Pandemia: Interesse Público VS Privado

Pandemia: Interesse Público VS Privado

1.Supremacia do Interesse Público

John Donne já dizia, no século XVII, que ninguém é uma ilha. Esse pensamento se mostra atual diante da pandemia causada pelo Covid-19 não só porque - mesmo com a necessidade do isolamento - encontramos meios para manter o contato e o carinho com aqueles que amamos. A atualidade da frase é evidente pois, mais do que nunca, percebemos que vivemos em sociedade e precisamos unir esforços para que todos fiquem bem. Neste momento, uns precisam de ajuda, enquanto outros podem ajudar e vemos que as decisões tomadas pelo prefeito, deputado ou juiz (seja para conceder ajuda financeira ou decidir se temos que ficar em casa ou não) impactam diretamente as nossas vidas.

Todo este contexto faz ressurgir a discussão sobre o que nós, enquanto sociedade, achamos que é certo ou errado fazer, quais são os nossos direitos e deveres e em quais situações predomina um ou outro valor. Além disso, também nos faz pensar sobre de que forma é adequado usar o monopólio da força do Estado para fazer valer esses valores.

Aqui, é interessante lembrar que nem sempre o Estado foi usado para assegurar direitos coletivos. Por muitos séculos o Direito Privado e a noção de que o Estado deveria apenas assegurar direitos individuais predominaram. Foi só a partir do século XIX que essa ideia passou a ser superada pelo entendimento de que o Direito é uma ferramenta para alcançar a justiça social e o bem-estar de todos. Assim, o número de tarefas realizadas pelo Estado aumentou para atender às necessidades das pessoas, e ele deixou de dizer apenas o que não se deve fazer, passando a dizer também quais são as obrigações de cada cidadão.

Desta forma, substitui-se a ideia de que o Estado deveria resguardar apenas interesses individuais pelo princípio que hoje serve de fundamento para todo o direito público e que vincula a Administração em todas as suas decisões: o de que os interesses públicos têm supremacia sobre os individuais¹.

Este é o princípio da supremacia do interesse público, e ele traduz a ideia de que o Estado é incumbido de realizar as tarefas que os indivíduos que formam uma comunidade, sozinhos, não conseguiriam realizar. Por isso, hoje cabe ao Estado brasileiro zelar pela defesa do consumidor, promover a saúde e a educação, proteger o meio ambiente, erradicar a pobreza e as desigualdades, entre outros. Na prática, isto significa que, se o governo desempenha essas tarefas visando ao bem comum, em uma situação de conflito entre um interesse individual e um interesse público, prevalece o segundo.

Mas o que é permitido ou não fazer em nome da sociedade? O que seria, exatamente, esse interesse público? Ele sempre prevalece sobre o interesse individual? Como fica tudo isso em situações atípicas como uma pandemia? As respostas para essas perguntas não são certas e definidas, de forma que este texto busca trazer elementos para contribuir com o debate.

 

2. Limites à Supremacia do Interesse Público

O interesse público não pode ser um conceito vago utilizado pelo Estado para justificar qualquer tipo de intervenção. Isso porque, o objetivo de unir esforços e constituir uma sociedade é que os indivíduos se beneficiem da coletividade, e não que o Estado tenha poderes ilimitados e possa fazer o que quiser. Nesse contexto, entram três outros princípios importantes: o princípio da legalidade, o da subsidiariedade e o da indisponibilidade do interesse público.

Conforme dito acima, o Estado é um instrumento utilizado para que os cidadãos obtenham serviços que não conseguiriam sozinhos. Nesse sentido, o princípio da subsidiariedade impõe que a Administração Pública só intervém naquelas atividades que são inviáveis aos indivíduos com esforços próprios, e sempre deve agir buscando garantir os direitos fundamentais².

Mas, quando de fato a Administração Pública intervém, pelo princípio da legalidade, cabe a ela atuar sempre de acordo com as leis que regem o seu comportamento. Sendo assim, toda e qualquer ação do Estado no sentido de restringir direitos deverá estar prevista na lei, de forma que, quanto mais restritiva a ação do Estado, mais clara, explícita e reforçada a lei deve estar.

Por fim, para garantir a execução de serviços públicos, o Estado detém vários bens e possui vários privilégios. Contudo, segundo o princípio da indisponibilidade do interesse público, esses bens, direitos e privilégios não pertencem à Administração Pública, cabe a ela apenas usar eles para proporcionar serviços de qualidade para a população. É por causa disso que, por exemplo, o Estado deve fazer licitação para vender seus bens e conceder a entes particulares o direito de prestar um serviço no seu lugar³.

 

3. Pandemia: problema imprevisível

Vimos que existem, de fato, limites à supremacia do interesse público. Mas como elas funcionam em um momento atípico? O que o Estado pode fazer? Ele deve, sequer, intervir? Como é possível usar regras tão complicadas e demoradas como a das licitações em um momento que demanda medidas urgentes? A despeito do princípio da legalidade, não existem regras específicas que limitam a possibilidade de atuação da Administração Pública em uma pandemia.

Por vezes, podemos pensar que a supremacia do interesse público é uma mera questão utilitarista, isto é, garantir que o maior número de pessoas possível seja beneficiado. De acordo com esta corrente de pensamento, se a sociedade precisa conter a propagação do vírus, e o Estado pode proibir a circulação de pessoas tanto para dentro e fora do Brasil, quanto nas cidades, então ele deve fazê-lo, pois esta solução resulta em menos pessoas contagiadas.

Mas as coisas não são tão simples assim. Muitas vezes uma solução beneficia pessoas na mesma medida que prejudica outras. Ou a própria definição de benefício é muito subjetiva, dependendo muito da visão particular de cada um. Enquanto algumas pessoas podem achar que o Estado deve ajudar comerciantes para evitar sua falência, já que o papel do Estado seria justamente providenciar o bem-estar social; outras podem achar que o Estado não deve dar essa ajuda, pois é melhor que ele não interfira na economia.

Devemos lembrar, nesse sentido, que a supremacia do interesse público não significa passar por cima dos interesses individuais. O interesse público, nada mais é do que o conjunto de interesses particulares em comum. Por exemplo, se os cidadãos, individualmente, acham essencial ter serviços de saúde gratuitos, de qualidade e acessíveis, é de interesse da coletividade unir esforços para esse fim específico. Agora, o problema se instala quando temos conflito entre o que todos querem e as medidas possíveis para atingir esse fim. Imagine a seguinte situação: 

É de interesse de todos que contenhamos o Covid-19. Vários países como a Coréia do Sul, a China e a Austrália usaram o monitoramento de dados pessoais pelo celular para rastrear os infectados e possíveis infectados e testá-los. No Brasil, temos o mesmo interesse, mas será que estamos dispostos a renunciar a nossa privacidade e liberdade para este interesse? Será que o interesse público prevalece sobre o direito individual fundamental? Usando as palavras do título de um artigo da Newsweek: você deixaria o Estado monitorar o seu celular se isso significasse o fim da quarentena? 

Portanto, a solução não é tão simples quanto usar dos poderes do Estado para impor quarentena, obrigar que as pessoas façam e divulguem os resultados de exames e tratamentos médicos, fechar estabelecimentos comerciais ou rastrear os celulares das pessoas para monitorar a contaminação no país. Restringir direitos tão valiosos quanto a liberdade individual é uma tarefa perigosa, que necessariamente só pode vir depois de muita ponderação, e só deve ser utilizada em último caso.

 

4. Luz no fim do túnel?

Diante de todo o exposto, o que podemos fazer? Em verdade, não existem respostas e o debate cabe a todos os cidadãos. De qualquer modo, é possível fazer algumas considerações a respeito da atuação do Estado em tempos de pandemia.

Em primeiro lugar, quando se fala no princípio da legalidade, não se deve entender que quem faz as leis sempre deve descrever, de modo prévio e em mínimos detalhes, regras para tudo o que pode acontecer. Também não se deve entender que o Estado é impedido de atuar em favor de direitos fundamentais e interesses públicos por falta de previsão legal. Isso porque, ninguém consegue prever o futuro e para quais situações devemos nos preparar, e é impossível que o Estado seja omisso em um momento que muitas pessoas precisam de ajuda.

Assim, em caso de colisão de interesses públicos voltados para a satisfação de uma meta coletiva e direitos individuais fundamentais, é preciso fazer uma ponderação de acordo com dois parâmetros: a análise da razão pública e da dignidade humana. 

O uso da razão pública consiste na identificação de elementos constitucionais essenciais e consensuais de justiça, dentro do pluralismo político. Em outras palavras, significa buscar o que as pessoas, mesmo com diferentes visões, valorizam e têm como justo.

Já o princípio da dignidade da pessoa humana significa ver a pessoa como um indivíduo com direitos fundamentais inerentes e vontade própria, autônomo em relação à sociedade. Aqui, entende-se que o ser humano deve ser tratado como um fim em si mesmo, que não pode ser reduzido à condição de meio para a realização de metas coletivas.

Além do fato de que o princípio da legalidade não engessa a Administração Pública, e da necessária ponderação ao se analisar o conflito de interesses, é preciso sempre ter em mente que uma sociedade é um conjunto de pessoas com interesses muitas vezes diferentes. Sendo assim, o Estado deve sempre buscar agir permitindo a participação popular, a plena e verdadeira atuação do cidadão. Ao aliar a cooperação ao seu processo de tomada de decisão, a Administração Pública consegue identificar o real interesse público, o que confere legitimidade e eficácia a sua atuação.

Portanto, apesar de existirem diversas regras que o Estado deve seguir ao atuar para garantir o bem-estar social, o principal remédio para os entraves na atuação dele, especialmente em momentos atípicos, é o debate aberto e a participação dos verdadeiros detentores do interesse público: os cidadãos.

Texto escrito por Júlia Leal da Silva, estudante de Direito na Faculdade Direito de Ribeirão Preto.

Referências

¹ DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 22ª ed. São Paulo: Atlas, 2009.

² MARRARA, Thiago. Manual de direito administrativo - vol. I: fundamentos, organização e pessoal. 1. ed. São Paulo: Kindle Direct Publishing, 2017

³ CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 22ª ed. revista, ampliada e atualizada. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2009.

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