Construindo sentidos

Construindo sentidos

Viktor Frankl, em seu livro “Em busca de sentido”, conta sua própria experiência diante da maior das privações: da liberdade de ser humano. Em meio à guerra e ao aprisionamento no campo de concentração de Auschwitz, palco das mais indizíveis atrocidades, do exercício do sadismo e verdadeira concretização de uma alucinose coletiva, busca, em toda a sua mais alijada experiência, algo que dê um sentido, que, a seu ver, encontra morada  naquilo que nomeia como “liberdade última”. Para ele, esta não seria perdida pelo mero confinamento físico, ainda que despojado inclusive de todas as condições do humano, mas estaria associada à atitude que se assume diante  das condições que são dadas, ainda que haja “[...] restrição forçada de fora sobre seu ser.”.

Mia Couto, em seu texto “Murar o medo”, lembra-nos de que a construção de muros, em nome de uma pretensa segurança, não é algo recente, sendo em nome dela colocados e conservados muitos no poder. Para ele, vivemos em estado de emergência. Para se conter liberdades individuais, impõem-se restrições a serviço de impedir que sejam formuladas questões - ou melhor, que se pense. Segundo Mia Couto, a indignação diante das violências que se observam na sociedade é menor que o medo, potente que é em silenciar a capacidade de pensar. Vale citar o autor: 

“É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A Grande Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente morreram mais chineses construindo a muralha do que vítimas das invasões que realmente aconteceram. Diz-se que alguns trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora do quanto o medo nos pode aprisionar.”. O próprio aprisionamento, o mental, mais do que qualquer outro confinamento, é o pior dos muros.

Nas condições de restrição individual, na visão de Frankl, ainda que uma realização criativa encontre-se fora de possibilidade de concretização, ainda assim se pode apreender sentido - Frankl vive isso seriamente: de sua experiência em campos de concentração, lançou as bases para a Logoterapia. Embora o autor nos fale a partir de uma experiência terrivelmente dolorosa, em que se se vive e se impõem a desumanização e a desvitalização, além do medo, abre-nos a possibilidade de considerar que atitude podemos ter ante qual seja o sofrimento que tenhamos. Como diz, sofrimento toma todo o espaço da alma, não tendo tamanho, não comportando, portanto, comparações.

Ao se assumir o que acontece e, assim, o sofrimento que lhe é inerente, ressignificar a própria existência se desdobra em múltiplas possibilidades. Dessa perspectiva, sofrer possibilita a realização de valores. Para Frankl, em qualquer situação, é da liberdade individual transformar a situação de sofrimento na realização subjetiva e interior de valores - a atitude com a qual se lida e se convive com o que acontece. Como lembrado pelo autor, Dostoievsky disse “Temo somente uma coisa: não ser digno de meu tormento.”.

Se as coisas que nos acontecem não estão sob nosso controle, a atitude diante delas é a possibilidade que temos de enfrentar. Somos, assim, constantemente indagados sobre que atitude tomar diante da vida. A busca de sentido não se restringe apenas à vida, mas abarca também sofrimento e morte. É da nossa decisão fazer frente, enfrentar-se, estranhar-se, entranhar-se. Sim, pois o que ajuda a sustentar é poder ter em que, internamente, segurar-se. Em última instância, amparar a si mesmo; oferecer, a si, colo; reconciliar-se com a fiel testemunha que nos acompanha desde sempre. Para Frankl, situações externas difíceis revelam a força interior de cada um de nós. Ao não se poder mudar a situação, nem o outro, o que se encontra sob nossa alçada é poder mudar nós mesmos.

No entanto, não é tarefa das mais fáceis, mas daquelas impossíveis, vai além da vontade de sentido. É ter que abrir caminho dentro de mata fechada, desbravando, desconstruindo-se, reformando-se, reformulando-se. É se dar conta de processos que ocorrem tão dentro, mas tão dentro, que, apesar de não se ver, sentem-se seus efeitos. A busca de sentido pode ser uma, não  única, possibilidade de se lidar e conviver com o que acontece. O que essa busca traz em seu bojo é a indagação, que pode permanecer aberta. A resposta absoluta fecha e liquida a questão. Traz certeza e impossibilita o pensar, o que pode servir à validação de crenças que impactam o aprender com a experiência e o criar. Em permanecendo aberta a questão, possibilita-se que múltiplos significados e sentidos possam ser experienciados. Afinal, como diz a Alice do País das Maravilhas “Quando acordei hoje de manhã, eu sabia quem eu era, mas acho que mudei muitas vezes desde então.”. E porque mudamos construímos significados que promovem nossos sentidos e novas formas de sentir, de sofrer desde dentro, isto é, de suportar, conter no espaço mental.

Os significados não estão prontos, dados, não são únicos. Nem estão apenas certos ou errados, em um sistema fechado, ou isso ou aquilo. Estão aí, à espera de serem encontrados, pensados e, ao serem sentidos, fazerem sentido para alguém em dado momento, como potencialidades que podem ser usadas.

Tal empreitada, no entanto, desperta um sem número de emoções, dentre as quais se pode nomear o medo - quem é que vou encontrar quando comigo me deparar? Como saber sem fazê-lo? E o medo de sentir medo? E, como uma ciranda viciosa, em que um medo leva a outro em um movimento sem fim, Mia Couto finaliza seu texto: “E, se calhar, acrescento agora eu: há quem tenha medo que o medo acabe.”. Quem é que sabe que abertura trará atravessar o medo, ir além do próprio medo...

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