Desencanto da Floresta

Desencanto da Floresta

Boneca de pano. Futebol de botão. Amarelinha. Pião. Polícia e ladrão. Brincadeiras da infância que se perdem nas memórias, as quais sucumbem não em função do tempo, mas pela falência da ingenuidade, cuja cria amada seria a honestidade. Crianças jogadas, crianças violadas, crianças mal tratadas, crianças erotizadas, crianças mortas. O que antes era chocante pelo caráter anti-natural, no qual tudo o que é velho, em mente e corpo, deveria perecer primeiro, agora é visto como estatística, números que desmentem qualquer boa hipótese de futuro. Porque o futuro está virando conversa da carochinha. Não só pela bala de revólver. Não só pela estocada de faca. Não só pela rebolada na webcam. Há também as pancadas emocionais de palavras gritadas, a demolição moral pelas atitudes violentas e sem razão.

            Como os olhos de uma criança assimilariam a cena de Gargamel sendo inocentado em tribunais após assassinar e devorar smurfs cozidos em seu caldeirão de horror? E o que os pequenos pensariam quando percebessem que, na verdade, os punidos pelo martelo legal seriam, alucinadamente, os homenzinhos azuis pela simples atitudes de correr e reclamar sua sobrevivência? Que cor teriam os sorrisos infantis frente à notícia de que Esqueleto foi empossado rei de Etérnia, e He-Man terminou banido ou jogado em masmorras por defender bom senso e atitudes cidadãs? Sim, essas hipóteses mirabolantes estariam, infelizmente, convergentes com alguns fatos bastante contemporâneos, os quais contrariam o mais óbvio e saudável desenvolvimento social. Por consequência, tais acontecimentos absurdos ajudam na aniquilação da infância. Afinal, o que fica de vida, no imaginário das crianças quando, em suas formas mais particulares de interpretação, testemunham seus pais ou adultos mais próximos construírem o mundo real de maneira, coniventemente, mórbida? Os atentados extremos contra crianças que, lamentavelmente, são noticiados regularmente, simplesmente, refletem um câncer social confuso e incoerente, cada vez menos silencioso, mais e mais devastador e generalizado. E, enquanto esse câncer se alimenta das estruturas distorcidas de nossa sociedade anti-social, a infância tem seu cerne renovador transformado em boquinhas desdentadas com batom, as quais tentam reproduzir e realizar um sonho ultrapassado de um adulto que morreu, também, já em sua fase infantil. Seu algoz foi um tal futuro promissor. Seu presente, agora controlado no conta gotas. O cinismo das gargalhadas da maioridade só não é maior ou mais intenso do que o choro convulsivo pueril, ecoado na escuridão dos abandonos mas, ignorado pela insaciedade dos mesmos egos que motivaram as referidas gargalhadas. Para o agravamento dessa metástase mortífera, injetam-se os espetáculos midiáticos, lavados pelas lágrimas pseudo- arrependidas da audiência e auditório, despejadas enquanto os mesmos anseiam redenção de suas almas após subirem seus vidros blindados contra pequenas mãos nos semáforos de fome, sede e sonhos interrompidos. Interrupções sucessivas em vidas de trânsitos inglórios.

            À moda João e Maria, crianças estão sendo largadas expostas nas florestas mais sombrias da insanidade humana. O pior é que podem desenvolver, em relação a todos os tipos de bruxas, algo similar à conhecida Síndrome de Estocolmo. Onde a carência adquire proporções gigantescas, os olhares mais ameaçadores ganham formas ilusórias e traiçoeiras de ternura e acolhimento. Tristemente, o acolhimento tem se transformado em sangue, hematomas, traumas e túmulos.             

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