A construção da verdade

A construção da verdade

Os neologismos nunca estiveram tão em moda. Neste novo mundo alucinado, sustentado pelas redes sociais, com bilhões de redatores digitando freneticamente, a cada minuto surgem novas expressões. Muitas são insanidades que logo são descartadas, mas outras ganham fôlego e espaço na imprensa tradicional. Agora, o verbete da moda se chama pós-verdade. Na teoria, a definição parece muito fácil, pois a verdade precisa estar de acordo com os fatos ou com a realidade, necessita estar em harmonia com o modelo original ou com algo que seja suficiente real e autêntico. Bastar avançar um pouco em direção à prática para que a “verdade” desfaleça e mostre a face mais contraditória. O mundo que democratizou as manifestações via redes sociais está dominado pelas “verdades absolutas” que conflitam com a realidade. 

Eis a razão de tanta discórdia. Na raiz do fracasso das relações amorosas, está a verdade cega que cada um dos envolvidos carrega sob a proteção do espírito armado. Na política, o governante que provocou um desastre político e econômico sai de cena se autoproclamando um grande realizador de obras. Nada mais subjetivo, uma vez que a verdade, na sua utopia, persegue a harmonia perfeita entre a subjetividade cognitiva do intelecto humano e os fatos, os eventos da realidade objetiva. As dicotomias brotam dessa percepção subjetiva do ser humano.

Se não bastassem todas as contradições intrínsecas e subjetivas que a verdade já possui, o dicionário de Oxford resolveu brindar a humanidade com mais um complicador. A “pós-verdade” foi escolhida por ilustres catedráticos da universidade inglesa como a palavra do ano que, na sua definição mais simples, declara a irrelevância dos fatos para a formação da opinião. Em 2015, a escolha recaiu no emoji, aquela simpática carinha amarela que chora de tanto rir. Na versão mais complexa do conceito, destaca-se a síntese que faz com que fatos objetivos sejam menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção ou à crença pessoal. Na fase atual da pós-verdade, os fatos perdem feio para as versões.

No Brasil, muita gente pregou que a Lava-Jato tinha como grande interesse cassar dirigentes de um único partido político. Os fatos provaram que políticos de vários matizes foram enquadrados, assim como empresários, atravessadores e funcionários públicos. Outros tantos continuam acreditando, piamente, que a Rede Globo é a senhora vilã de todos os males da pátria amada. Quem dera assim fosse. Seria bem mais fácil resolver. Por certo que a emissora do Jardim Botânico continua sendo influente e defende interesses, mas há muito tempo perdeu a influência quase monopolista de outrora. A formação do “senso crítico nacional” hoje se encontra diluída em milhares de sites, portais, provedores de notícias, veículos especializados, grupos informais e redatores desconhecidos que colocaram por terra o monopólio da informação. Milhares de correligionários ainda idolatram líderes messiânicos, mesmo que os atos públicos e particulares dos falsos mitos desautorizem qualquer tipo de admiração. Recentemente, a apresentadora Fátima Bernardes foi alvo de um ataque nas redes sociais por causa do resultado de uma enquete, ainda que a escolha da pergunta a ser respondida pelos entrevistados tenha sido extremamente inadequada. Um deputado federal explorou politicamente o fato e pelas redes sociais relacionou a enquete à queda do helicóptero da Polícia Militar na Cidade de Deus. Usou essa falsa relação para atacar a apresentadora e ganhar visibilidade.

Essa crise da verdade tem a ver com a perda de espaço do jornalismo tradicional e o crescimento de plataformas de informação como Twitter e Facebook, que potencializam a confirmação de crenças de todos os lados e para todos os gostos. Se o modelo antigo, pautado pela checagem das informações, tinha falhas e imperfeições, o atual virou uma selva sem regras, onde se pode plantar inverdades instantâneas. O Facebook alimentou esse circulo vicioso quanto alterou seu algoritmo de forma a diminuir o alcance de postagens de sites noticiosos e privilegiar o de amigos e de familiares. Assim, a imprensa tradicional está perdendo espaço para as redes sociais na construção das narrativas. Bolhas tendenciosas circulam livremente sem nenhuma contestação até alcançar a legitimidade. Afinal, as “informações originais” foram compartilhadas por amigos da mais absoluta confiança. A imprensa que checa fatos antes de publicar compete por espaço com uma ampla gama de informações falsas. Embora hoje o cenário esteja distorcido, a tendência é que a verdade, de fato, prevaleça, pois sua construção, baseada em fatos, depende do senso crítico, um filtro que só os seres humanos ainda são capazes de desenvolver. 

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