A árvore que não dá frutos é xingada de estéril. Quem examina o solo?  (Bertolt Brecht)

A árvore que não dá frutos é xingada de estéril. Quem examina o solo? (Bertolt Brecht)

 

Patrícia Pereira

A educação é o processo político que permite a criação da identidade e do reconhecimento do outro. Esse processo escolhe entre esperanças passadas as que terão por finalidade construir o laço social entre as antigas e as novas gerações. Espera-se dessas escolhas que a originalidade e a subjetividade dos indivíduos possam ser garantidas e protegidas, impedindo – assim – a aniquilação dos sujeitos.

Muitos são os significantes que participam desse processo educativo. Mais diretamente pais, mães, educadores, conhecidos (e não tão conhecidos); indiretamente (e certo que intensamente) novelas, comunidades virtuais, publicidades, filmes e jogos – apenas para citar alguns. Enquanto os primeiros protagonizam personagens que depositam sobre o sujeito seus olhares e suas memórias, criando a possibilidade do discurso, da ilusão, do conflito e do devir, os outros – com suas ameaças de instrumentalização da existência se prestam apenas a conduzir o sujeito entre estreitos canais de controle, nos quais tudo já está decidido, discursado e consumado.

A construção da subjetividade não existe nem apartada dos afetos eletivos, nem desvinculada dos objetos e técnicas constituintes do espaço em que se insere. Os mecanismos pelos quais se concebe resultam da inteligibilidade do real, das marcas construídas na experiência do mundo a partir de seus sistemas simbólicos e nos espaços criativos e perceptivos ampliados a partir desta; ou seja, a subjetividade emerge como conhecimento do processo de construção social e de si mesmo.

O sujeito é, então, o resultado de suas relações, das combinações que conseguiu construir a partir dos outros e que reordenou internamente, por meio de suas singularidades. Para não se restringir ao círculo e aos limites de sua própria experiência, o sujeito amplia seus registros por meio de descrições e narrativas históricas a que tem acesso, assimilando – com a ajuda da imaginação – experiências (alheias) sobre o social e o político.

 

Aos educadores, cabe a responsabilidade na mediação desse processo de um itinerário que conduza para “fora” o sujeito, e permita seu reconhecimento sobre o Outro, como também, sua entrada no mundo da cultura.

 

Mas o que pensar quando esse mundo de fora, anterior ao sujeito, constituído a partir de um espaço e de uma temporalidade, pré-determina uma série de condicionantes que enfraquecem o valor da transmissão dessa tradição?

 

Como eleger do passado valores que possam manter vivos os condicionantes humanos quando o que se perpetuou como referência são elementos simbólicos pertencentes a uma matriz violentamente conservadora, radical e que esterilizou os sujeitos e os espaços públicos e condenou o social ao esquecimento?

 

O passado brasileiro – do catolicismo, do patriarcalismo, do clientelismo, do Estado de Segurança Nacional – é o passado concebido sobre uma cultura extremamente autoritária em um pacto simbólico ideológico de desintegração da subjetividade, de naturalização das desigualdades e de perversão dos direitos sociais. Buscar nesse passado a autoridade da tradição, a autoridade, com a função de transmitir o valor da Lei necessária à vida civilizada, é necessariamente se iludir, é determinar para toda uma sociedade um adiamento sem fim de sua emancipação.

 

O Estado de exceção em que vivemos, no qual a prerrogativa para se ficar fora da lei é permanente, fortalece ainda mais a construção dessa consciência histórica apartada. Feliz em sua hegemonia, ele controla aqueles a que oferece a crença de que nada pode ser feito para transformar o que está posto enquanto mantém sua força por meio da excitação ao poder, que encontra lugar em todos os espaços frouxos do Estado Nacional que se desfaz.

 

Para construirmos perspectivas futuras, e escaparmos a esse passado-presente que sempre se impõe à construção de um futuro, precisamos criar novos espaços e dar forma aos milhares de relatos, que permitem a identificação das bases de reprodução desse pacto de destruição da nossa condição humana.

 

Precisamos identificar toda violência que ainda faz calar e sumir os sujeitos indesejados pelo plano de nacionalidade das elites exclusivistas. Evitar as políticas que sistematicamente impedem qualquer possibilidade de simbolização de nossa existência e que lançam ao desamparo e à morte milhares de brasileiros. Devemos recusar nossa “cordialidade” e desarmar a ordem que ela desencadeia, criando canais de expressão dentro do arcabouço institucional e do espaço nacional.

 

Os educadores precisam apresentar a seus educandos relatos, narrativas, depoimentos, de brasileiros e brasileiras, que por meio de suas histórias permitirão às novas gerações conhecer e experienciar o passado e o presente; que desencadearão perguntas... muitas  respostas... e que darão à criação do Outro a coesão social necessária.

 

A educação tem a responsabilidade de descaracterizar o discurso conservador que deseja que toda sociedade acredite que as vozes das vítimas do golpe de 64, das chacinas, das ocupações de terras, dos indígenas, entre tantas, falam apenas de suas perspectivas, de suas individualidades.

 

A preponderância do indivíduo é a morte do sujeito.

 

Nenhum processo educativo que se pretende democrático pode valorizar o indivíduo em detrimento à construção do sujeito. Enquanto a educação não assumir para si a autoridade de revelar os sujeitos históricos em seu processo de transmissão de valores, aqueles que devem ser contidos, punidos e responsabilizados pelo aniquilamento do processo de subjetivação continuarão a transformar a voz dos vitimados em ameaça, e suas histórias em esquecimento. A educação tem - como obrigação - evitar qualquer apagamento simbólico que nos afaste da possibilidade de construir uma sociedade de sujeitos e uma história legítima.

 

 

Compartilhar: