O Grito

O Grito

 

Letícia Rubinger

 

 

O aluno escreveu sonhar que ele, o Dule, o Fabrício e o Christopher levaram um tiro. Do coma, precisaram morrer para sair da distopia à utopia. Deste lado, leitor e Leitora, professor e Sociedade, cegos para a urgência do texto e, naturalmente, para a do menino, apenas se preocuparam em nomear e numerar suas falhas, escondendo o que nele havia de belo: a autoria e a poeticidade onírica da periferia, fruto de um jovem em contato com sua lalíngua, única de suas vivências e do espaço e tempo de que ele faz parte.

Em uma mesma escola, circulam pessoas para as quais a Vida tem sido sonho ou pesadelo e isso, apesar de ser extralinguístico, aparece na fala, no gesto, no rosto e, sejamos atentos, nas entrelinhas do silêncio. Maria Homem (2023) nos diz que a primeira morada do ser humano é as entranhas da mãe, desta que já está no mundo, que tem ou teve pais, com ou sem família para cuidar e ser cuidada.

Até as entranhas têm contexto.

Até das entranhas aprendemos a ouvir e ser ouvidos. De lá, nos sentimos amados, ou o seu oposto, para, só então, participar da casa, da escola, da comunidade e da sociedade.

Em uma mesma sala de aula, há inúmeras histórias, cujos autores estão em pleno processo de desenvolvimento humano. No início dos anos 90, um aluno de quinze anos matou-se com um tiro em frente aos colegas. Eddie Vedder, vocalista do Pearl Jam, escreve, na ocasião, a famosa canção Jeremy, cujo refrão enuncia:

- Jeremy falou na sala hoje.

Não é raro o silêncio virar grito.

Mas quem não o viu e não o ouviu? Quem não o (re)conheceu? A ele, Jeremy, e a todos os outros?

Em gradação, a segunda estrofe conta que o pai não dava atenção ao fato dê a mãe não se importar com o filho. A sexta ratifica a falta de afeto paternal e a recusa maternal, intermediados pelos conflitos de escola. Ao final, o eu lírico, tomando as dores de Jeremy e praticamente continuando a gritar em seu nome, nos desafia:

-Tente esquecer isso. Tente apagar isso do quadro negro.

Enfim, Jeremy fala e todos ouvem: o reconhecimento pela autoviolência e pela violência infligida naquele que a presencia e naquele que dela fica sabendo.

Segundo Tfouni, Toneto e Adorni (2011), o letramento é um processo cuja natureza é sócio-histórica, que está envolvido no universo do simbólico. A educação autoritária é violenta exatamente por não ter a humildade de se perceber equivocada quanto ao seu papel e à sua relação com os alunos. Ao teimosamente descorporificar tudo o que toca, recusa-se a enxergar a si, o outro e seus contextos; o oposto de educar.  

Nós, professores, não podemos apagar nenhuma história, nenhuma nuance e nenhum silêncio do quadro negro. Educar é um ato político cuja função social transforma pessoas, dando a elas contínuas oportunidades de ressignificar seu passado, oferecendo-lhes a chance de, com licença poética, recontar suas vidas e escrever novos futuros.

 

Se podes olhar, vê.

Se podes ver, repara.

José Saramago

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