ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES E A DESPERSONALIZAÇÃO DO OUTRO

ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES E A DESPERSONALIZAÇÃO DO OUTRO

Daiana Carvalho Camilo

Atenção o texto abaixo contém spoilers sobre o filme Assassinos da Lua das Flores

 

Em cena do filme, Lily Gladstone e Leonardo DiCaprio

 

      Inspirado em uma história real, Martin Scorsese (diretor de Táxi Driver, Ilha do Medo, O Irlandês), estreou seu novo filme, Assassinos da Lua das Flores (no original Killers of the Flower Moon), título poético para a representação de acontecimentos tão trágicos. O longa metragem narra uma série de assassinatos misteriosos contra os integrantes da tribo indígena Osage na Oklahoma dos anos 20. Baseado no livro homônimo de David Grann, jornalista e escritor, que já no primeiro parágrafo de escrita elucida o nome da obra.

(...) Em maio, quando os coiotes uivam sob uma lua enorme, plantas maiores, como o coração-roxo e a margarida-amarela, começam a despontar entre as menores, roubando-lhes luz e água. Os talos das flores se quebram, as pétalas saem flutuando pelos ares e em pouco tempo jazem sepultadas sob a terra. É por isso que os osages dizem que maio é o mês da lua que mata as flores.

      A população indígena das Américas padeceu sob os ideais dos colonizadores europeus. Ainda hoje podemos constatar notícias recentes respeito das desventuras sofridas pelas populações originárias brasileiras, como mencionado por De Oliveira Paiva (2023), o Estado usa as vestes do “descobridor” e antigas narrativas são apropriadas para aqueles que se relacionam com o poder. Dessa forma, podemos enxergar um decurso que promove a manutenção de uma dominação social, cultural e ideológicas das populações indígenas brasileiras.

      No entanto, essa obra cinematográfica seria apenas uma reprodução de todo esse contexto, porém, podemos ver uma possível mudança entre as relações de poder dessa história.

      Os Osages, foram retirados de sua terra original pelo próprio governo americano e transferidos para uma terra de solo infértil. Mas, como presente desse infortúnio, nesse mesmo solo infértil, encontraram o mais abundante ouro negro. A comunidade indígena Osage se tornou membro da indústria petrolífera. Ficaram exorbitantemente abastados financeiramente.

      Mesmo que o dinheiro indique poder, o poderio Osage não foi suficiente para que fossem recebidos na sociedade americana como indivíduos. Ainda eram despersonalizados por sua origem, sua cultura, sua ideologia. Jornais da época se referiam a eles como “milionários vermelhos” e buscavam de toda forma caracterizá-los como “selvagens” o qual o dinheiro em suas mãos, não tinha havia nenhuma explicação, lógica ou sentido. Com o tempo, assim como na época da colonização, uma guerra se inicia, mas dessa vez ela vem de forma silenciosa, com estranhos assassinatos, ou melhor, tão estranhos quanto a polícia da região diziam ser para que os criminosos não fossem presos.

      Tais acontecimentos se estenderam até que os Osages decidiram que agiriam pelas “leis do homem branco”. Partiram para Washington e clamaram por ajuda presidencial. Após um tempo, alguns agentes do Bureau of Investigation (que futuramente seria a organização de origem do FBI), foram até o nordeste de Oklahoma para investigar os assassinatos.

      Nesse momento, podemos enxergar uma troca na relação de poder. Embora de forma tardia, essa ação igualou os Osages a seus algozes. Isso ocorreu ao menos até as decisões da Suprema Corte, onde a despersonalização e a ideologia predominante atacaram novamente o povo Osage, os impedindo de ter justiça. 

      Podemos traçar um paralelo com a presente situação dos nossos povos originários. Até temos um pouco de ruído, em relação às dificuldades e as opressões sofridas por parte da população originária brasileira, quem não se lembra da notícia aterradora, divulgada pelo Ministério dos Povos Indígenas, de que quase 100 crianças Yanomami morreram em 2022, por consequência direta do garimpo na região. Estamos cientes que assim como em 1500, em 1920, em pleno 2023, há um distanciamento insensível entre diferentes ideologias, cuja proteção e cuidado governamental, são emitidos a essas pessoas (entre outros grupos) de forma marginal, impedindo-lhes que tenham uma vida digna.

      Retomando as ponderações de De Oliveira Paiva (2023), a defesa e o cuidado com a população indígena é consonante a resistência da própria natureza, algo que não é visto positivamente na visão exploratória capitalista. A autora ainda pontua que é preciso que as políticas reservadas aos povos originários os respeitem como protagonistas e não tutelados (vale dizer que os Osages eram tutelados e tinham que pedir permissões para utilizar a própria fortuna) e que, o “homem ecológico” e o “homem econômico”, findem essa disputa que ultrapassa os séculos.

      Assassinos da Lua das Flores escancara em lindas imagens e impactantes diálogos todos esses argumentos. Nos permite criar certezas, mas, também, subjetivar através das personagens. Do mesmo modo, faz com que haja uma reflexão, pensar sobre como os valores ideológicos do outro, em sua especificidade e diferença, pode ser transformada em um alvo, capaz de descartá-lo, esquecê-lo, desumanizá-lo e tirar-lhe o título de persona do ponto de vista do outro.

 

REFERÊNCIAS

GRANN, David. Assassinos da Lua das Flores Petróleo, morte e a criação do FBI. Trad. Donaldson M. Garschagen e Renata Guerra. Ed. Companhia das Letras.

DE OLIVEIRA PAIVA, Danielle Pereira. Território Indígena: Terra de Resistência. TEKOA, v. 3, n. 3, 2023.

https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2023/01/21/mais-de-500-criancas-morrem-na-ti-yanomami-e-lula-deve-decretar-estado-de-calamidade-publica.ghtml

https://cimi.org.br/2023/05/comite-xapiri-yanomami-repudia-as-violencias-cometidas-contra-o-povo-yanomami/

 

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