Teto de gastos: proteção contra a tempestade ou risco de desmoronamento?

Teto de gastos: proteção contra a tempestade ou risco de desmoronamento?

Quase ninguém discordaria de que o ano de 2020 foi marcado por diversas tragédias e incertezas nas mais diversas áreas do Brasil e do mundo. Se pararmos para pensar no âmbito das finanças públicas mais especificamente, podemos ver que a necessidade de lidar com situações inesperadas não foi diferente: com o novo coronavírus, medidas urgentes para amenizar o impacto da pandemia, como a compra de EPIs, emprego de leitos e o auxílio emergencial, exigiram um repentino - e considerável - financiamento  do governo brasileiro.

No entanto, embora os choques tenham sido atenuados por essas - e outras -  atuações do estado, elas, em contrapartida, ascenderam ainda mais o debate e as tormentas em relação aos gastos e a sustentabilidade da Dívida Pública do Brasil. O primeiro motivo para isso diz respeito ao montante e a composição das despesas públicas, que já eram uma preocupação constante dado o descontrole fiscal nas últimas décadas, aspectos que instigaram a aprovação da PEC nº 55 em 2016. O segundo motivo foi justamente o aumento inesperado dos gastos governamentais: ainda que a PEC do Orçamento de Guerra tenha flexibilizado algumas regras das finanças públicas em 2020 - como o descumprimento do teto - essas alterações valeriam somente até o dia 31 de dezembro, vigência máxima do estado de calamidade pública.

Tendo isso em vista, mesmo que muitos acontecimentos tenham ficado como memória de um 2020 não muito distante, as consequências das ações feitas para lidar com eles ainda são motivo de intensa preocupação em 2021. Pensando nas despesas governamentais e na sustentabilidade da dívida brasileira, seria a necessidade de cumprimento da PEC 55/2016 uma garantia de que os gastos públicos brasileiros não vão voltar a subir, estabilizando a nossa situação fiscal mesmo depois de todo o ocorrido? Ou ele de certa forma impede que uma economia abalada volte a prosperar dado a insuficiente capacidade do Estado de financiar investimentos para isso?

Pensando nesses tipos de questionamentos, o objetivo deste texto é expor as principais opiniões dos apoiadores e críticos da PEC do Teto de Gastos, de modo que ao final possamos ter um entendimento melhor dos  benefícios e prejuízos dessa política, principalmente pensando no contexto “pós-coronavírus”.

 

Entendendo o Teto

Mas afinal, o que é o Teto de Gastos? Para entendermos melhor o porquê de o teto ser tão criticado e aclamado, é essencial que saibamos do que essa regra se trata, seu contexto de criação e também as suas implicações para a gestão das finanças públicas brasileiras.

 

   1.Contexto de criação

Segundo o estudo Teto de Gastos: o gradual ajuste para o crescimento do país, divulgado pelo Ministério da Fazenda em 2018, “o Brasil tem um desequilíbrio fiscal crônico, que é decorrente do crescimento acelerado da despesa pública ao longo das últimas décadas”, o que levou a um aumento do déficit e da dívida pública, bem como à expansão da carga tributária. Todavia, essas formas de financiamento da expansão do gasto público se esgotaram: a carga tributária chegou a 33% do PIB, e a sociedade rejeita expansões adicionais. A tributação não é apenas alta, mas também complexa, podendo deteriorar o ambiente de negócios e a produtividade da economia. O déficit e a dívida pública também chegaram a valores muito elevados; nos últimos 10 anos, a dívida mais que dobrou: em 2006, o montante estava em R$ 1,23 trilhão, subindo para R$ 2,12 trilhões em 2012 e para R$ 3,11 trilhões no final de 2016 [2]. Além disso, a relação dívida bruta/PIB subiu de 63% para 73% de 2014 para 2015 [3].

Tendo isso em vista, a ideia do teto é conter a expansão do gasto público federal (causa original do desequilíbrio), não só estabilizando o crescimento do déficit público, mas também reduzindo-o à média dos países emergentes.

 

   2.Como funciona

Vimos que o objetivo central dessa política é o equilíbrio - ainda que de longo prazo - das contas públicas por meio de um rígido mecanismo de controle de gastos. Mas como isso necessariamente é feito?

Para isso, como o próprio nome já sugere, foi instituído um teto, ou seja, um limite máximo para o conjunto dos gastos federais até 2036. Sendo  assim, o Governo e os órgãos vinculados a essa esfera de poder não poderão gastar mais - em termos reais - do que o que foi gasto no ano base de 2016, o que quer dizer que o total a ser gasto pelo governo federal e os órgãos ligados a ele a cada ano só pode aumentar o equivalente à inflação do ano anterior [4].

A ideia é que exista um limite pré-estabelecido de recursos a serem alocados nas diversas atividades do Estado: anteriormente, essa decisão partia da estimativa de quanto seria arrecadado com os tributos no período, fato que dava margem à superestimação das receitas, às vezes de má fé, o que poderia aumentar o déficit público, isto é, a diferença entre o que era gasto e o que era arrecadado de fato [5]. 

No entanto, alguns gastos não estão sujeitos ao teto. É o caso das transferências constitucionais para estados e municípios; dos créditos extraordinários para calamidade pública; das despesas para a realização de eleições pela Justiça Eleitoral; dos gastos com aumento de capital das empresas estatais não dependentes; e do FUNDEB (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), que contempla desde a creche até ensino médio.

 

   3.Implicações

Após a aprovação da PEC 55/2016, podemos dizer que o governo federal passou a “ter os recursos contados” para financiar diversas áreas, como saúde, segurança e tecnologia, dentre outras (com exceção daquelas apontadas acima). Mas, para entendermos melhor o impacto do teto nos gastos da união, precisamos considerar a existência de dois tipos de despesas públicas: as obrigatórias e as discricionárias. A principal diferença entre elas é a decisão dos gestores públicos sobre o montante a ser destinado. 

O financiamento das despesas obrigatórias possuem um valor a ser transferido já definido por lei, sendo obrigatório cumpri-lo. Como exemplo desse gasto, temos o pagamento do salário de servidores e o seguro desemprego. Já no que diz respeito às despesas discricionárias, ainda que também sejam mencionadas em lei, não possuem um valor específico a ser investido; os gestores públicos podem decidir sobre o quanto vai para a ciência e o quanto vai para a segurança, por exemplo.

Entretanto, a somatória de todos os gastos, discricionários e obrigatórios, devem estar sob o limite estabelecido pelo teto. Como os administradores públicos não têm liberdade em definir os valores a serem destinados às despesas obrigatórias - elas simplesmente devem ser pagas conforme consta na lei, os recursos são alocados aos gastos discricionários só após a determinação dos montantes obrigatórios.

A principal conclusão dessa análise dos diferentes gastos diz respeito à limitação dos recursos não só pela PEC em questão. Para entendermos melhor esse processo, vamos supor que, após pagar todas as despesas de valor rígido (despesas obrigatórias), o governo brasileiro ainda tenha disponível 1 bilhão de reais. Desse dinheiro, metade pode ir para a área da saúde, metade para a tecnologia; um terço pode ir para a educação e o resto para a segurança. É evidente que há muitas e muitas alternativas de alocação. O ponto a que devemos estar atentos é o de que os recursos são limitados, ou seja, não se pode aumentar os gastos gerais em virtude da PEC do teto de gastos e nem redistribuir o montante das despesas obrigatórias e repassá-lo para as discricionárias. À vista disso, para aumentar o investimento de um setor discricionário, é preciso — necessariamente — diminuir o de outro [6].

Mas o que acontece se o Teto for desrespeitado? Se o governo ou órgão vinculado gastar mais do que o limite, ficará impossibilitado de reajustar os salários dos servidores; de realizar concursos públicos; de admitir novo pessoal (exceto cargos de direção); e de conceder incentivos fiscais, no caso do executivo.

 

Teto: proteção contra a “tempestade”

O que dizem os apoiadores da continuidade do Teto?

Segundo um manifesto a favor do Teto, assinado por mais de 90 economistas, flexibilizar a regra implicaria em uma perda de credibilidade do governo federal [7]. Conforme o anúncio, foi graças ao teto que pudemos experimentar os benefícios da prática de juros reais baixos ao longo dos últimos anos, ainda com os constantes déficits primários. Durante a pandemia, por exemplo, houve a expansão dos gastos para muito além do teto com a PEC do Orçamento de Guerra. No entanto, a perspectiva de retorno ao teto a partir de 2021 permitiu a operação simultânea do aumento temporário dos gastos e a prática de juros reais baixos durante o contexto do coronavírus. Se não houvesse essa garantia implícita oferecida pelo teto, o crescimento dos gastos teria levado a uma piora muito mais substancial das condições financeiras e da capacidade de financiamento do Tesouro. A travessia do ano de 2020 teria sido incomparavelmente mais dura [8].

Todavia, a defesa da continuidade do teto não deve ser confundida com a defesa de que a situação dos gastos públicos brasileiros continue a mesma. Ainda de acordo com o manifesto, tendo em vista que o orçamento federal é cerca de 95% comprometido com as despesas obrigatórias, gastos os quais têm crescido acima da inflação, o caminho defendido para a situação atual seria uma certa diminuição dos gastos obrigatórios, que poderia vir da combinação das PECs 186 (Emergencial) e 188 (Pacto Federativo). Essa possível solução atuaria de modo a disparar gatilhos para a contenção das despesas obrigatórias, de modo a “liberar” mais recursos para o investimento em despesas discricionárias. O principal gatilho que acredita-se ter poder para disponibilizar significativo nível de recursos para a União é a possibilidade de redução de até 25% das horas trabalhadas dos servidores durante o estado de emergência. Apenas no plano federal, é estimado que essa atitude disponibilize um montante de cerca de R$15 bilhões para as despesas discricionárias. “A desindexação das despesas previdenciárias, ou seja, não mais ajustar os salários e benefícios pela inflação do período, poderia também liberar uma considerável quantidade de verba pública, ainda que válida por poucos anos”, expõe o documento.

Portanto, para os apoiadores, o teto não é uma política suficiente - não sozinha - para conduzir o país a menores níveis de endividamento. Ele é necessário para delimitar a trajetória de gastos que é compatível com um ajuste fiscal gradual e de longo prazo, e requer reformas que permitam o controle da despesa obrigatória. Sua existência e manutenção sinalizam a disposição e intenção do governo em manter disciplina fiscal de longo prazo, o que ajuda na convergência das expectativas para um nível mais baixo de dívida no futuro, sua sustentabilidade e solvência, com reflexo no custo da dívida já no presente [9]. 

 

Teto: risco de “desmoronamento”

Por outro lado, outro manifesto, assinado por 380 profissionais, diverge sobre o mesmo assunto: a continuidade da PEC. Para os defensores da dissolução do teto, o desequilíbrio fiscal - embora tenha sido uma das razões para a recessão dos anos que sucederam 2015 - fora colocado como foco, quase como o “único” problema da economia brasileira nesse período. Além disso, alertam para a insustentabilidade do teto no médio prazo: houve determinado progresso em reformas que buscam o ajuste das despesas obrigatórias, dentre elas a reforma da previdência e trabalhista; todavia, nenhuma situação de melhora nos desempenho da economia brasileira foi digno de destaque positivo.

Outro ponto exposto argumentado no anúncio foi que o Brasil possui consideráveis lacunas em serviços que envolvem saúde, educação, segurança, entre outros. Sendo assim, o corte de despesas conforme o planejado pelas PECs 186 e 188 - corte em gastos com previdência social e salários dos funcionários públicos - poderia prejudicar o andamento eficiente das políticas públicas das respectivas áreas. Segundo o documento, os investimentos nesses tipos de infraestrutura são imprescindíveis para aumentar a produtividade média da economia brasileira e a competitividade das empresas nacionais, tanto no mercado interno quanto externo, sendo necessário continuar com estímulos fiscais para manter a atividade econômica para enfim gerar mais empregos e renda.

Os quase 400 profissionais ainda defendem que, com a contração fiscal imposta pelo teto, no contexto de uma economia com enormes níveis de ociosidade, com um PIB ao final de 2020 pelo menos 10% inferior ao registrado em 2013, levará a um novo mergulho recessivo com aumento da desigualdade na distribuição de renda, com consequências sociais —e econômicas— imprevisíveis. A proposta de “furar o piso”, com redução da carga horária dos servidores, ademais, comprometerá ainda mais a prestação de serviços públicos de saúde, educação, etc. para a parcela da população brasileira mais atingida pelos efeitos da pandemia [10].

 

Conclusão

Como vimos, as principais preocupações em relação ao teto de gastos giram em torno de uma possível “chuva” de despesas, que podem levar a tempos difíceis para a economia do país, no caso da extinção dessa ferramenta; e de um possível desmoronamento da máquina e dos serviços públicos, no caso de sua continuidade. Flexibilizações da regra de gastos, somado à reforma em outras áreas também são vertentes defendidas por outros especialistas, o que atesta que não existe uma solução perfeita, nem certa ou errada para a situação brasileira. Em vez disso, uma saída que cause menos danos à população e à gestão pública é o que deve ser buscado; mas até lá, certamente muito há de ser debatido e realizado, dependendo dos pontos analisados. Aguardemos os próximos capítulos.

 

Texto escrito por Luma Cicilia Ribeiro Pires, estudante de Economia Empresarial e Controladoria na FEA-USP/RP

Imagem: Unsplash

Referências:

[1] Promulgada Emenda Constitucional do Teto de Gastos Públicos. Senado Federal. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/12/15/promulgada-emenda-constitucional-do-teto-de-gastos>. Acesso em: 12 Jan. 2021.

‌[2] DÍVIDA PÚBLICA SOBE 11,42% EM 2016, PARA R$ 3,11 TRILHÕES, NOVO RECORDE. Dívida pública sobe 11,42% em 2016, para R$ 3,11 trilhões, novo recorde. G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/divida-publica-sobe-1142-em-2016-para-r-311-trilhoes.ghtml>. Acesso em: 12 Jan. 2021.

[3] https://www.conjur.com.br/dl/pec-teto-estudo-55-constitucionalidade.pdf

[4] ELIAS, Juliana. Como funciona o teto de gastos e por que ele voltou a gerar polêmica. CNN Brasil. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/business/2020/08/25/como-funciona-o-teto-de-gastos-e-por-que-ele-voltou-a-gerar-polemica>. Acesso em: 12 Jan. 2021.

[5]https://www.gov.br/fazenda/pt-br/centrais-de-conteudos/publicacoes/analises-e-estudos/arquivos/2018/teto-de-gastos-o-gradual-ajuste-para-o-crescimento-do-pais.pdf

[6]  NEXOS GESTÃO PÚBLICA. Diminuição de Gastos Públicos: como funciona? - nexosgp - Medium. Medium. Disponível em: <https://medium.com/nexosgp/diminui%C3%A7%C3%A3o-de-gastos-p%C3%BAblicos-como-funciona-8db7852298ff>. Acesso em: 13 Jan. 2021.

‌[7] ROUBICEK, Marcelo. O manifesto pelo teto de gastos. E o debate em torno da regra fiscal. Nexo Jornal. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/08/17/O-manifesto-pelo-teto-de-gastos.-E-o-debate-em-torno-da-regra-fiscal>. Acesso em: 13 Jan. 2021.

[8] É preciso rebaixar o piso de gastos para que o teto não colapse. Uol.com.br. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/amp/mercado/2020/08/e-preciso-rebaixar-o-piso-de-gastos-para-que-o-teto-nao-colapse.shtml>. Acesso em: 14 Jan. 2021.

‌‌[9]https://www.gov.br/fazenda/pt-br/centrais-de-conteudos/publicacoes/analises-e-estudos/arquivos/2018/teto-de-gastos-o-gradual-ajuste-para-o-crescimento-do-pais.pdf

[10] FOLHA DE S.PAULO. Teto de gastos, a âncora da estagnação brasileira e da crise social. Folha de S.Paulo. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/08/teto-de-gastos-a-ancora-da-estagnacao-brasileira-e-da-crise-social.shtml>. Acesso em: 14 Jan. 2021.

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