O CÃOZINHO E A SOCIOLOGIA DO SUBORNO

O CÃOZINHO E A SOCIOLOGIA DO SUBORNO

Tenho uma cachorrinha. Ela sorri, lambe, late, abana o rabinho, dança nas patinhas traseiras todas as vezes, que chego.

Todos os dias chego estressado. Pressões... Pressões... Pressões de um dia de trabalho. Trânsito infernal. Reunião de condomínio. Aquele dia em que, se desse uma chuva de Vera Fischer, cairia, sentado, no meu colo, o Amaral, coveiro jogador ou jogador coveiro. Sei lá! Piadinha sem graça! Faço-lhe um rápido afago na cabecinha dela como que a lhe dizer: "Estou aqui". Mas, ela sente, pela pressão dos dedos, sem nenhuma paciência. Ela não desiste. Vem atrás de mim aos pulos. Late. O que é muito raro, pois se trata de um cãozinho de apartamento.

Ela é o que, nos dias atuais, podemos chamar de um ser empreendedor. Nunca desiste, por mais que eu a expulse ou lhe premie com a minha total indiferença. Sento-me no sofá. Ela se senta, no chão, de frente para mim. Olhos nos olhos, como um freguês intimidador regateando preço. Impõe-me seu focinho de onde ressaltam seus olhinhos pidões. Jogo, para ela, o osso de borracha. Ela corre. Pega-o ainda no ar. Traz de volta. Jogo-o de novo. Ela repete o ritual.

É a suprema maldade humana modificar geneticamente um animalzinho para que ele viva num apartamento. Criaram esse serzinho híbrido para exercer algumas funções, no mínimo, engraçadas: compartilhar da solidão de velhinhos solitários, servir como objeto de decoração para casas mal decoradas, servir como acompanhantes de madames fúteis ou substituir os amiguinhos de crianças mimadas ou ser qualquer coisa, menos um cachorro, com funções de cachorro, como escavar a terra, correr solto pelo mato, dentre outras coisas prosaicas da vida de um cão.

É a suprema ironia criar um osso de borracha para imitar um osso de verdade. É como mascar chiclete pensando que é um bife. É a suprema maldade criar uma ração para se fazer passar por comida. É comer um colchão duro pensando que é picanha. Tudo na vida de um cãozinho de apartamento é falso. Ele é cover de um cão.

Mas, ela é insistente. Um empreendedor precisa ser insistente. Quer porque quer. E não se intimida. Anda atrás de mim pela casa, arranha a porta do banheiro, quando entro para o banho. Rendo-me às suas gracinhas, então permite que eu coce seus pelos por alguns minutos. Logo em seguida, pula no chão, dança nas patinhas traseiras. Tento pegá-la no colo uma vez. Ela permite. Logo quer descer. Dança de novo. Eu me rendo.

Sua dança insistente tem uma intenção recorrente: ela é tarada por um biscoitinho. Esses cover de biscoitos vêm cheios de uma substância viciante. Um cãozinho não resiste a eles. Ela age como um alcoólatra, não resiste a um trago. Quer porque quer o objeto do vício. Jogo-o para ela. Ela corre. Pega. Come. Em seguida, volta. Quer mais e mais e mais até que, empanturrada, deita e dorme.

Existem seres humanos, como cachorrinhos, que praticam o mesmo ritual do cachorrinho de apartamento. Costumam chamar isso ridiculamente de fidelidade. O cão é o melhor amigo do homem, porque o cão é fiel. Não é assim? Não se convencionou encher o peito para dizer asneira, que passa facilmente pelo crivo da burrice? Então, pulam para jogarem na cara do chefe a sua existência. Correm, fazem gracinhas, puxam o saco do chefe. São os melhores amigos do chefe. São fiéis. Conseguem o biscoitinho. Logo em seguida, praticam o ritual do beija mão em busca de outro biscoitinho. Agora são fiéis ao novo chefe. Ao atingirem o seu intento, pulam do colo. Querem mais. Ambição, empreendedorismo, mau-caratismo, fidelidade ou o quê?

Fidelidade em nome de um biscoitinho? Uma promoção? O sujeito se ajoelha até que venha outro e lhe dê outro biscoitinho mais saboroso, outro venha e lhe dê um tão saboroso quanto, porém maior. São os cover de seres humanos. Fidelidade deveria ficar para os cães; para os seres humanos, deveria ficar o amor, a amizade, o respeito... Não a cara de pau travestida de empreendedorismo. Esses são os sabujos, servem como tapate, apenas objeto de decoração. Neles limpamos os pés.

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