Tecendo a manhã

Tecendo a manhã

Esse poema do poeta João Cabral de Melo Neto é considerado pelos linguistas como uma verdadeira ode ao poema moderno, pela capacidade do autor na construção de uma estética absolutamente diferenciada. Para mim, o que ele me diz para além da arquitetura de como foi construído é um verdadeiro hino à amizade, ao compartilhar da vida.

Um galo sozinho não tece uma manhã. Essa sempre foi uma premissa que entendi como fundamental na minha vida. Dizer que somos seres sociáveis e que para alcançar um bem-estar é preciso aprender a compartilhar histórias com outras pessoas, a viver em comunidade se fez presente muito fortemente na escolha do meu trabalho de uma vida inteira.

O trabalho do jornalismo — em maioria — é tecido a muitas mãos. Uma boa reportagem publicada numa revista ou num jornal precisa de um fotógrafo, de um diagramador e de um editor. O mesmo acontece em quase todas as plataformas. A não ser um artigo, uma coluna, que é um trabalho mais solitário, o nosso ofício depende do outro.

E na vida essa convivência com os “galos” para se fazer uma manhã é ainda mais forte. Para vivermos uma vida bem vivida é fundamental termos amigos.

A amizade é algo que já foi amplamente estudado, discutido pelos filósofos, psicólogos, pelos estudiosos da mente, mas só entendemos o verdadeiro sentido da amizade quando vivenciamos esse encontro com pessoas ao longo da nossa trajetória. Quando sentimos essa presença cara nas nossas vidas.

Aristóteles diz que uma vida feliz é uma vida virtuosa. E a virtude pressupõe a ética. No seu livro “Ética a Nicômaco”, ele dedica dois capítulos à amizade. Ele trata da amizade que vem do prazer, aquele que sentimos por gostar da companhia do outro, até da amizade que vem do interesse, porque trabalhamos juntos, porque estudamos juntos, aquele encontro que de alguma maneira está sendo proporcionado por alguma necessidade de ambas as partes. E tem a amizade que vem pela estima. Aquele que se faz, porque simplesmente gostamos do outro.

Aquele sentimento bom de que não estamos sós no mundo, de que podemos contar com alguém em qualquer momento que estamos vivendo. Esse sentimento nos reconecta com o que é mais humano, aquele sentimento que nos basta mais do que todas as conquistas materiais ou solitárias que sentimos no decorrer da vida.

E para fechar o assunto amizade e continuando no espaço da arte que existe para nos salvar: vai a dica de um outro livro, editado agora no Brasil — As inseparáveis, de Simone de Beauvoir, um romance autobiográfico de uma grande amizade, entre Simone e Zaza, que no livro são Sylvie e Andrée.

editado agora no Brasil — As inseparáveis, de Simone de Beauvoir, um romance autobiográfico de uma grande amizade, entre Simone e Zaza, que no livro são Sylvie e Andrée.

 

"Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito que um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,

se erguendo tenda, onde entrem todos,

se entretendendo para todos, no toldo

(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo

que, tecido, se eleva por si: luz balão."

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