OS CRIMES DA CANETA

OS CRIMES DA CANETA

Durante o século XIX, o homem resolveu parar de rabiscar com penas. Ninguém suportava mais aquele pinga e borra, muito menos o mata-borrão. Surgiu, então, a ideia de criar um artefato com o qual se pudesse escrever e ainda trazer dentro de si a tinta para evitar a inevitável sujeira física que a escrita provocava, já que a moral é impossível. A partir daí, vários pesquisadores se debruçaram sobre suas pranchetas, queimaram toneladas de fosfato até criarem, então, uma tal caneta-tinteiro. Lewis E. Waterman, em 1884, patenteou-a. A partir dessa maravilhosa invenção, muito papel foi salvo, muitas almas atormentadas pularam para fora das folhas em branco, contudo nunca ficou tão fácil também externar todo tipo de bobagem e maldade.

Em 1937, Ladislao “Laszlo” Biro, um húngaro refugiado na Argentina, abandonou a caneta tinteiro e inventou a caneta esferográfica. O governo britânico comprou-a para o uso das forças armadas encantado com a sua durabilidade e facilidade de manuseio. Marcel Bich, um visionário italiano naturalizado francês, comprou a patente e, em 1950, criou a caneta BIC. 63 anos depois, o modelo, com pequenas adaptações no design para acompanhar os novos tempos, continua praticamente o mesmo. As sociedades mudaram seus usos e costumes, mas a sua essência não.

Em 1961, importadores, vendo a grande possibilidade de ganharem muito dinheiro, trouxeram a BIC para o Brasil. O público, sempre desconfiado das novidades, não a engoliu no início. A possibilidade do fracasso cedeu lugar ao lucro, quando populacho, para variar, começou a copiar os modismos vindos da Europa. Diante da situação, o governo baixou um decreto em que proibia usá-la para assinar documentos e cheques. No primeiro ano, foram vendidas 3,6 milhões de cópias. 63 anos depois da sua invenção, é um fenômeno de mercado, porque pode ser consumida por qualquer classe social.

Como quem escreve está sujeito a erros, criou-se, então, uma arma contra eles, a borracha. Ela até funciona com alguma competência, porém deixa digitais impressas, pistas indeléveis na cena do crime. Como a borracha deixava pegadas fáceis de serem detectadas e expunha a ignorância do escritor, nasceu a solução mágica, o corretivo líquido feito para cumprir definitivamente o objetivo de pagar. Funciona como uma espécie de cobertor, uma espécie de camada, colcha, esticada sobre os erros. Não os corrige, não os apaga, nem os desmascara, apenas os camufla. Detectá-lo é tão simples quanto observar uma gota de sangue sobre o mármore branco. Basta raspá-lo e logo embaixo está ele, visível, indiscreto, retrato escancarado da ignorância de quem escreveu. Suor, bochechas vermelhas, marcas da vergonha.

O erro é tão inerente aos homens que tanto a vergonha quanto a culpa criaram subterfúgios para encobri-lo, já que não há formas de apagá-lo: “uma mentira dita mil vezes, torna-se verdade” ou “se a versão é melhor que o fato, imprima-se a versão”. Erro virou engano, deslize, mentira, versão, escorregão, inverdade… Os homens criaram a escrita e, com ela, a assinatura, através da qual imprimem sua marca em tudo o que consideram importante para si, por exemplo: redigir leis, impor regras, aplicar sentenças, destruir ou construir reputações… O instrumento responsável por carimbar sua marca pessoal numa folha de papel, com suas próprias versões e/ou fatos, tornou-se um dos maiores símbolos do status quo. Virou relíquia, objeto para colecionadores.

Em 1905, Mr. Frank Jarvis e Mr. Thomas Garner produziram as canetas Conway Stewart, sinônimo de requinte e qualidade. O Primeiro Ministro Britânico Winston Churchill possuía uma; os Presidentes Bush e Clinton também. A Rainha Elizabeth II e o Duque de Edinburgh foram presenteados com duas da The Elite Collection para comemorar suas bodas de ouro. Recentemente, o Primeiro Ministro britânico Anthony Blair, no exercício de suas funções, numa visita oficial à Rússia, ofereceu ao Presidente Putin uma com a pena Churchill Burgundy. Ao Presidente francês, Jacques Chirac, foi dada a Brown Marble Churchill, quando da celebração do seu 70º aniversário. A Conway Stewart foi a caneta oficial escolhida pelo governo britânico para a cimeira do G8. Na época, o Primeiro Ministro Tony Blair presenteou os lideres mundiais com a Conway Stewart nº 58.

Quantos crimes esses homens tão poderosos não cometeram em nome do povo, ao chamá-los despudoradamente de leis ou decretos? Teria sido com uma Conway ou uma Montblanc Black Diamond (560 000 reais. Isto mesmo, você não está delirando: 560 000 reais) que Bush assinou o decreto de invasão do Iraque? Quantas pessoas não pagaram com a vida por esse ato? Você não imagina que o Imperador Hiroito tenha assinado a rendição do Japão na Segunda Guerra Mundial com uma Bic. BIC é coisa de povão, meu amigo. A história jamais o perdoaria, não tanto pela rendição, mas pela falta de nobreza pelo uso de um instrumento tão nefasto no ato.

Quando Luís Inácio Lula da Silva recebeu a caneta das mãos de Nélson Jobim, junto com ela recebeu o diploma de Presidente da República. Lula quase se esqueceu de devolver a dita cuja ao Ministro. O esquecimento faz parte do DNA dos políticos de todos os países, de todas as épocas, dos nossos em particular. Depois disso, o ex-nordestino pobre fez sentir o peso da sua própria caneta, nomeando apadrinhados a torto e a direito, fazendo conchavos com uma corja de politiqueiros, chamando para o colo de Brasília os empreiteiros que o apoiaram. Viciou-se nela tanto quanto os dependentes de droga usam o tubo vazio de uma BIC para aspirar o pó colocado sobre uma superfície. Além de assinar obras absurdas, a caneta ganhou utilidades menos nobres do que constatar a impressão única de um indivíduo.

Homens como Lula, Tony Blair, Nicolas Sarcozy, Hugo Chaves, Evo Morales e mulheres como Cristina Kirshner, Ângela Merkel, Dilma Roussef, dentre tantos outros “pseudo-governantes”, são como atiradores de faca. Nós estamos lá na roda girando de olhos fixos nas mãos deles. Eles conhecem bem a nossa agonia. Valem-se dela. A Montblanc não tem esse nome à toa, ela o usurpou da maior montanha da Europa. Quem a empunha, acredita estar no topo do mundo onde pode decidir sobre a vida de qualquer um. A roda gira nessa mesmice inquietante: uma canetada, uma facada, um tiro, uma bomba em nome da paz e a nossa vida está decidida.

Mas, há também momentos em que a soberba se rende à inteligência. Línguas maldosas dizem que os americanos gastaram milhões investigando uma maneira de escrever no espaço sideral, porque a tinta insistia em não descer até a esfera por causa da falta de gravidade, então como anotar os problemas emergenciais? Os russos, ao contrário, não gastaram um centavo sequer e conseguiram resultados imediatos. Simplesmente usaram grafite. Para usar bem uma caneta, não é necessário estar no topo do mundo, mas de posse da razão.

 

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