O pedido bendito

O pedido bendito

          Na cidade de São Beagle, incrustada no coração de Minas Gerais, colecionar minerais e insetos, assim como, estudar características geológicas, fósseis e organismos vivos, sempre ocorreu lado a lado da alegria de se conhecer as pessoas, os artesanatos e a religião. Terra amena, acolhedora, era em torno das mesas fartas de bolos e café e queijos e doces que quase todos os assuntos se resolviam. Digo quase todos porque um, de fervoroso debate, envolvendo homens ferrenhos em suas ideologias, destoava de tudo isso. Falo do Padre Xisto, filho natural da terra, homem de fé repleto de talentos, a levar, sempre com muita energia, e entusiasmo, as pessoas a acompanharem seu ritmo, e do doutor Galton, médico e cientista, criador de instrumentos e medicamentos, muitos deles usados até hoje, por muitos considerado um iluminado na compreensão evolucionista, que, vindo de terras elevadas, após a morte do pai, e em fase de introversão da meia idade, buscando sentido para muitas evoluções do mundo, e um tanto quanto desiludido da felicidade, atraído foi por aquela cidade cujo nome lembrava o navio de seu primo teórico Darwin, perguntando-se se não estariam ali as respostas aos seus questionamentos. Dois grandes homens que o destino, tão hábil em unir a diversidade, também os reuniu no embate de suas crenças: padre Xisto, defensor do criacionismo, doutor Galton, defensor do evolucionismo.

            Era final da tarde quando padre Xisto, terminando suas orações diárias, e recolhendo seu breviário, ouviu-se chamado ao final da capela. Uma mulher, nos seus trinta e poucos anos, véu rendado ocultando as belas feições, nele pousou seu olhar belo e triste, pedindo, com voz frágil, sua benção. Viera ali pedir-lhe que orasse pelo aniversário de seu casamento que ocorreria no próximo dia. Disse que amava muito o marido, mas que este, por motivos da profissão, não freqüentava muito a igreja. “Ah, os homens!”, pensou padre Xisto. “Preferidos pelas mães, na infância. Poupados pelas esposas, quando maridos”. Porém, preservando-a de suas reflexões, tão sincera lhe parecera, aquietou-lhe o coração afirmando que oraria, em silêncio, por suas bodas, pedindo, também, pela devoção de seu marido.

            Naquela noite, passado o café com bolinhos e a seresta de caldos, promovidos pela paróquia, padre Xisto recolheu-se aos seus aposentos rapidamente. Aos setenta anos, sentia o cansaço mais facilmente e a cama lhe parecia, como nunca, mais acolhedora. Há alguns meses, uma tosse seca o acompanhava ao dormir e, não raro, lhe roubava as noites. Mas aquela noite, por estranho que pareça, anunciava-se diferente. Deitou-se. E dormiu e sonhou. Um sonho repleto de rosas e a imagem daquela senhora sorrindo-lhe confiante e fervorosa o tempo todo.

            Passaram-se os dias. A tosse, agora, incomodando-o durante as manhãs e as tardes. Não tardou que um fiel lhe recomendasse uma visita ao Dr. Galton. Padre Xisto já ouvia falar do tal doutor. Homem da cidade, conhecedor do mundo, cheio de idéias. Dos seus setenta anos via com desconfiança tudo aquilo. E para piorar, o tal ainda era evolucionista. Por opção decidiu não ir. Ruim com o Galton, pior com ele. Mas os dias frios que se seguiram fizeram-no mudar de idéia. Enrouquecendo, quase sem voz para a missa, recusou o jantar que lhe serviram e recolheu-se mais cedo. Deitou-se. E dormiu e sonhou. A jovem senhora, envolta em sua mantilha, que agora lhe cobria o corpo todo, aproximou-se de seu leito, sentando-se aos pés da cama. “Não seria melhor consultar o doutor Galton?” Sua voz, suave e calma, vinha-lhe em pensamento. “Não. É só uma gripe. Não preciso de nada, não.” “Não desmereça o doutor Galton por ele não frequentar sua igreja, nem comungar suas ideias. Talvez, no íntimo, ele ainda acredite... ou possa a vir a acreditar.” “Um tratamento sem fé é um soterramento, senhora. É morte na certa.” “Se continuar assim, padre, a descrença será vencedora”. Padre Xisto ia lhe retrucar quando, olhos pesados, a viu levantar-se e sair. O quarto, inundado de odor de rosas.

            “Padre, o senhor precisa ir ao médico. Está ardendo em febre.” Era a voz do sacristão. Padre Xisto resmungou, mas não recusou. Vinha-lhe à mente a imagem daquela devota, questionando-o da vitória do evolucionismo sobre o criacionismo. “Se continuar assim, padre, a descrença será vencedora”. No consultório do doutor. Galton, paredes lisas, sem certificados ou diplomas. “Não gosta de ostentação”, pensou o padre. Não demorou a ser chamado. O doutor Galton, também em seus quase setenta anos, o recebeu com cordialidade, indicando-lhe a cadeira à frente. “O que o está incomodando, padre Xisto?”

            Padre Xisto contou-lhe sobre a tosse. Lembrou-lhe a febre que passara a consumir-lhe os dias. Tão forte a ponto de ele não ter mais energia sequer para a celebração. E ia relatar mais quando seus olhos pousaram, apreensivos, e atordoados, no retrato sobre a mesa. Doutor Galton, vendo-lhe a reação, baixou os olhos, doloridamente. “Bela face, não, padre?” O padre, dedos trêmulos, tocou o retrato. “Conhece ela, doutor Galton?”. Doutor Galton afastou-se da mesa, recostando-se no espaldar da cadeira. “É minha esposa.” Olharam-se sem se compreender. Um minuto de silêncio se passou. Tão longo... quase infinito. “Ela faleceu há quarenta anos, padre.” “Quarenta anos...?!”. “Fizeram quarenta anos no domingo”.

            Domingo. A missa das bodas. O pedido da mulher de mantilha. Os sonhos. O odor de rosas. O marido descrente. “Se continuar assim, padre, a descrença irá vencer.” O criacionismo e o evolucionismo. Aqueles dois homens descobriram que tinham muito que falar e que aprender. Mais do que adversários ideológicos, tornaram-se amigos e irmãos.

 

Compartilhar: