Emergência

Emergência

“Roda mundo, roda-gigante / Rodamoinho, roda pião / O tempo rodou num instante / Nas voltas do meu coração.” (Chico).

E não mais que de repente, estamos imersos em um mundo novo. Como a Alice, que entrou na toca do Coelho sem tempo para parar e pensar, caindo fundo em um buraco, que mais parecia não ter fim. Ao cair, pergunta-se o que em seguida aconteceria, estando escuro demais para ver algo. Dizia ela a si que depois de cair tão fundo, considerariam-na corajosa. Mas onde, então, estaria caindo?

Assim como nós, penso! Sem nem tempo de nos despedirmos do nosso mundo antigo. Para onde vai a nossa saudade, se nem tempo de chorar tivemos para nos enlutarmos frente a um mundo que já se foi? Nem pelas pessoas que fomos e já não mais somos? Pelas vidas que já não mais levamos? E que possivelmente não mais as encontraremos... A não ser dentro de nós, na memória? Que carregou tristezas, roseiras e até a saudade para lá (Chico)? Afinal, em que e em direção a que mundo estamos caminhando? Ou caindo? É preciso mesmo muita coragem! Como a da Alice. Que cai, cai, cai... em que mundo? Aliás, Para onde foi o nosso mundo?

"Talvez nos encontremos de novo, / mas ali onde você me deixou / Não me achará novamente." (Bertolt Brecht).

Bem que queria ter podido parar no instante antes disso tudo acontecer. Só para poder me despedir. Olhar e dizer: não foi por mal. Até mais ou nunca mais? E, então, algum luto poder fazer e viver! Para não viver de luto. Viver enlutado está mais para morrer. E é preciso seguir. Por onde? Para onde? Mas é preciso coragem, como a da pequena Alice. No escuro! No buraco! E ainda ver uma chave. DOURADA.

E não se parece mesmo com a toca do Coelho onde Alice foi parar, sem tempo de parar e pensar, caindo em um buraco fundo? Tão fundo. Tão só. Com um novo universo, desconhecido, ao redor?

Conclamo Silvio Brito que canta: “Pare o mundo que eu quero descer.”. Mas parar onde? Em que ponto? “Tem que haver uma porta de saída!”, procura Clarice, eu seu texto “À procura da dignidade”. Ainda existirá dignidade? Que porta? De emergência, acrescento eu! Onde estará? Insiste-se:

“'Você poderia me dizer, por favor, qual o caminho para sair daqui?' / 'Depende muito de onde você quer chegar', disse o Gato. / 'Não me importa muito onde...' foi dizendo a Alice. / 'Nesse caso não faz diferença por qual caminho você vá', disse o Gato." (Lewis Carroll).

Até a Alice no Mundo das Maravilhas buscando uma porta por onde sair. Pois que caiu no escuro... E dá medo. Até nas maravilhas do mundo com o qual topou!

A busca por uma saída sempre existiu. Mas sair para onde? E quero ir, então, para onde? Que pergunta capciosa essa do gato. Para o mundo que foi? Mas ele já morreu. Para o mundo que é? Mas não está também já morto? Para o mundo que será? E se não for um mundo? E se restarem as coisas, sós! João Cabral sabe bem o que significa:

“Não é lá fora o dia / Que me deixa assim, Cinemas, avenidas, / E outros não-fazeres. 

É a dor das coisas, / O luto desta mesa; / É o regimento proibindo / Assovios, versos, flores.

[...] Carlos, há uma máquina / Que nunca escreve cartas; / Há uma garrafa de tinta / Que nunca bebeu álcool.”.

Seria eu capaz de habitar o mundo das coisas, sem vida? Viver em vão? Viver nos vãos que não me cabem? Só a Alice, que esticava, crescia ou diminuía e encolhia... mas sabe, nunca exatamente ficava no tamanho preciso. Era mais. Ou era menos. Seria essa uma transgressão - não se curvar ao que é preciso? Sem precisão. Um viver desmedido? E, por isso, o vale de lágrimas onde quase se afundou!! Mas para onde rumaram todos os animais... Posto que água viva! Sim, esta arde também. E faz chorar. O que é vivo tem dessas coisas. Até nas maravilhas do mundo onde Alice foi parar.

Ah, como eu gostaria de saber desenhar! E também pintar. Faria o desenho de um mundo vivo. E bem colorido. Com pássaros nas sacadas a cantar, montanhas a avistar, águas brilhantes onde pôr a vista e os pés a brincar... Algo aqui me ocorreu. Pois não é assim que o mundo agora está? Então o mundo está bem vivo. E, interessante, mais vivo do que nunca, talvez mais do que eu e você, e tanto mais vivo fica, quanto mais fora dele ficamos. Ou em casa. O mundo aí está. Fui eu que para fora dele caí. Terei sido eu despejada? O mundo teria me lançado de sua porta de emergência? Teremos sido defenestrados do mundo?

Assim como a Alice, que quando está nas mil maravilhas, existe outro mundo que não a contém. E que continua. Apesar de não lá estar. E, talvez, mais por conta disso.

Que grande desencontro e descompasso esse que não pode alguém a um mundo encontrar e habitar! Como a Alice quando com a chave na mão, tão grande está e não passará pela portinhola que, pensa, levaria para um jardim. Mas, sem a chave, como abri-la? E se em casa precisamos ficar, para poder ter um mundo para avistar e ainda desejar, eu penso, transgressivamente, não da minha casa concreta sair. Mas para dentro do meu mundo interno cair. Ampliar meu universo mental, pois quem a uma janela ou porta desenha, (re)cria a própria saída. De “Emergência”:

“Quem faz um poema abre uma janela./ Respira, tu que estás numa cela abafada, / esse ar que entra por ela. / Por isso é que os poemas têm ritmo — / para que possas profundamente respirar./ Quem faz um poema salva um afogado.” (Mario Quintana).

E não teria a pequena Alice, entediada ao lado da irmã, como a história começa, senão desenhado/sonhado seu mundo? Sua porta de emergência?

Assim como nos disse Matilde, em 2015, na FLIP: “É preciso, sim, desenhar, é preciso fazer canções. A poesia, a música, uma pintura, isso não salva o mundo, mas salva o minuto. E é suficiente. A gente está aqui para dançar um pouco sobre os escombros. O cirurgião vai tentar salvar todas as vidas que puder. A gente vai tentando salvar os segundos — da minha vida, da vida de todos meus amigos e de alguém que lê uma estrofe.”.

E salvar de minuto em minuto, salva-se uma vida inteira! Como a história contada à Alice que a ajudou a enxugar suas lágrimas e a seguir.

E é só aquilo que emerge da própria experiência que nos socorre, às vezes na maior de nossas emergências. E salva! A mim e a você também. Só que é preciso coragem. Inclusive a de conhecer qual a porta ou a janela que, em si mesmo, abre uma saída. DE EMERGÊNCIA! E a saída, contrariando até mesmo a lógica, como a pandemia vem tentando concretamente escancarar a olhos vistos, é para dentro. E cair para dentro não é se deparar senão consigo mesmo? Como a lagarta que inquiriu a Alice: “quem é?”.

Pois não é que a Alice caiu, caiu, caiu dentro de si? E ali enfrentou gatos, ratos, coelho, reis, rainhas e tomou poções... pois aqueles todos eram senão as suas próprias maravilhas. Salvando, quem sabe, os minutos da pequena Alice. E da sua irmã. Salvando assim, quem sabe, sua vida inteira. Pois quem acolhe o minuto, salva-se!

Assim como a pequena Alice que, quando perdido o julgamento - que lhe levaria a vida?!-, então, acordou. Outra. Não mais a mesma que outrora fora...

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