A Psicologia Comportamental e a Tomada de Decisão na Esfera Pública

A Psicologia Comportamental e a Tomada de Decisão na Esfera Pública

Em novembro de 2002, enquanto ainda era presidente dos Estados Unidos, George W. Bush disse "Não perco muito tempo fazendo pesquisas pelo mundo afora para me dizer qual eu acho que é o jeito correto de agir. Só preciso saber como me sinto". A frase do célebre estadista não retrata apenas um traço de sua personalidade, mas também mostra uma característica inerentemente humana.

Daniel Khaneman, no livro "Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar", demonstra o fenômeno da "disponibilidade". Esse conceito descreve como as pessoas são levadas a dar importância a um evento ou a uma ideia a partir de quão fácil esse evento ou ideia vem à mente, assim como a partir da carga emocional que o acompanha. Por exemplo, se uma pessoa é requisitada a citar 12 vezes em que foi pró-ativa, mas é incapaz de falar mais de 5 ou demora muito para o fazer, ela tende a achar que não é uma pessoa pró-ativa. Note que isso não significa que a pessoa é passiva, pode ser que ela simplesmente não se lembre de 12 situações em que tomou iniciativas.

Mas o que tudo isso tem a ver com a gestão pública? Apesar de se tratar de um fenômeno que ocorre na cabeça de cada um, a disponibilidade também pode tomar proporções coletivas. Isso também afeta os problemas que os cidadãos enxergam e os critérios de tomada de decisão dos agentes públicos, como o próprio ex-presidente dos Estados Unidos já revelou. Pense na seguinte situação:

Em virtude de fortes chuvas, lixo tóxico enterrado acabou sendo exposto em Love Canal, causando contaminação da água e mau odor. Os moradores ficaram revoltados e se mobilizaram de forma a atrair a atenção da mídia e de mais pessoas em todas as partes dos Estados Unidos. No auge desta crise, grandes redes de televisão veiculavam reportagens diárias sobre a contaminação em Love Canal e eram feitas passeatas com caixões de crianças em frente ao Congresso. Contudo, já naquela época, cientistas alertaram para a superexposição do caso e apontavam que os perigos não eram tão grandes, mas foram silenciados ou ignorados. Assim, o lixo tóxico virou a principal questão ambiental nos EUA na década de 80, foi passada uma lei federal que é um marco na regulação deste assunto e foi destinado muito dinheiro tanto para assegurar o cumprimento da lei, quanto para medidas paleativas na região, como retirar os moradores de lá. Anos depois, ainda há controvérsia a respeito do real risco à saúde que o problema representou e muita gente alega que todo o dinheiro gasto com ele seria melhor alocado em outras questões[1].

A partir desta situação, o presente texto abordará algumas das principais problemáticas que existem na gestão pública quando analisada pela ótica da psicologia comportamental: a forma como a disponibilidade afeta as medidas que são tomadas na sociedade. Afinal, no caso de Love Canal, o que seria certo fazer? Ouvir os cidadãos e alocar recursos para solucionar o problema, ou ouvir os cientistas e focar em outros problemas mais relevantes?

 

Ouvir o povo?

A perspectiva de Abraham Lincoln de que o governo é feito pelo povo e para o povo é a base do constitucionalismo americano. No Brasil, o art. 1º da Constituição Federal determina que todo poder emana do povo, enquanto o art. 3º impõe como dever do governo brasileiro promover o bem de todos. Sendo assim, nada mais óbvio do que a necessidade de ouvir os cidadãos, suas necessidades e críticas.

Contudo, as coisas começam a ficar obscuras dentro da gestão pública na medida em que, apesar de as pessoas serem afetadas pelas políticas governamentais e pelas decisões tomadas pelos gestores, na maior parte do tempo elas não possuem conhecimento técnico sobre a situação. Ou mais que isso, muitas vezes as pessoas não têm uma clareza racional a respeito dos problemas da sociedade que merecem maior atenção, além de serem muito suscetíveis à disponibilidade e à influência da mídia.

Uma pesquisa de 2009 realizada na cidade do Rio de Janeiro analisou como as pessoas avaliam a dimensão de alguns problemas, e comparou com a quantidade de aparições desses problemas na mídia[2]. Foi constatado que entre a morte por acidente de trânsito e por infarto, por volta de 80% dos entrevistados achavam a primeira mais provável. Nessa época, os pesquisadores constataram que houveram 41 notícias sobre morte em acidente de trânsito e 7 sobre infarto. Tudo isso quando, segundo dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, em 2009, 37.594 pessoas morreram em acidentes, e 76.360 pessoas morreram de infarto[3].

Este é apenas um estudo de vários outros que confirmam a disponibilidade influenciada pela mídia, ou seja, o fenômeno segundo o qual uma exposição midiática maior gera uma certa impressão nos espectadores que não é real, mas está, na verdade, mais acessível na memória das pessoas. Mais paradoxal ainda é o ponto de que não só as pessoas são influenciadas pelo conteúdo presente na TV, rádio, jornal ou internet, mas os próprios redatores são influenciados por aquilo que o povo tem interesse em ver.

 

Ouvir Especialistas?

A solução seria então fechar os olhos para a opinião das pessoas e da mídia, para ouvir apenas especialistas?

O jurista americano Cass Sunstein acredita que, como os governantes muitas vezes tomam decisões com base na opinião dos cidadãos, e não de acordo com objetivos racionais específicos, os especialistas seriam justamente o "freio" para os excessos da pressão popular. Isso porque Sunstein tem uma visão utilitarista da gestão pública, ou seja, ele acredita que a melhor decisão é aquela que promove benefícios ao maior número de pessoas. Assim, quando um gestor tem uma decisão a tomar, ele deve fazer uma ponderação racional entre o número de vidas salvas e o custo econômico, e escolher a opção que salva mais vidas a um custo menor.

Essa perspectiva traz, contudo, alguns problemas. O primeiro deles é que ouvir mais ou apenas especialistas pode levar os agentes públicos a tomar decisões que o povo rejeita. Imagine que os membros do executivo e legislativo, eleitos, apenas governem de acordo com o que essa mesma classe pensa e com a ajuda de opiniões técnicas, sem nunca ver e ouvir o que se passa com o povo e a mídia. Tomar medidas dessa forma pode até conferir um caráter autoritário e obscuro ao governo. Ademais, como vimos no tópico anterior, é inclusive incompatível com a democracia e os objetivos principais da constituição brasileira ignorar os anseios dos cidadãos.

No tópico anterior  também foi falado sobre o papel da mídia enquanto influenciadora. Como é possível observar em pesquisas comportamentais, a mídia, e em especial o sensacionalismo, de fato influenciam na visão de mundo das pessoas e geram o chamado efeito da disponibilidade. Porém, se engana quem pensa que o sensacionalismo é exclusivamente ruim. Como afirma Anamaíra Souza, os meios de comunicação também atuam de acordo com interesses sociais, pois "atua como denunciadora de atrocidades, aproximando-se do povo e ratificando seu papel de formar a opinião pública e reforçar valores da sociedade"[4].

Por fim, outro problema que merece destaque é o próprio caráter subjetivo da definição de o que é melhor, ou quais são as prioridades da sociedade no momento. O que seria melhor no contexto de Love Canal? Parece razoável ignorar este caso e focar em medidas econômicas para minimizar os problemas decorrentes da crise do petróleo de 1973 e da revolução iraniana de 1979? Nesse sentido, Paul Slovic chega a afirmar que definir risco ou prioridades é um exercício de poder[5]. Isso porque, conforme explica Kahneman, "toda questão envolvendo políticas públicas implica pressuposições acerca da natureza humana, em particular sobre as escolhas que as pessoas podem fazer e as consequências de suas escolhas para si mesmas e para a sociedade"[6].

 

O que fazer então?

A questão aqui não é exatamente saber a quem ouvir. A questão é que sabemos, a partir de pesquisas empíricas de psicologia comportamental, que as pessoas se preocupam mais com os problemas aos quais são mais expostas. E, como mostra o Presidente Bush, os próprios agentes públicos também tomam decisões com base nesta disponibilidade. Ademais, agora sabemos também que existem ressalvas aos argumentos de dar prioridade às opiniões do povo ou dos cientistas no contexto da gestão pública.

A bala de prata para essa problemática não existe. A vida em sociedade envolve muitas complexidades e muitos fatores que não permitem soluções herméticas e definitivas. Slovic, ponderadamente, conclui que quando especialistas e o público discordam acerca de suas prioridades, "cada lado deve respeitar o discernimento e a inteligência do outro".

Contudo, tomar consciência destes fatores psicológicos intrínsecos e suas influências nas nossas vidas é muito útil. Estudos sugerem que ter consciência de seus próprios vieses pode contribuir até mesmo para evitar conflitos no casamento. Em virtude da disponibilidade, cada cônjuge tende a se lembrar melhor das suas contribuições do que das contribuições do outro, de modo que um pode ter a impressão que faz tudo e não é agradecido por isso. Assim, saber que tendemos a reconhecer mais o que fazemos do que os esforços dos outros pode nos dar paz em um relacionamento, pois pensamos duas vezes antes de reclamar com a outra pessoa das coisas que ela fez ou deixou de fazer.

Por conseguinte, cumpre a todos, cidadãos, jornalistas, especialistas ou gestores, refletir sobre os reflexos da disponibilidade sobre a nossas ações na sociedade. E, conforme afirma Kahneman, cumpre à psicologia, no âmbito da gestão pública, colocar contrapontos que combinam o conhecimento dos especialistas com as emoções e intuições do público[7].

 

Texto escrito por Júlia Leal da Silva, estudante de Direito na Faculdade Direito de Ribeirão Preto.

 

Referências

[1] KAHNEMAN, Daniel. Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar. 1 ed., Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 182-3.

[2] CIARELLI, Gustavo; AVILA, Marcos. A influência da mídia e da heurística da disponibilidade na percepção da realidade: um estudo experimental. Rev. Adm. Pública,  Rio de Janeiro ,  v. 43, n. 3, p. 541-562,  Junho  2009. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-76122009000300002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em  7  Sept.  2020. 

[3] Sistema de Informações sobre Mortalidade. Painel de Monitoramento da Mortalidade CID-10. Disponível em: <https://svs.aids.gov.br/dantps/centrais-de-conteudos/paineis-de-monitoramento/mortalidade/cid10/>.

[4] SOUZA, Anamaíra Pereira Spaggiari. Jornalismo policial sensacionalista: entre a audiência e a função social. XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Curitiba, 4 a 7 de setembro de 2009.

[5] SLOVIC, Paul. Trust, Emotion, Sex, Politics and Science: Suyrveying the Risk Assessment Battlefield. Risk Analysis 19, 1999, p. 689-701.

[6] Ibidem, p. 180.

[7]  Ibidem, 185.

 

Imagem

Wikipedia

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