Dando o que pensar

Dando o que pensar

“O que será que será [...] / Está na natureza, será que será / O que não tem certeza, nem nunca terá / O que não tem conserto, nem nunca terá / O que não tem tamanho / O que será que será [...] / O que não faz sentido / O que será que será / Que todos os avisos não vão evitar / Porque todos os risos vão desafiar / Porque todos os sinos irão repicar [...] / O que não tem governo, nem nunca terá O que não tem vergonha nem nunca terá / O que não tem juízo.”  (O que será - À flor da terra - Chico Buarque).

“O que será que me dá [...] / O que não tem mais jeito de dissimular / E que nem é direito ninguém recusar [...] / O que não tem receita [...] / Que me queima por dentro, será que me dá / Que me perturba o sono, será que me dá / Que todos os tremores me vêm agitar / Que todos os ardores me vêm atiçar / Que todos os suores me vêm encharcar / Que todos os meus nervos estão a rogar / Que todos os meus órgãos estão a clamar [...].”. (O que será - À flor da pele - Chico Buarque).

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Situação difícil esta que estamos vivendo. Em um paradoxo, nunca antes o coletivo dependeu tanto do isolamento de cada um de nós. Ironicamente, sozinhos seremos todos mais fortes e unidos.

Interessante pensar que, até “ontem”, isolávamo-nos em nosso mundo virtual, distanciando-nos de nossos pares mais próximos. Hoje, para haver o par, precisa-se estar cada um em seu confinamento - íntimo e particular. Interditado o desejo, quando então proibido, castrado, eis que emerge a falta em seu esplendor - o quanto enxergaremos dependerá de até onde os nossos olhos alcançarão. 

Diante dos novos tempos, que se deseja temporário, mas que, sob a égide da realidade, impõe-se, a negação ou o desespero se mostram como dois pontos em uma mesma reta, tal como a impotência e a onipotência. Entre os dois, pode haver algo de intermediário que revele a potência e a capacidade criativa, transformadoras da situação experienciada.

Vera Iaconelli, psicanalista, ao falar sobre os impactos psicológicos do confinamento - este não apenas recomendado como também imperativo, dado que regido pela realidade, como medida em favor da vida - aponta que uma experiência em si não implicaria uma aprendizagem direta. Antes de tudo, conteria uma oportunidade a ser usada ou não. Gilberto Safra descreve que não temos e sim fazemos uma experiência. O quanto cada um de nós poderá usufruir dela dependerá das possibilidades e dos recursos internos de encontrar pontos que se situem entre a negação e o desespero, um ponto potente em meio a um trânsito dos mais turbulentos.

Sabemos que, em meio à turbulência área, ao se estar submetido a mudanças de pressão, não seria egoísmo colocar a máscara de oxigênio primeiro em nós - desde que em boas condições - e depois em uma pessoa mais vulnerável; é, antes de tudo, condição e possibilidade de sobrevivência de ambos. Como uma metáfora, cairia como uma luva, tamanha sua potência protetora, pois não estamos passando por uma grande turbulência emocional? E o que fazer diante dela?

Em uma situação como esta, sem precedentes e para a qual não possuímos registro, que máscara poderia ser tão potente a ponto de permitir uma oxigenação que desintoxique, higienize e se torne uma barreira protetora que nos impeça de uma contaminação viral - em seu duplo sentido, incluindo o vértice mais atual do termo remetendo a uma repercussão geral e rápida na internet - paralítica?

Não, não estou me referindo à nenhuma máscara concreta que possa ser encontrada em prateleiras ou compradas em farmácias. Não, não estou sugerindo o uso em massa de máscaras protetoras que, diga-se de passagem, devem ser usadas de fato pelos mais vulneráveis e sintomáticos, e profissionais de saúde, que se encontram em condições de embate na linha de frente, no fronte da nossa batalha, e que estes sim necessitam da máscara concreta para tratar todos os demais, mais vulneráreis. Aliás, tal máscara, em meio a situações aflitivas, pode inclusive ser mal utilizada, não se mostrando, então, páreo ao medo, à ameaça, à angústia sentida no âmago de cada um de nós, o que interferiria no seu uso, tornando-o inócuo. Não basta nem mesmo a essencial assepsia bem feita das mãos. Trata-se de outro importante aliado na proteção, que é o cuidado à saúde mental. 

É preciso também cuidar da mente para não perdermos nossa condição fundante e pensante, fundamental para a nossa sobrevivência. Sem oxigênio perdemos não apenas os sentidos da percepção, mas também àqueles atribuídos à vida. É preciso cuidar para que as razões para se estar vivo não sucumbam em meio aos terrores muitas vezes sem nome, frente ao medo do colapso interno, em que as condições mentais e emocionais se paralisariam. Assim como se indica a ventilação do ambiente, é preciso também arejar a mente e ventilar as emoções, produzindo um ar desintoxicado que inspire e contagie cada um de nós e que nos sustente em meio às turbulências enfrentadas.

Uma mente precisa de outra mente para se desenvolver e funcionar. Ao nos proteger do colapso mental, temos mais possibilidade de também ajudar o outro. É este o real sentido de poder, primeiro, produzir o próprio oxigênio que nos permitirá respirar em virtude não apenas das pressões externas, mas também internas. Só então se torna possível auxiliar o outro no sentido de encontrar condições mais propícias de sobrevivência, o que depende, inclusive, da possibilidade de resgatar a capacidade de pensar em meio ao caos. 

Em uma atmosfera em que tudo permanece como em suspensão, em que o indivíduo tem seu narcisismo ferido em sua onipotência, demonstrativo de sua pequenez e vulnerabilidade, deparamo-nos com uma nova ordem que altera a noção de temporalidade. Se antes não se tinha tempo, hoje a questão tem sido o que fazer com o tempo que se tem. E isolar-se nunca foi tão necessário para se poder pensar e estar de fato junto.

Winnicott, psicanalista inglês, já afirmava que a experiência de estar só emerge de um fenômeno paradoxal - em um momento do desenvolvimento emocional, quando ainda muito crianças, em que somos o mais dependentes. É como se iniciaria a experiência de si mesmo - só na presença de alguém. Um estar só que possa ser amparado pela experiência da presença. E quanta presença pode ser sentida, ainda que em confinamento, a partir da percepção da solidariedade entre nós.

Corresponderia a um ato de fé na vida: diante de algo desconhecido, que nem pode ser visto, mas cujos efeitos podem ser dolorosamente reconhecidos, poder contar com o outro, acreditar, cuidar e seguir. Diante de algo inédito, poder inaugurar um espaço mental continente, que dê forma ao que ainda não tem, resgatando-se a função pensante para que, criativamente, novas condições mentais possam nascer. Poder retornar à pergunta do Chico, “o que será?”, conferindo-lhe novo sentido e vida. O que faremos dessa experiência e que ressignificações ela permitirá dependerão das condições internas individuais. Em um momento em que parar é da ordem do dia, é dentro da gente que não se pode parar, a vida que nos move.

Quando não se tem para onde correr, resta estarmos só conosco, abastecidos de uma presença interna. Em tempos de contradições e turbulências, outro paradoxo deverá ser sustentado: o do abraçar sem os braços e os abraços. É preciso encontrar outra forma de nos darmos as mãos. Podemos estar diante de um novo acontecer do humano, de como o ser se expressa em cada humano, do que pode resultar uma nova constituição de si mesmo que passa pela relação conosco e com o outro. A solidariedade pode ser outra forma de nos darmos as mãos e, assim, ninguém solta a mão de ninguém. Paradoxalmente, seguraremos mais nossas mãos através da sustentação de um vínculo à distância, ao perceber que o que faço impacta o outro. Nunca foi tão importante usar a experiência que estamos tendo. O que será? Isso dependerá de nós, de cada um dentre nós. Posso contar com você? Vamos ficar em casa? Nas palavras de um poeta:

 

“Será que é tempo que me falta pra perceber / Será que temos esse tempo pra perder / E quem quer saber / A vida é tão rara (tão rara) / Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma / Até quando o corpo pede um pouco mais de alma / Eu sei, a vida não para / A vida não para não / A vida não para.” (Paciência - Lenine).

 


Imagem: Poema "Mãos Dadas" - Carlos Drummond de Andrade

 

Por: Ana Flávia de Oliveira Santos - Psicóloga (FFCLRP-USP) - CRP 06/90086, Mestre em Ciências - Área Psicologia (FFCLRP-USP) e Especialista em Psicologia Clínica (CFP).

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