Último grão de areia

Último grão de areia

No livro “O ano do pensamento mágico”, Joan Didion escreve: “A vida muda rapidamente. A vida muda num instante. Você se senta para jantar, e a vida que você conhecia termina. [...] Um instante normal.”. Pois que esse é o movimento natural da vida, que desemboca em um desaguar no seu próprio fim. Mudança que aguardamos, ainda que temendo, ainda que imaginariamente antecipando e magicamente adiando. Salvando-nos. E aos nossos também. 

 

Será que estamos nós a contar com o pensamento mágico de uma inquebrantável invulnerabilidade? Como que pertencentes à realeza, idealizada e poderosa, indestrutível? Contando com uma impenetrável e impermeável fronteira? Esquecidos de que até Aquiles possuía um insuspeitado desprotegido e indefeso calcanhar...?

 

Em época de cancelamento, o que mais foi cancelado é a pretensa normalidade da vida. A ideia de que sabemos como o dia vai findar. Ou o que faremos amanhã, como se, sobre a vida, ousássemos ter algum controle. 

 

Pois o que nos aconteceu atingiu o lugar da nossa onipotência, crentes cegos em nosso poder em saber, controlar e mesmo ter o depois e o amanhã também. Reabrindo a ferida narcísica que revela nossa pequenez - o real tamanho que temos, e não o imaginado desejado. Pois qual não foi a nossa surpresa diante da verdade que desmascarou a grande ilusão atrás da qual nos escondíamos: não os temos senão na nossa imaginação, como expectativa da vida que nos resta. Posto que sentimos a vida como uma ampulheta, cujo último grão de areia, a qualquer hora do dia ou da noite, pode enfim, sob o chão e a terra descansar.

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