O dia em que me desvesti

O dia em que me desvesti

Num dia comum como tantos outros. Um daqueles em que a realidade evapora com o calor do asfalto. Não há vento. As folhas caem batendo o bico no chão. Abre-se a porta. Minha secretária avisa: há uma moça aqui querendo falar com o senhor. E eu, que sequer sou senhor de mim mesmo, levantei-me para receber a moça de sorriso largo. Boa tarde, professor, sou a Daniela Penha. De repente, não mais que de repente, sacou um bloco e uma caneta. Pensei: Daniela Pena, brandindo essa caneta na mão. Disse-me que criou um blog, chamado História do Dia e se dedicava a garimpar histórias de pessoas. Pensei: Chegou o meu dia de virar personagem. Então, desatou a me perguntar. Pensei: É Daniela empenha, empenhada em me virar pelo avesso.

Junto com o sorriso franco, esta cheia de palavras e interrogações, nenhuma reticência. Não é fácil ficar frente a frente com o narrador da sua própria história. Pensei: um trabalho quase insano esse de peneirar fatos, costurar pessoas, ou melhor, montar o quebra-cabeça que cada um de nós é ou acha que é. Essa loucura entre a aparência e a essência.

A mulher de sorriso cativante chega cheia de perguntas, grávida de palavras, ouvidos ávidos e mãos sôfregas olha bem de frente para o seu personagem, mapeia minha cara, mergulha nos meus olhos, parece querer me virar pelo avesso, pretende que eu conte o incontável, me transforme num personagem.

E Daniela perguntou. E perguntou. E perguntou. Chegou a um ponto crucial para ela: na sua vida tudo vira crônica? Respondi: Vira. Também perguntei, E perguntei. E perguntei. Perguntei o perguntável: Por que ouvia histórias de pessoas que não conheceia? Ela me explicou sua luta para dar voz a pessoas sem voz, invisíveis na loucura da vida corrida: o gari, o pipoqueiro, o garçom, o jornaleiro, o porteiro... São pessoas sem nome, a identidade deles era sua profissão: “O garçom, me traiz uma breja!”.

Tornados personagens, jamais imaginariam virar palavras, jamais imaginariam sua invisibilidade para os passantes, fossem agora carimbadas em letras dentro de um livro. Jamais imaginariam pular de uma página para dizer algo a alguém. Daniela lhes fez descobrir suas histórias, para as quais nem eles próprios davam atenção. Eram complexos seres, na sua simplicidade. Mal sabiam se explicar. Ela lhes dava voz.

E ela me disse que eu ficaria surpreso e fiquei, não com eles, mas com ela, sua força, sua clarividência, sua garimpagem, sua necessidade de construir pessoas através de relatos. Agora estaria eu, mero escrevinhador visto por alguém a quem eu conhecera naquele momento que mexeu na minha mente e nas minhas vísceras para falar de um assunto de que não gosto: falar de mim. Relembrei coisas escondidas em algum lugar da mente, fiz curvas sem medo de cair no abismo das recordações.

Falando, ela sonhava e falava e se expunha e se emocionava e falava e anotava, não o que eu dizia, mas como me lia, com seus olhos grudados na caneta e numa folha. E me pedia para parar, anotar um detalhe que, para mim, era mero detalhe. E eu não conseguia refalar. Saltava daquele momento para outro. Também a conheci entre uma pausa e outra, quando a caneta levantada, esperava para espetar o papel. Não é fácil estar de frente para um personagem concreto e aqui está um fragmento de Daniela, transformada em uma crônica, narradora da sua própria história.

Daniela entrou na minha sala mulher grávida de palavras e saiu personagem, narradora de uma parte si mesma, agora personagem da minha história. Deixou ali a marca da sua força, sua inteligência e uma capacidade incomum: ouvir.

Tudo vira crônica, Daniela, lhe preveni: até a história de um dia que era para ser como qualquer outro: comum.

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