Pertencer-se

Pertencer-se

Em um momento em que somos convocados a nos recolhermos ao privado, deparamo-nos com o distanciamento não só do outro. Mas especialmente com o isolamento de nós mesmos. E nos reconhecemos como estranhos, ainda que muito familiares. Por onde teremos até então andado? Se logo agora nos encontramos refugiados do mundo, descobrimos, só então, que estivéramos antes foragidos de nós mesmos. Que temores terão sido estes que nos apartaram inclusive de nós? Dores, dissabores, amargores...? Expatriados que ficamos de nossa própria origem e companhia.

 

E o convite tem sido esse: o de habitar a própria casa e as próprias relações, não mais como hóspedes. Mas como mora-dores. Em sua literalidade. Vive-dores das próprias vidas. Sem escapes. Talvez essa seja a dor: de nos descobrirmos como turistas das nossas vidas e das nossas relações. Teríamos sido aqueles que habitavam o próprio corpo, o lugar e o presente por escassos tempos? Aliás, encontrávamos de verdade conosco mesmos? Ou nos distraíamos e nos evadíamos de nós? Alienando-nos, esvaziados de nós mesmos? Em um desertar da nossa própria casa, de nós?

 

E, assim, restamos um tanto quanto esburacados. Carrega-dores de vãos, ausências, vazios desde dentro. Que vão compondo lonjuras abissais, fronteiras intransponíveis mesmo a uma travessia interna, posto que faltam pontes. Que interconectem, liguem. Amuralhando-nos não apenas diante dos perigos externos, mas especialmente do desconhecido que se vai acumulando dentro. Familiar e tão a si mesmo estranho. E inquietante. E contrário a si. As ambiguidades, as contradições que nos povoam... Que necessitam de um alinhavo. Como um caminho para se encurtar distâncias, lonjuras e terras adentro.

 

Por outro lado, temos, agora, uma nova chance. De nos reaproximarmos e nos reconciliarmos conosco e com a nossa história. Com a única presença da qual não nos separamos, mesmo em uma quarentena. E, quem sabe, fazermos a nós uma boa companhia. Preenchendo os buracos com uma existência real, que diz de um pertencer a si mesmo. E, assim, não apenas sobreviver. Mas, sobretudo, viver. Abastecidos de uma presença viva: a própria.

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