Vida que segue

Vida que segue

“Tudo o que muda a vida vem quieto no escuro, sem preparos de avisar.” (Noites do Sertão - João Guimarães Rosa).

E não é que a vida mudou? Sem ao menos a realidade nos consultar. Pois que esta, severina, impõe-se. E, quando se vê, já-lá está a nos confrontar. Esbugalhada, a olhar para nós. Convocando-nos, sem delongas, a nos implicarmos com a cena da própria vida. “O que a vida quer da gente é coragem.” (Grande Sertão: Veredas). Para viver. Lutar. Entrelaçar-se. Implicar. Resistir. Entranhar.  E ressignificar, por certo. “Natureza da gente não cabe em nenhuma certeza.” (Grande Sertão: Veredas).

“O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não o seja [...].” (Grande Sertão: Veredas). E o que é o sertão senão a vida? Esta que teima em bruxulear. Ou resistir. Ainda que pareça um tanto à mingua. Mesmo quando parece perderem-se as fronteiras. Delimitadoras, cujo rompimento pode levar a deslizamentos ou desmoronamentos. Necessitando-se redesenhá-las, contornando-as, possibilitando, quem sabe, que partes de si que se despregaram se juntem outra vez. Pois é assim que se constitui o humano, em um processo contínuo de integração. E de desintegração também, como tão vivamente descreve Winnicott. Necessitando de alguém que junte os pedaços quando se perdem as fronteiras que constituem e delimitam o eu. Em busca de um fio, que se rompeu.

Como o de Ariadne. Que precisa ser resgatado. Como guia. Não exatamente para o exterior, mas para o interior de si. Visando vincular. Embora fio que é, não necessariamente se enlaça. Afinal, nem todo fio constitui laço. Pois o que faz laço é da ordem de Eros, em toda sua tessitura amorosa. Em um momento em que predomina o desenlaço, na falta do abraço, há que se cerzir para que não reste apenas o corpo sem a qualidade que lhe atribui vida. Alinhavando-se seus pedaços, em fragmentos, rebordeando, para conter o trans-bordamento frente o caos. “O senhor vê: o remoo do vento nas palmas dos buritis todos, quando é ameaço de tempestade. Alguém esquece isso?” (Grande Sertão: Veredas).

Rupturas que podem desenlaçar. Ou enlaçar. Podendo-se convocar a inquietante questão de Green: “O que é o limite de alguém? O envelope da pele [...] é descontínuo.” Esburacado! “[...] barreira movente, protege imperfeitamente um Eu vulnerável [...]”. Pois não é senão um caldeirão fervente a vida? Em ebulição. “Ou são os tempos, travessia da gente?” (Grande Sertão: Veredas). Ledo engodo imaginar não ser necessário um esforço de investimento na vida. Como marca de nossa inscrição e implicação. A existência e, mais, a capacidade de estar vivo, afinal, não são dadas. É uma conquista, das tarefas desenvolvimentais da vida, a qual sempre se pode perder. Pois não se engane: “Todo caminho da gente é resvaloso.”. Mas “O que tem de ser tem muita força.”  (Grande Sertão: Veredas). 

 

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