Tocando a vida

Tocando a vida

Foram 23 cirurgias em uma carreira de, até agora, quase 70 anos. Apresentações com dores ou sob o efeito de analgésicos fizeram parte da vida do pianista e maestro João Carlos Martins, que se despediu do instrumento em fevereiro, antes de fazer uma nova operação. 

Fico impressionada com o quanto o músico foi resiliente ao longo de toda a carreira. Muitos de nós nos sentimos incapazes de continuar diante de qualquer dificuldade que apareça pelo caminho. Ele persistiu por décadas de obstáculos que foram impostos.

Quem minimamente me conhece sabe que acredito profundamente na capacidade humana da reinvenção. Claro que os desafios aparecem em intensidades diferentes e qualquer problema cotidiano é incomparável a uma enfermidade como a que acometeu João Carlos Martins. De qualquer forma, tenho convicção de que o espírito que rege a superação deve estar presente em todas as nossas experiências de vida, das menores às maiores. 

Converso com alguns amigos que estão desanimados com os rumos econômicos do país e, por isso, acabam por ter um comportamento de desânimo com a própria vida. Existe certa estagnação muito comum a todos nós quando nos deparamos com algum problema e, por vezes, ficamos sem forças para continuar ou buscar uma saída. Esse sentimento de paralisação, porém, não pode ser contagiante. Por algum mecanismo, e para continuar a viver as experiências da trajetória por esse mundo, precisamos desenvolver resiliência e superar o que há de contratempo pelo caminho. 

A despedida do maestro é muito simbólica. Não representa uma desistência, muito embora tocar piano tenha se tornado impraticável em razão da contratura de Dupuytren, que reduziu os movimentos de sua mão direita. Mesmo durante a carreira, ele buscou outros projetos que poderiam ser realizados sem a necessidade do movimento das mãos da forma como exige o instrumento. Tornou-se maestro e, desde 2009, rege a Orquestra Bachiana Filarmônica do Sesi-SP, formada pela Fundação Bachiana — um grupo sem fins lucrativos criado em 2006, que tem como objetivo apoiar, incentivar e promover o desenvolvimento de atividades de formação musical e cultural.

Esse é um belo exemplo de como podemos refletir sobre aquilo que a vida nos impõe e de que maneira podemos superar as adversidades sem ficarmos paralisados. Recalcular a rota e procurar algum caminho que seja mais condizente à realidade que se passa pode ser, sempre, uma maneira de retomar o prumo de uma realidade que merece ser experimentada.

Tocar a vida foi, metaforicamente, a forma como João Carlos Martins encontrou de superar a doença com a qual convive há mais de 15 anos, provando de que nem sempre nossos dias passam no ritmo em que gostaríamos. Às vezes, é preciso acertar o compasso e buscar uma nova melodia. 

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