Não é só futebol

Não é só futebol

A Copa do Mundo do Catar vai avançando com as revelações e as surpresas que o futebol proporciona. Numa virada, a Arábia Saudita ganha da Argentina de Messi e o Japão derrota a tetracampeã Alemanha, que aplicou o inesquecível 7 a 1 no Brasil. À medida que o tempo passa a diferença técnica entre as seleções fica cada vez menor. Assim tem sido nos últimos mundiais com a evolução de seleções emergentes e a decadência das esquadras tradicionais, caso da Itália que ficou de fora deste mundial. As circunstâncias que envolveram a 22ª edição da Copa, a primeira em um país do mundo árabe, extrapolaram as quatro linhas e abrangeram questões políticas, comportamentais e religiosas. Temas como a homofobia, a ingestão de bebida alcoólica e a opressão das mulheres provocaram polêmicas na internet e protestos em campo.

 

Uma viagem no tempo mostra que o esporte, principalmente o futebol, foi instrumentalizado por governos e regimes como uma forma de legitimação do poder. Ao sediar a Copa de 1934, o regime fascista de Benito Mussolini utilizou os estádios como uma grande arena política para a celebração do nacionalismo italiano. Com pressão de fora para dentro de campo, a Itália ganhou a copa. Quatro anos depois, em 1938, a copa realizada na França e novamente vencida pela Itália já convivia com a ascensão do nazismo. Meses antes do Mundial, a Alemanha anexou a Áustria. Em 1942 e 1946 não teve copa porque Hitler já tinha invadido vários países da Europa. Na América Latina, a ditadura militar explorou politicamente o tricampeonato do Brasil, no México. A pressão extracampo da ditadura militar argentina em 1978 culminou no vexame histórico produzido pela seleção peruana que entregou o jogo para os argentinos por 6 a 0. Jogando em casa e com o apoio do regime ditatorial, a Argentina foi campeã.

 

Os mais entusiastas do futebol lembram que a Federação Internacional de Futebol (FIFA) teria mais influência que a Organização das Nações Unidas, 211 filiados, contra 193 da ONU e 206 do Comitê Olímpico Internacional (COI). Com um histórico de escândalos e casos de corrupção, a maior entidade do futebol se move por interesses econômicos, sem levar em conta a liberdade de expressão, os direitos humanos e as garantias individuais. Por isso, a entidade não viu problemas para escolher a Rússia de Vladmir Putin para sediar a copa de 2018 e o Catar em 2022. O país árabe é conhecido pelo regime intolerante, onde a homossexualidade é considerada um crime e as mulheres são subjugadas.

 

Quem defende a escolha do país como sede do Mundial atribui as críticas ao conflito cultural entre o oriente e o ocidente, mas a questão de fato não é essa. A liberdade religiosa também é um direito individual, mas isso não serve de justificativa para a perseguição de minorias, a censura e a discriminação. O Século XXI se apresenta como uma era da diversidade em que todas as organizações precisam se voltar à inclusão e ao acolhimento. Pela influência, o alcance e a paixão que desperta, o futebol, com seus palcos em forma de grandes estádios, não tem como ficar de fora deste processo de mudança.

 

O arco-íris, um dos fenômenos mais bonitos do universo e símbolo do movimento LGBTQI+, não pode se expressar livremente na Copa do Catar. Roupas, objetos e até a bandeira do Estado de Pernambuco que remetem ao conjunto de cores foram proibidos nos estádios. Surgiram várias denúncias de que os operários que construíram os estádios trabalharam em regimes análogos à escravidão. Na hora do hino nacional era visível o constrangimento dos jogadores do Irã com a violação dos direitos das mulheres em seu país. O futebol não pode ser encarado como algo apartado, pois ele é praticado por jogadores que antes de serem atletas são cidadãos, seres humanos que precisam ter os seus direitos essenciais respeitados. As vaias, os protestos de jogadores e torcedores contra a direção da FIFA forçam a revisão dos critérios. Ao se abrir para o mundo, o Catar recebeu um choque cultural e de cores. Os tempos de liberdade, diversidade e alegria não combinam com opressão, ditaduras e proibições arcaicas. Mesmo que isso não passe de uma mera utopia, há que se buscar a igualdade de condições dentro e fora do campo.

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