil e idoneidade aos negócios. Entretanto, quando a forma passa encontrar razão de ser em si mesma, deixando de ser instrumento, ostentando vida própria, chegamos ao formalismo, manifesto inimigo da Justiça, sendo causa e efeito da burocracia, e terreno fértil para a corrupção.

 

Esta é, indubitavelmente, nossa herança cultural, marcada por forte natureza burocrática. Todavia, vale dizer que a cultura não é imutável, mas sua modificação tem como pressuposto o seu conhecimento e a vontade de alterá-la, sob a perspectiva da teoria tridimensional do direito, centrada no trinômio: fato-valor-norma[2].

 

Entretanto, a mudança da cultura não depende apenas de uma lei que determine sua alteração, sob pena de incorrer no risco de se deixar aprisionar nas teias das abstrações, perdendo contato com a realidade.

 

Portanto, antes de tudo, é necessário uma maior racionalidade administrativa do nosso sistema judicial, a fim de propiciar a aplicação de leis favoráveis a procedimentos mais simples, claros, ágeis, no sentido de conferir aos órgãos jurisdicionais os meios de que necessitam para que a prestação da justiça se efetue com a presteza indispensável à eficaz atuação do direito, repelindo desta forma o nefasto “culto exacerbado a forma” no processo e nos procedimentos administrativos, perante as repartições públicas.

 

A enorme quantidade e a complexidade da legislação brasileira confundem o cidadão e também as empresas, que têm dificuldades em compreender e atender às exigências legais, bem como, os custos decorrentes das delongas para apuração de impostos, em detrimento daquele que poderia ser destinado a estratégia do negócio[3], além dos reflexos inerentes aos custos empresariais sobre a formação do preço das mercadorias e serviços.

 

Não obstante as benesses tecnológicas inerentes ao ciberespaço, o foco de toda a automação no Brasil, muitas vezes não é simplificar a vida das empresas, é aumentar o controle da fiscalização.

 

Todavia, há um lastro de esperança. Conforme notícia divulgada recentemente nas mídias, o tempo médio de abertura de empresas no Brasil ficou abaixo de um dia pela primeira vez na história[4].

 

Esta notícia não faz manchete, não causa polêmica e não traz audiência. Mas é de suma importância, porquanto representa um avanço de nossas instituições e de seus aparatos em benefício do crescimento do país, fomentando a geração de riquezas (emprego e renda).

 

Governos existem para servir as pessoas e não para se servir da sociedade. Medidas como a simplificação de impostos, obrigações acessórias, criação de cadastro único de regularidade fiscal, e o estabelecimento de prazos máximos para que um requerimento seja concedido/aprovado, o compartilhamento de informações entre os fiscos, o eSocial para empresas, o portal único do comércio exterior, padronização na nota fiscal de serviços eletrônica e a simplificação do registro de empresas, dentre outros, podem ser usados como antídoto contra os efeitos nocivos da burocracia.

 

Contudo, uma simplificação mais radical exige uma reforma tributária com a adoção de sistemas mais automáticos, mais universais, com menos regimes especiais e excepcionalidades, demandando debates, discussões públicas e apoio político.  

 

No mesmo compasso, as decisões judiciais devem ser mais aderentes aos titulares de direitos tutelados, de modo a não criar embaraços a sua concretude. O processo contemporâneo é um processo de resultado, acima de tudo.

 

A título de ilustração, recentemente a Colenda 7ª Turma do E. Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região, com sede em Brasília, concedeu auma indústria de produtos alimentícios o direito de compensar créditos de PIS e Cofins, resultantes da exclusão do ICMS, sem a necessidade de ter que retificardeclarações fiscais desde 15 de março de 2017 — data de julgamento do SupremoTribunal Federal (STF). Com a decisão, basta o pedido de habilitação do crédito, que está sujeito a homologação pela Receita Federal, para posterior compensação[5]. 

 

Levando em consideração estes aspectos, a tecnologia é o insumo para a implantação de uma política de qualidade pautada por diretrizes e indicadores estratégicos que visem modernizar continuamente a gestão e garantir a excelência no atendimento ao usuário/cidadão.

 

Todavia é necessário atermos que na formação do vocábulo “burocracia”, após a vogal “u”, tem apenas uma consoante “r”, não sendo, portanto, “burrocracia”, ou seja, desprovida de finalidade a atingir, aquela que considera a forma, o procedimento, o ritual, um fim em si mesmo.

 

Na sequencia, partindo-se desta premissa, a chave da eficácia encontra-se na redução das atividades-meios e na eliminação das formalidades que não agregam valores às atividades fins, enquanto nascente de novos empreendimentos e riquezas.

 

O serviço público deve ser compreendido inteligentemente e com uma dose inevitável de fluidez, racionalidade e economicidade. A inflexibilidade e a rigidez são próprias do formalismo ultrapassado e não coexistem com a nova Economia 4.0.

 

*Foto:  Free-Photos por Flickr (Imagem ilustrativa).

 

 

Notas

 

[1] FERREIRA, Aurelio Buarque de Holanda. Mini Aurélio: o dicionário da língua portuguesa. 8ª ed. Curitiba: Positivo, 2010. Pg. 120.

 

[2] REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. P. 64-65.

 

[3] Representado pelo conceito econômico de custo de oportunidade, qual seja, o custo associado a uma determinada escolha medido em termos da melhor oportunidade perdida.  

 

[4] ACCAR, Yuri. “Pela 1ª vez na história, tempo médio de abertura de empresa fica abaixo de um dia, diz secretário”. Portal R7. Editoria de Economia, publicado em 09/09/2022. Disponível em: https://noticias.r7.com/economia/pela-1-vez-na-historia-tempo-medio-de-abertura-de-empresa-fica-abaixo-de-um-dia-diz-secretario-09092022. Capturado em: 12/09/22.

 

[5] ROSA, Arthur. "TRF livra indústria de burocracia para compensar créditos de PIS/Cofins". Valor Econômico. Editoria: Legislação. Publicado em: 03/09/2022. Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2022/09/03/trf-livra-industria-de-burocracia-para-compensar-creditos-de-piscofins.ghtml. Capturado em 12/09/2022.

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