O aviso da sombra

O aviso da sombra

O conto, o inventivo gênero literário, tem a ver com a essência da alma humana, brota da necessidade de ouvir e de contar histórias. Afeito à fantasia e à ficção, seu charme consiste em trilhar caminhos descompromissados com a realidade para cutucar a imaginação. Explora essa vertente simbolista, que conta e até sugere, mas não diz tudo, sempre deixando uma porta entreaberta para que o próprio leitor possa entrar e concluir a síntese da história. O conto cria universos reais e fictícios que enreda narrativas, personagens e visões de mundo. 

A região tem um mestre nesta arte, o escritor gaúcho Menalton Braff, radicado em Serrana, autor de quase três dezenas de livros. O mais conhecido deles, “À Sombra do Cipreste” ganhou o prêmio Jabuti, o mais tradicional da literatura brasileira. Embora o livro tenha sido escrito e premiado há mais de 20 anos, o conto que dá título ao livro permanece atual e sugestivo para refletir sobre a finitude da vida, algo que mais dia menos dia, inquieta, sem exceção, a todos os mortais. 

No texto, uma avó está numa sala, apenas de corpo presente, num típico almoço dominical, rodeada por filhos, netos e bisnetos, mas suas memórias, lembranças e pensamentos já viajam distantes, ao mesmo tempo em que pressente a chegada sutil da sombra de um cipreste do jardim ao lado, projetada pela janela. Embora esteja rodeada pelos familiares mais próximos, a matriarca sente os efeitos indeléveis da solidão, uma percepção que cresce à medida que o tempo avança. Embora fisicamente estejam reunidos, seus filhos e netos cuidam da própria vida e tratam de assuntos que se alinham com seus interesses. Um tanto escanteada na prosa familiar, a velha senhora assiste a seus descendentes se perderem em discussões inconsequentes, fúteis, permeadas por uma competividade sem propósito, misturada com arrogância típica daqueles que acham que sabem de tudo. “Em outros tempos não me sofreria sem interferir, tentando impor minha opinião, mas a idade ensina muitas coisas, e a mais sábia de todas é o silêncio”, reflete com seus botões a sábia vovó. 

Logo, entre muitas risadas, alguém desfere a pergunta corrosiva e cheia de ambiguidades para cumprir o protocolo de puxar conversa.

— O que é que a senhora
acha, hem, vovó?

“A idade já me deu o direito de manter minhas opiniões em cofre escuro, sem as compartilhar com ninguém. Vai longe o tempo em que me batia guerreira na defesa de minhas ideias”. Alguém insiste na pergunta e a anciã se esquiva com uma interjeição despropositada para fugir de uma discussão que não vai levar a lugar algum. Esse diálogo que não flui reproduz situação frequente dos dias atuais em que ficou difícil estabelecer um ponto de equilíbrio para a longevidade da nova geração de idosos. Há que se encontrar um meio termo entre o olhar desdenhoso, indiferente, sem complacência e a falsa comiseração com o “pobre velhinho”. A velhice cria situações inusitadas, a mais contraditória delas é a sensação de solidão mesmo que o idoso esteja cercado por familiares. Em determinado momento de uma vida longa, só os vínculos de parentesco não são suficientes para manter vivas as relações de afeto.  

Os ciprestes são comuns em cemitérios. Os gregos acreditavam que essas árvores em formato de guarda-chuva podiam impulsionar os mortos em direção ao Olimpo. No conto de Menalthon Braff, o cipreste e a sua sombra que adentram a casa cumprem essa função simbólica: metaforicamente avisam que a morte está chegando, lentamente, dia após dia, de maneira suave sem provocar dor e sofrimento. Você olha e a sombra está numa posição. Fica distraído por alguns minutos e ela já avançou mais pouco, roubando um tempo precioso da sua existência. Abre-se uma distância entre quem está de partida e quem ainda tem muito tempo pela frente, entre quem percebe e quem não nota a sombra do cipreste correndo as horas e rondando a sua morada. Pelo menos no conto de Menalton Braff, essa despedida inevitável diante da chegada da morte ocorre de forma suave, poética e sem drama

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