Entrevista: Relacionamentos via site e aplicativos

Entrevista: Relacionamentos via site e aplicativos

Entrevista concedida à Pâmela Silva da Revista Revide (impressa):

(Pâmela) - Com o avanço da tecnologia tornou-se comum as pessoas procurarem relacionamentos através de aplicativos ou sites de relacionamento. Na sua opinião por que esse número vem crescendo?

(Ana) Observamos que o avanço tecnológico e a internet propiciaram o aparecimento de novos comportamentos e o desenvolvimento de novas formas de comunicação, reflexo de mudanças na contemporaneidade. A busca por relacionamentos via aplicativos e sites é mais um de seus desdobramentos. O estar conectado vem ganhando uma proporção cada vez maior, não apenas em número de pessoas, mas principalmente em relação ao tempo e espaço que ocupa na vida de cada um de nós. Especificamente em relação aos apps e sites de relacionamento, esse aumento pode estar associado a vários fatores. Ao passo que as redes sociais mostram um número cada vez maior de amigos e seguidores, o que se observa é a contrastante percepção de que talvez as pessoas nunca estiveram tão isoladas e mesmo solitárias. O contato via site e aplicativos permite conhecer outras pessoas em um contexto que favorece o anonimato, em que as manifestações podem ser mais contidas e controladas por se fazer mais uso da escrita, havendo maior domínio do que se fala sem o acompanhamento de aspectos não-verbais. A pessoa não precisa se mostrar exatamente tal qual se é, podendo até mesmo criar um personagem. Pode minimizar dificuldades próprias aos relacionamentos inerentes aos contatos iniciais, estando apenas ao alcance de um clique, parecendo abreviar e facilitar o contato. Muitas vezes, esses apps e sites possibilitam identificar rapidamente características em comum e preferências, ressaltando afinidades, podendo até mesmo sugerir compatibilidades, quase em uma garantia de segurança contra decepções e frustrações.

 

(P) - Na sua opinião a tecnologia ajuda nas relações?

(A) Sim e não. Isso porque se, por um lado, a tecnologia e a internet promovem a aproximação e a superação de barreiras, propiciando que pessoas, mesmo que separadas geograficamente, possam interagir e se relacionar, tornando-se até mesmo um entretenimento, por outro, podemos indagar sobre as características e qualidades desta mesma relação. Há autores que questionam a relação do virtual como se opondo à realidade, atribuindo conotação de irreal. Sugerem, por outro lado, uma coexistência – das realidades interna/externa e realidade (outra/paralela) virtual – que, sendo diferentes, relacionam-se, com fronteiras permeáveis e que, muitas vezes, sobrepõem-se. A dificuldade estaria na confusão quanto à percepção dessas realidades, em que o virtual pode atuar em uma substituição da realidade factual, com uma tendência à virtualização das relações, como que possibilitando evitar lidar com a complexidade da vida e dos relacionamentos. A tecnologia e a internet, de modo excessivo e inadequado, podem ser usadas para preencher grande parte do nosso tempo e, com seus excessos de informação e de estímulos, podem gerar um estado de excitação constante. Talvez a questão possa ser acrescida de outras, podendo-se indagar a respeito da função da tecnologia em nossas vidas, sobre o lugar que está ocupando e o uso que vem sendo feito dela. Como as interações via dispositivos tecnológicos impactam os vínculos humanos? A tecnologia está no lugar de quê? Ela aproxima/conecta? Ou tem algo que ela substitui e faz evitar/desconecta? Quem somos quando conectados? Somos nós mesmos? Estamos conectados a quê? Em um momento em que nos encontramos diante de um novo paradigma de relações, uma atitude de acolher e abrigar esse novo, sem negá-lo, motivado pelas inquietações despertadas, pode indicar caminhos possíveis que superem dualidades certo X errado, bom X mau, possibilitando novas formas de se conviver, lidar e mesmo aprender com essas realidades.

 

(P) - A busca por relacionamentos online pode ser um sinal de carência ou apenas uma facilidade para agendar esses encontros?

(A) Estudos apontam que essa busca pode ser motivada por diferentes razões, revelando necessidades diversas. Para se conhecer outras pessoas; possibilidade de um contato afetivo facilitado; por dificuldades pessoais relativas ao encontro presencial e afetivo; como forma de entretenimento; uma tentativa de aplacar a solidão; busca por relacionamentos mais gratificantes do que aqueles vividos na vida cotidiana; sedução propiciada pelo mundo virtual; facilidade de acesso a apenas um clique para citar apenas alguns.

 

(P) - Pesquisas já revelam que relacionamentos que começam online tendem a ser duradouros, isso é possível?

(A) Mais do que avaliar o modo como o relacionamento se inicia, podemos considerar que a manutenção do relacionamento no tempo está mais associada à forma como ele pode ser vivido, considerando realidades interna e externa, como se convive e se lida consigo e com o outro, com as emoções e afetos despertados. Para isso, a relação não pode se restringir ao virtual, passando a compor os modos de vida e de relacionamentos na vida cotidiana. Podemos pensar na condição de transitar entre esses mundos e realidades, sem perder de vista o que acontece no interior de si mesmo. Relaciona-se também com a noção de presença e ausência que não se limita ao físico, mas que considera o estar mental/psiquicamente presente/disponível ou ausente nestes mesmos termos, que diz mais do que há dentro, na interioridade.

 

(P) - Quais os prós e contras dos relacionamentos que começam através de aplicativos?

(A) Os aplicativos e sites de relacionamento podem facilitar esse contato inicial e possibilitar que pessoas que possivelmente não se conheceriam de outra forma possam se encontrar, aproximando pessoas interessadas em um mesmo objetivo. Ainda, favorecem outras formas de expressão que podem ajudar pessoas que apresentem dificuldades, insegurança, timidez. Por outro lado, podem favorecer que pessoas alimentem fantasias que não correspondam à realidade. Há também os perigos associados e cuidados a serem tomados quanto à transposição do virtual ao encontro presencial, devendo haver cautela. Além disso, pode ser sedutor no sentido de que as dificuldades das relações podem ser evitadas no contato virtual. É importante lembrar que as relações que se iniciam pelo intermédio da tecnologia também se encontram sujeitas a conflitos diversos, desencontros, mentiras e decepções e não oferecem seguro e garantia contra frustrações.

 

(P) - É possível avaliar se sensação que a pessoa sente ao encontrar um parceiro online é a mesma daquela que se apaixona por alguém pessoalmente?

(A) Podemos pensar que os encontros virtuais e presenciais são de diferente ordem. O encontro face a face possibilita captar outros estímulos os quais ficam impossibilitados no encontro virtual. Nesse, existe uma mediação por meio de um dispositivo tecnológico que carece de percepção de outras formas de registro - que também são importantes - que se somam e compõem a experiência emocional do encontro com o outro. Dentre eles podemos citar as expressões faciais e corporais; a postura; os gestos; o cheiro; a modulação da voz; seu tom, sonoridade, melodia; a troca de olhares, a percepção quanto às emoções... Existe algo de imponderável no encontro com o outro. Ainda que novas habilidades possam ser desenvolvidas no contexto do avanço tecnológico, ainda necessitamos desse outro tipo de percepção, que passa pelos nossos sentidos, agregando linguagem verbal e não-verbal, e que se movem na direção das emoções.

  

(P) - Recentemente foi lançado um episódio da série Black Mirror onde foi disponibilizado um app de relacionamento que apresenta até a duração do relacionamento. Você acredita que isso pode acontecer fora das telas?

(A) Essa série é bastante interessante, pois, de certo modo, parte de algo conhecido e promove seu exagero, uma realidade aumentada. Causa até mesmo certo desconforto ao apelar para angústias de difícil digestão, mas também permite identificação e uma possibilidade de pensar. Resumidamente, o episódio aborda o uso de um app por pessoas à procura de um relacionamento. Para isso, utilizam um dispositivo conectado a um sistema que avalia a chance de match, uma combinação entre parceiros, propagando um acerto de 99,8%. Para se chegar ao par perfeito e ao casamento, as pessoas passam por vários relacionamentos. As características da pessoa vão sendo armazenadas no sistema e são utilizadas para a indicação de novos parceiros. A escolha não é mais humana, mas indicada por meio de códigos de programação realizados por uma máquina. A validade da relação já é determinada no primeiro encontro, sendo questão de horas, meses ou anos, até se chegar, por fim, em sucessivas relações, ao par perfeito. No episódio, em um dos vértices possíveis, observamos o quanto habilidades e escolhas humanas vão sendo transferidas para uma máquina, inclusive a escolha do parceiro, a decisão de se relacionar ou não com ele, muitas vezes até do que se fazer e como se viver o encontro e a relação, assim como a sua duração. Há uma mecanização das relações, retirando dos indivíduos inclusive a identificação dos próprios desejos, eliminando sua capacidade de escolha. Assim, o “mundo de dentro” é controlado por estímulos que vêm de fora. O episódio mostra relações sem intimidade, sem espaço (inclusive mental), sem tempo e/ou profundidade –para apontar apenas alguns aspectos – para seu desenvolvimento. As relações, que ocorrem independentemente da vontade humana e que tem sua duração – curta ou longa – destacada da construção do próprio relacionamento e da disposição e afetos dos parceiros envolvidos, são destituídas do que possuem de mais humano, as emoções e os afetos despertados que motivam escolhas. A determinação da duração retira da relação o que a constrói, alimenta e constitui. Por outro lado, o desfecho do episódio possibilita também pensar sobre a possibilidade de o ser humano contestar e, assim, resgatar suas funções e habilidades, suas emoções, recuperando sua capacidade de pensar, escolhendo e assumindo riscos. Mostra, assim, que, ainda que a tecnologia esteja aí para ser usada, aquilo de que não podemos abrir mão é de sermos humanos.

 

(P) - Você acredita que estamos caminhando para uma geração onde os relacionamentos que nasceram atrás da tela serão maioria?

(A) Diante das características da sociedade atual, que configura um viver sempre conectado, penso que esses números devem crescer em demasia. No entanto, isso não significa necessariamente maior conexão consigo mesmo, com as próprias emoções, ou mesmo maior vínculo emocional com o outro. Há que se cuidar para que a tecnologia não ocupe o lugar do humano ou que seja usado como extensão; cuidar para que a percepção do sentir a presença/companhia viva e o viver as emoções sejam da percepção do humano e de uma experiência partilhada. Isso possibilita o aprender com a experiência que favoreça outros usos das próprias vivências que superem o “bloquear” e “deletar”, possibilitando viver as emoções e se desenvolver por meio delas, lidando com frustrações, não reduzindo o “curtir” e o “compartilhar” a funções de um aplicativo ou de um dispositivo tecnológico.

 

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