Exercício Físico & Autismo – Redução de Estereotipia (Parte 3)

Exercício Físico & Autismo – Redução de Estereotipia (Parte 3)

          Olá, amigxs!

          Com grande satisfação retomo o assunto “Redução de Estereotipia & Exercício Físico”. Primeiramente, quero agradecer pelo carinho das pessoas que têm lido esse blog – o 7º mais acessado no mês de maio dentre os blogs Revide. Obrigado! ;)

          Tenho me surpreendido com a quantidade de atuais alunos, ex-alunos e profissionais altamente qualificados de diversas áreas, muitos da educação e da saúde mas também do direito e da publicidade/marketing, que têm demonstrado interesse por esse assunto. Os comentários e as críticas que tenho recebido às ultimas postagens têm me servido de motivação para avançar com o blog.

           Escrevo hoje a parte 3 deste específico assunto que envolve estereotipia (para saber o que é isso, acesse: https://www.revide.com.br/blog/paulo-chereguini/exercicio-fisico-autismo-reducao-de-estereotipia-p/) e que encerra um conjunto de 4 temas sobre “Exercício Físico e Autismo”, iniciado há 5 semanas (Introdução ao tema: https://www.revide.com.br/blog/paulo-chereguini/exercicio-fisico-autismo-introducao/).

          O texto apresentará as características gerais de atendimento COM exercícios físicos PARA redução de estereotipia, uma perspectiva de atendimento diferente da descrita na parte 2. As informações que serão apresentadas são orientadas mais especificamente para atuação pelo profissional de Educação Física, mas podem contribuir e orientar também a atuação por outros profissionais direta e indiretamente envolvidos com o ensino de pessoas que exibem comportamentos estereotipados. Vamos lá:

   * O objetivo primário é justamente a redução na frequência e/ou intensidade dos comportamentos estereotipados. Assim, o atendimento com exercício físico na perspectiva da Educação Especial se dá quando os todos os profissionais envolvidos neste contexto de ensino e tratamento avaliam que a prioridade deve ser dada à redução dos comportamentos estereotipados, a despeito dos benefícios da prática de exercícios físicos como finalidade em si;

   * Em outras palavras, este tipo de atendimento deve ser SEMPRE priorizado quando que a ocorrência da estereotipia envolver riscos diretos a saúde do praticante (alunx/cliente) ou ainda quando a gravidade destas respostas (frequência ou intensidade da estereotipia) incompatibilizar o ensino de outras habilidades tanto para o praticante quanto para outras pessoas atendidas em ambiente coletivo;
   
   * Exemplos dessas ocasiões são quando a pessoa balança o corpo, os braços ou as mãos com tamanha intensidade que isso restringe a manutenção de contato visual com o profissional atendente. Além disso, se as estereotipias ocorrem em alta intensidade nos mais diversos ambientes e/ou e quase sempre na presença de quaisquer pessoas, então, é provável que a pessoa também apresente comportamentos associados à agressividade ou à autolesão;

   * Adicionalmente, mesmo que a ocorrência da estereotipia não traga riscos à saúde, pode-se planejar esse mesmo tipo de atendimento quando profissionais e familiares julgarem que a redução destes comportamentos possibilita melhoria na qualidade de vida e/ou no desenvolvimento social do praticante;

   * A prática dos exercícios físicos é, então, encarada como uma das ferramentas que possibilitam transferência dos seus ganhos direcionados para uma finalidade maior: a redução da estereotipia;

   * Em termos de pesquisa, a variável dependente é a frequência e/ou intensidade de emissão dos comportamentos estereotipados. A modificação desta ocorrência se dá então, em menor ou maior grau, a partir da manipulação da prática de exercícios físicos – a variável independente.

          ... mas então, Paulo, o que deve ser feito?

          Para que este tipo de atendimento seja eficaz, é preciso essencialmente compreender a premissa de que estas estereotipias não se caracterizam como rituais sobrenaturais, pecados herdados ou “defeitos de fabricação” imutáveis, ainda que muitas pessoas leigas acreditem fielmente nisso e embora muitos “profissionais” orientem seus atendimentos baseados nestas crenças, infelizmente. Prestem a atenção nisso, amigxs, porque o assunto é sério!

         Por outro lado, deve-se compreender que as estereotipias são COMPORTAMENTOS e que, neste sentido, as suas ocorrências (ou emissões, em termos técnicos) estão submetidas às mesmas leis naturais da aprendizagem humana que QUAISQUER outros comportamentos. Desta forma, tanto os comportamentos relacionados à estereotipia quanto à agressividade, podem ser reduzidos em termos de intensidade, frequência ou outra dimensão desde que compreendida as funções que elas exercem. Por instante, vamos entender “funções” como sinônimo de “causas”, mas interessados no assunto devem procurar se aprofundar mais e para tanto, indico uma leitura obrigatória (Skinner, 1988) no final deste texto.

         Assim, a etapa de identificação da função específica de cada tipo de estereotipia ou de qualquer outro comportamento considerado inadequado é fundamental, chama-se “Análise funcional” e deve ser realizada por um profissional experiente e com formação em Análise do Comportamento. Lembro que atualmente qualquer pessoa graduada pode procurar essa formação de especialização – nível Lato Sensu. Enfim, há mais de um procedimento para realizar essa análise e a mais precisa chama-se “análise funcional experimental” (Iwata et al, 1994). Em linhas gerais, essa etapa caracteriza-se por identificar e registrar cada vez que a estereotipia alvo ocorre, os contextos e antecedentes em que ela ocorre e, especialmente, as consequências geradas especificamente pela sua ocorrência.

... e isso vai me servir com qual finalidade?

         Somente a partir da compreensão da função exercida pela estereotipia que se torna possível, então, iniciar o planejamento de ensino. A intervenção, então, que envolve a atuação do profissional de Educação Física, será justamente planejar um contexto alternativo de ensino com exercícios físicos que permitam as MESMAS consequências que a estereotipia alvo produzia. Tanto a análise da função quanto o planejamento da intervenção devem ser particularizados, pois embora duas pessoas possam demonstrar o mesmo formato de estereotipia, chamamos isso de topografia da resposta como, por exemplo, balançar as mãos em frente ao rosto, as funções de cada uma delas podem ser diferentes.

        Sem entrar em muitos detalhes, vou exemplificar alguns possíveis determinantes das diferentes funções das estereotipias para que os leitores compreendam a importância desta etapa, mas ratifico que essa análise deve ser criteriosa e cuidadosamente planejada. Em seguida a cada exemplo, adicionarei uma medida que envolva intervenções com exercícios físicos que possibilitem antecipar, em curto prazo, e reduzir, em médio prazo, a emissão das estereotipias:

               # Função 1 – Atenção: uma criança que recebe atenção (aproximação de pessoas, contato físico, carinho ou até mesmo reprimendas orais) imediatamente após começar a bater repetidamente o dorso da mão na lateral da cabeça.
                            1.A -> Alternativamente, deve-se favorecer a realização de algum movimento motor que a criança já saiba realizar, tal como abrir e fechar as pernas, e imediatamente apresentar o mesmo tipo de atenção como consequência;
                            1.B -> Importante ensinar uma variedade de exercícios, preferencialmente, que sejam funcionais para suas atividades de vida diária, com o propósito final que eles sejam exibidos em outros contextos para “receber atenção” como alternativa à estereotipia.

               # Função 2 – Acesso a itens desejados: um jovem pode começar a balançar intensamente os braços em frente ao rosto imediatamente após lhe retirarem um objeto (que poderia ser eventualmente um carrinho, mas que também poderia ser um item de cozinha ou mesmo um pedaço de estopa ou de madeira) que ela estava se engajando por muito tempo.
                            2.A -> Sabendo-se qual o item é bastante desejado pelo jovem, pode-se apresentá-lo como consequência final da realização de uma sequência de 2 exercícios simples de imitação motora como, por exemplo, tocar o nariz com o dedo indicador e depois bater palmas;
                            2.B -> A medida que o jovem realiza essa sequência com fluência, deve-se então adicionar gradativamente outros exercícios mais complexos, como arremessar uma bola, mas realizados somente após um sinal de permissão para realiza-lo;
                            2.C -> Uma medida interessante é finalizar a sequência de exercícios permitindo acesso a um painel ou prancheta que contenham as imagens de alguns objetos de sua preferência, dentre eles o item mais desejado, e então ensinar o jovem a selecionar o respectivo item para “pedir” por ele.

               # Função 3 – Esquiva/fuga: a criança pode começar a gritar para evitar ou fugir de uma determinada pessoa, de uma tarefa ou mesmo de uma situação para si aversiva.
                            3.A -> Se a “tarefa indesejada” envolver movimentos físicos e ela for realmente importante para que a criança aprenda como, por exemplo, escovar os dentes, deve-se dividir a tarefa toda em pequenos passos, por menores que eles possam parecer e, então, ensinar diretamente cada passo separadamente;
                            3.B -> Paralelamente à medida 3.A, pode-se permitir acesso a um painel similar ao descrito no item 2.C mas que, no entanto, apresente imagens que sinalizem o “pedir” pela retirada da pessoa indesejada ou da situação aversiva.
 
              # Função 4 – Estimulação sensorial: a jovem pode ficar horas “estranhamente” olhando fixamente enquanto alterna repetidamente os dedos das mãos em frente ao rosto. A determinação desta função é talvez a mais difícil e a que exige mais experiência do avaliador.
                            4.A -> Em geral, recomenda-se a programação de um currículo de atividades funcionais para o seu dia-a-dia, baseado em uma rotina planejada, com exercícios que a jovem já saiba fazer e que não permita a ela muito tempo ocioso;
                            4.B -> Alguns estudos indicam que a exposição a exercícios físicos de alta intensidade e/ou que demandam de alto gasto energético como, por exemplo, corrida em esteira elétrica ou bicicleta ergométrica, retardam a ocorrência de estereotipias. No entanto, os resultados ainda são controversos e a prescrição dessa medida deve ser cuidadosamente decidida com outros profissionais e com a família envolvida.

        Considerações finais:

          * Alguns comportamentos estereotipados podem exercer mais de uma função;

          * Embora em alguns momentos o profissional de Educação Física possa atuar sozinho e diretamente no contexto da redução da estereotipia, atualmente a prescrição dos exercícios físicos deve fazer parte de um planejamento interdisciplinar com a participação de um especialista em Análise do Comportamento Aplicada.

         * Todos os profissionais envolvidos devem ser previamente treinados para identificar e registrar cada um dos comportamentos indesejáveis (tal como as estereotipias) apresentados e também os níveis de ajuda (apoio/dicas) fornecidos ao longo das sessões de atendimento;

          * Periodicamente, os resultados das intervenções devem ser reavaliados pela equipe multidisciplinar, juntamente com a família, a fim de verificar o progresso do atendimento e, se necessário, reprogramar as intervenções;

          * Uma etapa não descrita ainda neste blog e que deve fazer parte necessariamente deste atendimento sob a perspectiva da Educação Especial é a “Avaliação de Itens de Preferência” – que será abordado daqui algumas semanas com a contribuição de uma grande amiga minha que tratou desse assunto em sua tese de doutorado;

          * Todo este processo de atendimento, embora seja atualmente o único comprovadamente efetivo, não produz efeitos de um dia para outro e nem sequer a “cura” do indivíduo atendido. A redução da estereotipia deve ocorrer concomitante com o ensino controlado e gradativo de comportamentos sociais e academicamente desejáveis;

          * Por fim, mas não menos importante: A simples leitura desse blog não capacita quaisquer pessoas a aplicar as medidas aqui descritas!!!

         Espero realmente que este texto possa ser útil a muitas pessoas. Esse blog representa parte da minha retribuição para a sociedade, em contrapartida a história de aprendizagem na vida acadêmica que vivi intensamente por 10 anos. Neste contexto, agradeço muitíssimo ao meu ex-orientador no mestrado e no doutorado, o Prof. Dr. Celso Goyos, que contribuiu com uma parcela significativa nessa minha formação acadêmica. Obrigado!

       Contem comigo, amigxs, caso haja dúvidas ou a necessidades de mais esclarecimentos.

       Abraços!!!

Referências:
- Iwata, B. A., Dorsey, M. F., Slifer, K. J., Bauman, K. E., and Richman, G. S. (1994). Toward a functional analysis of self-injury. Journal of Applied Behavior Analysis, 27, 197-209. <Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1297798/>
- Skinner, B. F. (1988). Ciência e Comportamento Humano. Tradução organizada por J.C.Todorov & R. Azzi. São Paulo: Ed. Martins Fontes. (Trabalho originalmente publicado em 1953).

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