Os boletos e o diálogo

Os boletos e o diálogo

A Justiça aceitou, em meados de fevereiro, a denúncia contra nove vereadores que foram afastados pela Sevandija, três secretários da administração da ex-prefeita, Dárcy Vera, e mais dois funcionários públicos. Este processo refere-se ao escândalo da Companhia de Desenvolvimento de Ribeirão Pretor (Coderp). Além da questão judicial, do ponto de vista político, esse histórico acontecimento marca a possibilidade do surgimento de uma nova era em Ribeirão Preto, com a abolição de práticas nefastas e corruptas que colocaram a cidade nesse estado de calamidade pública. As urnas também colaboraram com a faxina política e 19 novos vereadores foram eleitos.

Estranhamente, quando os olhos da população, cheios de expectativa, estão voltados para a atuação da nova Câmara de Vereadores e do novo governo, uma conversa muito anormal, esquisita mesmo, tomou conta do noticiário político: a surpreendente falta de diálogo entre pessoas que se conhecem há décadas, entre grupos que fizeram campanha juntos na recente eleição de 2016 e até mesmo entre políticos que fazem parte do mesmo partido, no caso, o prefeito do PSDB e os três vereadores do partido. De repente, o diálogo entre gente tão próxima desapareceu. Os sinais mais evidentes dessa anomalia política se refletiram em placares retumbantes de votações na Câmara. Os projetos da nova administração foram rejeitados por inusuais 27 a 0. A unanimidade em uma Câmara recém-eleita e tão diversificada configura algo tão raro, que se pode desconfiar dela. De uma semiológica leitura da significância dos fatos dá para se depreender que alguém, um grupo, uma maioria ou a totalidade está mandando um recado para o novo prefeito que está cheio de promessas de austeridade para cumprir. Assim, o que estaria acontecendo nos bastidores da Câmara e do novo governo, do qual a cidade tanto espera e que começou seu mandato com o atípico zero de apoio na Câmara de Vereadores? A democracia se equilibra na disputa entre o governo e a oposição. A demora do atual governo para escolher uma liderança na Câmara passa a impressão de menosprezo, mas, por outro lado, parece pouco provável que o prefeito Duarte Nogueira, que fez a maior parte da carreira política nos parlamentos estadual e federal, tenha uma aversão ao diálogo com os parlamentares da cidade que administra, bem no começo do mandato.

Sob outro aspecto, pode ser que a nova Câmara esteja sequiosa para ter diálogos republicanos com o novo prefeito para encaminhar questões de alto interesse público, resolver problemas que estão parados há muito tempo como o plano diretor, os problemas do transporte coletivo, a crise da saúde ou o resgate do patrimônio histórico. Na antítese dessa hipótese otimista, seria inadmissível que a decantada “falta de diálogo”, no fundo, esteja escondendo uma conversa nada republicana em torno das centenas de cargos de confiança que ficaram vagos com o término do governo anterior e a devassa feita pela Polícia Federal.

O grande legado da Sevandija, que agora começa a processar os acusados, é ter tornado público uma prática nociva que só era conhecida nos bastidores: o conluio, o velho toma lá da cá, as maiorias construídas na base do atendimento dos privilégios, os votos barganhados e comprados, além da preferência para o atendimento de indicações dos aliados em detrimento da relevância. O novo governo começa o ano pressionado por um déficit orçamentário gigantesco e aprofundará a crise da cidade se sucumbir à chantagem e à barganha política em detrimento da austeridade e do interesse público. Neste anômalo início de gestão do Executivo e do Legislativo, no começo desta semana, houve uma reunião do prefeito com 11 vereadores em que ambas as partes reafirmaram o famoso óbvio ululante para quem faz parte da vida pública: a disposição para conversar. A administração respondeu que já tem demandas dos 27 vereadores. Não se pode governar por decreto e tampouco aprovar propostas populistas de reajuste anual zero. Também não se pode votar para agradar aos 300 que estão na plateia, porque Ribeirão Preto tem mais 650 mil habitantes.

O que de fato está emperrando a falta de diálogo, quais seriam as divergências, as diferenças giram sobre projetos de qual natureza? Se não estiver embasado na ideologia, o voto costuma ter um custo, seja para o eleitor comum ou para um representante do parlamento. A sociedade espera que essa súbita “falta de diálogo” entre o Executivo e Legislativo não tenha por baixo do pano aqueles boletos escusos que espantam a opinião pública quando são descobertos. Se nos bastidores, as velhas práticas forem retomadas, daqui a pouco, correremos o sério risco de nos deparar com uma nova edição da Sevandija, a parte 2 ou a sua revanche. Para quem perdeu a conta, a inspiradora lava-jato já está na sua 39ª edição. 

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