Vida sem rumo

Vida sem rumo

De uns tempos para cá, as doenças mentais ganharam visibilidade e passaram a fazer parte da rotina das famílias. Especialistas atribuem o aumento da incidência ao crescimento da longevidade da população idosa. Com frequência cada vez maior aparecem casos de esclerose mental, quadros de depressão profunda e o temido Alzheimer, uma doença progressiva que aos poucos vai destruindo algo precioso para qualquer humano: as suas memórias, o seu passado e sua própria história. Sem as lembranças, o ser humano vira um computador sem software, alguém solitariamente perdido em um labirinto sem saída.

Por ser um fenômeno recente, o círculo familiar do idoso também não está preparado para lidar a enfermidade que destrói até as relações afetivas. As doenças mentais possuem um componente subjetivo que dificulta a percepção. Fica contraditório entender como alguém inteligente e com uma aparência saudável pode estar muito doente. Os sintomas da doença se misturam às manias antigas, ao destempero do comportamento e ao mau humor decorrente da incompreensão. Comumente, as fragilidades das doenças são classificadas como artimanhas para chamar a atenção ou tentativas de vitimização. Por outro lado, a disponibilidade para se dedicar ao próximo, a paciência e a boa vontade com os problemas alheios são atitudes cada vez mais escassas na agitação da vida moderna.

Por conta deste quadro preocupante, não poderia ter sido mais oportuna, a produção do diretor Florian Zeller, “Meu Pai”, que não ganhou o Oscar de melhor filme, mas permitiu que Anthony Hopkins, o inesquecível Hannibal Lecter, se consagrasse como o mais idoso artista a conquistar o Oscar de melhor ator, na lucidez dos 83 anos. O diretor esperou quatro anos para que o famoso artista do País de Gales, nascido no final da década de 30, aceitasse o convite. Para retratar o universo do Alzheimer, o ator mergulhou de corpo e alma na interpretação, emprestando ao personagem seu nome verdadeiro, sua idade real e a sua capacidade de interpretação.

O Alzheimer quebra a lógica do mundo em múltiplos pedaços que não se recompõem mais. A vida perde o sentido em fragmentos que não se juntam na mente. Os esquecimentos se tornam constantes, os acontecimentos irreais invadem a memória e os nomes de pessoas próximas fogem da lembrança. Frequentemente, a enorme dificuldade para lidar com questões banais do cotidiano, como a simples contagem dos dias, resulta em explosões de raiva e acessos de fúria. Perde-se o controle sobre o tempo e a insônia vira companheira de longas noites. Quando a realidade e a confusão mental se misturam, a lógica entra em pane. Traído pela memória, o idoso com Alzheimer não tem como perceber que sua vida social vai ficando limitada a uma pequena porção de casos, muitas vezes repetidos à exaustão. Por enquanto, não tem cura, só existem remédios que retardam o avanço da doença.

O espectador só quer entender o filme, mas o diretor Zeller confunde até quem assiste. Mistura personagens, joga com as idas e vindas do tempo e coloca em dúvida a veracidade dos acontecimentos. O apagão mental se torna corriqueiro. Ao mostrar o mundo pela visão de uma pessoa mentalmente confusa, que não pode mais nem confiar na própria memória, o filme faz com que o espectador mergulhe na angustiante experiência de perder o rumo, ver como seria uma vida sem sentido. Ao mostrar o mundo pelos olhos de uma pessoa com Alzheimer, “Meu Pai” faz um emocionante e eloquente apelo à empatia ao instigar que cada espectador se esforce um pouco para ver e entender a vida pelo ponto de vista do doente. Sem dúvida, um belo exercício de humanidade.

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