ESPAÇOS – COMPREENDIDOS NA OBRA “O CARTEIRO E O POETA” a partir do olhar foucaultiano

ESPAÇOS – COMPREENDIDOS NA OBRA “O CARTEIRO E O POETA” a partir do olhar foucaultiano

 

Leny Pimenta

O Carteiro e o Poeta é uma obra é ficcional, que comporta uma base histórica sobre a situação do Chile, e especialmente sobre o poeta Pablo Neruda e suas andanças pelo mundo e seu exílio. Antes de iniciarmos as análises sobre os espaços na obra “O carteiro e o poeta” do autor Antonio Skarmeta2 , tentaremos esboçar as concepções de espaço feitas em Outros espaços do autor francês Michel Foucault3 (na conferência proferida no Cercle d'Études Architecturales, em 14 de março de 1967), como referencial para nossos apontamentos. Salientamos que Foucault, desde o final da década de 60, tecia considerações sobre o espaço como ponto fulcral da modernidade, como época do espaço em seus apontamentos:

A época atual seria talvez de preferência a época do espaço. Estamos na época do simultâneo, estamos na época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado a lado, do disperso. Estamos em um momento em que o mundo se experimenta, acredito, menos como uma grande via que se desenvolveria através dos tempos do que como uma rede que religa pontos e que entrecruza sua trama. Talvez se pudesse dizer que certos conflitos ideológicos que animam as polêmicas de hoje em dia se desencadeiam entre os piedosos descendentes do tempo e os habitantes encarniçados do espaço. (FOUCAULT, 2009, p. 411)

Considerando que o espaço se constitui em um dos elementos estruturantes da narrativa, ao lado do tempo, dos personagens e do enredo podemos pensar com Foucault as relações/tramas que há e se entrecruzam no discurso narrativo, espaços físicos, sociais/culturais e psicológicos;

muito importante é também o problema de saber que relações de vizinhança, que tipo de estocagem, de circulação, de localização, de classificação dos elementos humanos deve ser mantidos de preferência em tal ou tal situação para chegar a tal ou tal fim. Estamos em uma época em que o espaço se oferece a nós sob a forma de relações de posicionamentos. (FOUCAULT, 2009, p. 413)

Neste sentido os espaços são aqueles lugares que se criam também, uma operação da memória e, ao mesmo tempo, literária sobre outros que são reais e/ou imaginários, como acontece em O Carteiro e o Poeta, o autor acrescenta traços de suas experiências/memórias. O que observamos nesta construção peculiar dos espaços literários é, sem dúvida, algo do campo do imaginário que está em relação, mais ou menos estreita, com algo do campo do real e do simbólico. Desta maneira, os espaços que encontramos neste conto poderiam ser analisados a partir do conceito de heterotopia4 , proposto por Foucault. Pontua o autor:

De qualquer forma, creio que a inquietação de hoje se refere fundamentalmente ao espaço, sem dúvida muito mais que ao tempo; o tempo provavelmente só aparece como um dos jogos de distribuição possíveis entre elementos que se repartem no espaço. (FOUCAULT, 2009, p. 413)

 

Assim, nesta obra de SKarmeta5 o espaço da praia, da montanha, presente na Isla Negra se mantém preservado e bucólico, compatível com a atmosfera poética a qual Neruda encarnou parte de sua vida, podemos encontrar a rudeza/natural de um espaço cerceado pela própria “natureza” presente também nos pescadores e demais habitantes da ilha. Mário (o carteiro), irrompe ao cotidiano pesado de ser pescador como todos e da mesmice alienante e de uma miséria cultural/física que ronda os moradores desta ilha.

O espaço cultural/metafórico é o eixo sobre o qual se constrói a história. O contexto narrativo traz o momento político chileno em que os militares implantaram a ditadura no Chile, as condições de produção reportam a uma asfixia social, o absurdo de atos desumanos e a morte da democracia.

O espaço real, vivido por Mário (o carteiro) é a Isla Negra, o Chile, o bar, a agência dos correios. Estes espaços implicam diretamente ao seu modo de vida e da aldeia, molda de certa forma sua identidade que, após o contato com Pablo (o poeta) faz com que Mário seja mais presente e atuante no espaço real. Nas ações desenvolvidas dentro deste espaço real, há elementos carregados de simbologia, advindas do espaço metafórico, como “Neruda deteve o olhar sobre o resto das cartas e logo entreabriu o portão. O carteiro estudava as nuvens com os braços cruzados no peito” (1996, p.22), desta forma podemos considerar que simbolicamente, o portão representa uma passagem que transporta Mário para um plano/mundo outro...

Os elementos espaciais escolhidos por Skármeta (como, por exemplo, a ilha) são simbólicos e estão interligados, pois, a ilha além de ser um espaço real, ligado à realidade, ao histórico, também é o local da poesia, do idílico, do simbólico, um espaço que leva o autor a empreender a construção da personagem Mário é o espaço onde acontece parte de suas experiências/vivências, percebe-se um des/velamento de si (autor) ao construir suas verdades.

 

1 Tela inspirada em “O carteiro e o poeta” feita pela artista plástica e cientista política: Celly Inatomi. Disponível em: https://cellyinatomi.com/index.php/client-galleries/image/cena-de-o-carteiro-e-o-poeta/ acessado em 13/02/2020

2 Esteban Antonio Skármeta Branicic é chileno descendente de croatas. Estudou Filosofia e Literatura na Universidade do Chile. Seus estudos de filosofia foram realizados sob a direção de Francisco Soler Grima, um filósofo alemão, discípulo de Julián Marías e de José Ortega y Gasset. Suas teses versam sobre o pensamento desse último. Seguindo a linha de Soler, se interessa pelas filosofias de Jean-Paul Sartre, Albert Camus e Martin Heidegger. Nos Estados Unidos, graduou-se na Universidade de Columbia. Devido ao golpe militar em Chile saiu do país em companhia do cineasta Raúl Ruiz, para residir na Argentina, onde publicou seu livro de relatos Tiro libre. Um ano depois, mudou-se para a Alemanha Ocidental onde, dedicando-se ao cinema, trabalhou como professor na Academia Alemã de Cinema e Televisão em Berlim Ocidental. Na Alemanha escreveu a história de O carteiro e o poeta, primeiro para a rádio alemã e depois para o mundo (1985). Em 1989, regressou ao Chile após o longo exílio de 16 anos e criou um programa de televisão chamado O show dos livros. Em 1994 estreou a segunda versão cinematográfica de O carteiro e o poeta sob o título El cartero de Neruda no Festival de Veneza. O filme, dirigido por Michael Radford e protagonizado por Massimo Troisi, obteve cinco indicações ao Oscar. Disponível em: http://www.academia.org.br/noticias/autor-de-ocarteiro-e-o-poeta-antonio-skarmeta-em-palestra-na-abl

3FOUCAULT, Michel. Outros espaços. In: MOTTA, M. B. (Org.). Michel Foucault Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. p. 411-422. (Ditos & Escritos, v III.

4 Uma heterotopia é, como o nome revela, um lugar outro, mas que se assenta sobre um lugar mesmo. Em outras palavras, é uma construção imaginária feita justamente sobre um espaço necessariamente real. Foucault explica primeiramente seu conceito colocando-o em contraponto ao conceito de utopia, aqueles lugares que só existem à medida que os inventamos num movimento de expressão do desejo daquilo que poderia ou deveria vir a ser. As heterotopias, por sua vez, não cumprem essa função retificadora das utopias, mas atuam diretamente sobre os espaços reais imprimindo-lhes novos significados. Exemplo: o cemitério sec. XVII ao lado das igrejas- ressureição dos mortos; cemitério sec. XIX como cidade dos mortos lugares outros “Os cemitérios constituem, então, não mais o vento sagrado e imortal da cidade, mas a “outra cidade”, onde cada família possui sua morada sombria.” (p.418)

5 SKÁRMETA, A. El cartero de Neruda (Ardiente paciencia). 11ª ed. Buenos Aires: Sudamericana, 1996.

Compartilhar: