Bate-bola com o craque

Bate-bola com o craque

Em entrevista concedida ao jornalista e escritor Gilvan Ribeiro, Walter Casagrande Júnior comenta algumas das passagens mais marcantes do livro “Sócrates & Casagrande – Uma história de amor”

Quem tem 30 anos ou menos conhece o Walter Casagrande Júnior, o Casagrande ou o Casão, da TV. Comentarista de futebol da Rede Globo, conquistou o respeito da crítica e a admiração do público com suas análises, típicas de alguém que realmente domina o assunto. Quem já ultrapassou a faixa etária citada acima, provavelmente, sabe de onde vem tanto entendimento. Casagrande tem uma longa e bem-sucedida história dentro de campo. A carreira começou aos 18 anos, no Corinthians, seu time de coração. Vestindo a camisa 9, tornou-se ídolo ao conquistar diversos títulos, incluindo o bicampeonato paulista em 1983. 

Essa geração, que ainda contava com Wladimir, Zenon, Biro-Biro e Sócrates, ficou marcada por criar a Democracia Corinthiana, movimento ideológico em que os jogadores tinham a autoridade para participar de decisões importantes do time, como as contratações e as regras de convívio durante o período de concentração. Os “A morte do Sócrates mexeu comigo. Eu continuei, mas ficou um vazio”, afirma Casagrandeenvolvidos também batalharam pela liberdade de expressão, principalmente no que diz respeito ao cenário político da época, defendendo a campanha das “Diretas já”. Casagrande teve a oportunidade de atuar ao lado de vários craques, mas, entre eles, um se destacou. A parceria com Sócrates ia além das jogadas ensaiadas. 

O Magrão, como era conhecido, acabou se transformando em um parceiro de aventuras e de vivências, mas, por conta de uma piada provocativa em relação ao trabalho de Casão na Globo, dando a entender que o amigo tinha se vendido ao sistema, a dupla se afastou por muitos anos. Chegaram a se reaproximar, mas Sócrates morreu pouco tempo depois. A perda irreparável motivou Casagrande a buscar uma forma de eternizar a amizade com Magrão. Foi assim que surgiu o livro “Sócrates & Casagrande – Uma história de amor”. O ex-jogador fez uma rápida visita a Ribeirão Preto, cidade em que Sócrates morou, para lançar a obra ao lado do autor, o jornalista Gilvan Ribeiro. Nesta entrevista, os dois revelam um pouco dos bastidores do projeto. 

Gilvan: Para os fãs de futebol, a dupla Sócrates e Casagrande é igual a queijo com goiabada: um está diretamente associado ao outro. Naquela época, você tinha a exata noção da grandiosidade dessa parceria? 
Casagrande:
Não. A ligação começou por conta do futebol, pelos resultados que conseguíamos nos jogos. Guardadas as devidas proporções, fomos comparados a Pelé e Coutinho. A proximidade, no entanto, não se limitou ao campo e foi aí que a nossa parceria ganhou um contexto diferente do que era visto até então. Tínhamos afinidades políticas e culturais. Gostávamos de sentar em um bar para bater papo. Enquanto bebíamos, ficávamos pensando, criando e compartilhando ideias que, muitas vezes, nem saíam do papel. As pessoas nos viam juntos em situações variadas, não só em eventos esportivos, mas no cinema, em shows, no teatro e no palanque das Diretas Já. Entramos na categoria de duplas. Éramos algo como Keith Richards e Mick Jagger, da banda The Rolling Stones. Uma dupla polêmica, agressiva, apimentada e contestadora.

Gilvan: Por isso você decidiu escrever “Sócrates & Casagrande – Uma história de amor”? O livro foi uma maneira de reviver essa amizade, de acertar as contas com Sócrates, já que vocês acabaram se afastando?
Casagrande:
Contar essa história se tornou necessário para mim. Evidentemente, sabia que o livro também teria um impacto no público, já que muita gente enxerga o Sócrates e o Casagrande como uma pessoa só. Existia uma grande curiosidade. Queriam compreender como se desenrolava a relação entre dois amigos dentro da Democracia Corinthiana. Para falar a verdade, eu mesmo precisava analisar de longe, como um espectador, tudo o que vivemos. A morte do Sócrates mexeu comigo. Eu continuei, mas ficou um vazio. Talvez o livro tenha sido uma tentativa de me aproximar dele.

Gilvan: Às vezes, só nos damos conta da importância que as pessoas têm na nossa vida quando as perdemos. Hoje, através dessa perspectiva, você gostaria de ter se reaproximado e convivido mais com o Sócrates antes da morte dele, em 2011?
Casagrande:
Já pensei bastante sobre esse assunto, não só em relação à parceria com o Sócrates. A minha vida agora é resultado das decisões que tomei no passado. As ações do presente vão definir o meu futuro. Passei por certos momentos que, anos depois, fizeram todo o sentido. Se eu modificasse uma situação lá atrás, essa alteração traria consequências no hoje. O cenário seria outro. É um ciclo. Vou citar o último capítulo do livro como exemplo. Você criou um diálogo meu com o Sócrates que poderia ter acontecido, deveria ter acontecido, mas não aconteceu. Talvez, se a conversa tivesse ocorrido de fato, essa obra nem existiria. Se existisse, não seria ficção, seria realidade. Sendo realidade, não instigaria tanto o imaginário dos leitores como ocorre e por aí vai. Cheguei à conclusão de que, mesmo se eu pudesse voltar no tempo, não faria absolutamente nada de diferente.

Gilvan: Para escrever o livro, fiz uma extensa pesquisa. Entrevistei amigos e familiares para revelar detalhes sobre a personalidade do Sócrates. Você se surpreendeu com alguma informação?
Casagrande:
Eu não tinha ciência da ligação dele com o espiritismo, mas, vindo do Magrão, tudo era possível. O Sócrates se preocupava em projetar a imagem de uma pessoa fria e calculista. No campo, desempenhava a função com máximo profissionalismo. Se nós ganhássemos ou perdêssemos um campeonato, a reação era a mesma, extremamente contida. Esse personagem, no entanto, era incompatível com a personalidade dele, um homem que tinha como lema de vida a paixão. Sinceramente, não entendo que mecanismo ele utilizava para segurar a emoção depois de um gol ou de uma vitória. Às vezes, o sentimento era tão forte que extravasava. Existem algumas fotos dele comemorando, chamando a torcida. Quem teve o privilégio de ver o que havia escondido por trás dessa máscara conheceu um cara sensível e engraçado, que falava muita bobagem. Hoje em dia, isso é muito claro para mim: o Sócrates era incoerente.

Além de revelarem detalhes da produção do livro, Gilvan e Casão traçaram um breve panorama do futebol brasileiro da atualidadeGilvan: O que você sentiu quando concluiu a leitura?
Casagrande:
Assim como aconteceu com o livro anterior, “Casagrande e seus demônios”, você fez um ótimo trabalho. Através das suas palavras, as pessoas conseguem compreender o meu pensamento, identificar a minha linguagem. Agora, descrever o que senti ao ver o resultado final é uma tarefa difícil. Foi uma viagem, uma das experiências mais interessantes e intensas que já tive. Quando passamos por uma situação, seja triste, feliz ou inusitada, muitas vezes, não damos a devida dimensão a ela naquele exato momento. Ter a oportunidade de reviver essas histórias através de um livro, anos depois, foi uma loucura. A perspectiva é outra. Ri muito, fiquei chateado em alguns trechos e me emocionei com o fim, bem criativo e poético. Era como se eu estivesse, de verdade, conversando com o Sócrates. Tenho certeza de que, cada vez que eu ler esse livro, o sentimento será diferente.

Gilvan: Foi importante ter lançado o livro em Ribeirão Preto, a cidade do Sócrates?
Casagrande:
Não poderia, de forma nenhuma, deixar Ribeirão Preto de fora da turnê de lançamento. Essa cidade representa a história do Sócrates em, praticamente, todos os sentidos. Foi aqui que ele estudou e começou a trajetória no futebol, no Botafogo. Por mais que tenha morado em outros lugares, inclusive no exterior, esse era o porto seguro dele, o núcleo, a raiz, a referência de lar. Na noite de autógrafos, encontrei muitos amigos e familiares do Magrão. Foi emocionante ver a reação de cada um deles diante do livro.

Gilvan: Como tem sido o retorno do público?
Casagrande:
Ótimo. O livro tem incentivado os leitores a exporem seus sentimentos antes que seja tarde demais. Muita gente acha isso banal, abrir o coração e falar “eu te amo” para alguém, especialmente para o pai e para a mãe. Deixamos sempre para amanhã. Depois, a pessoa morre e bate o desespero, pois não existe mais a chance de mostrar o quanto a gente se importa. Quando decidi escrever o livro, não tinha a intenção de despertar esse sentimento no público, nem de usar a minha história com o Sócrates como exemplo. Tudo aconteceu de maneira muito espontânea. Não poderia nem imaginar que a obra teria essa repercussão.

Gilvan: Sem entrar na questão religiosa, você acredita que vai se encontrar com o Sócrates novamente?
Casagrande:
Acredito que, um dia, vou conseguir enxergá-lo, porque a presença dele eu sinto o tempo todo, principalmente, nesse período de divulgação do livro. A nossa ligação continuou. Por enquanto, ele leva vantagem, pois pode me ver, mas eu não o vejo. No futuro, estaremos em posição de igualdade novamente.

Gilvan: Uma figura como o Sócrates, um cara que se expunha e que defendia seus ideais, faz falta nos dias de hoje? 
Casagrande:
Ele faz uma falta enorme. Era uma pessoa de conteúdo, que tinha muito para ensinar e não tinha medo de se posicionar. Os atletas de hoje adotaram um silêncio coletivo. Eu, ao lado de outros profissionais de gerações passadas, acabei me tornando uma espécie de porta-voz dos jogadores de futebol no Brasil. Se o Magrão estivesse aqui, também seria um desses representantes e tenho certeza de que ele se incomodaria bastante com a falta de comprometimento que essa turma demonstra em relação ao esporte. Essa situação sempre me perturbou. Antes não tinha como contestar; agora, tenho. O comportamento do Cristiano Ronaldo durante a última edição da Eurocopa me deu argumentos. A cena dele incentivando um jogador a bater o pênalti e o fato dele, machucado, ter ficado o tempo todo no banco de reservas torcendo pelo time durante a final me impressionaram. Você não vê o Cristiano Ronaldo se expondo excessivamente, estourando champanhe cercado por várias mulheres. Ele se destaca pelo jogador que é, por tudo o que faz pelo clube e pela seleção portuguesa, dentro e fora de campo. O Neymar, por exemplo, é um excelente jogador. Já foi o terceiro do mundo e pode chegar ainda mais longe. Não precisa fazer nada para chamar a atenção, mas aí ele vem e pinta o cabelo de amarelo ou usa uma bermuda com blazer e gravata. É desnecessário. Vamos comparar Neymar, Cristiano Ronaldo e Messi: estão todos na mesma categoria na bola, porém, há uma diferença gritante no comportamento. 

A jornalista Paula Zuliani acompanhou a entrevista entre o escritor e o comentarista esportivoGilvan: O placar de 7 x 1 a favor da Alemanha na Copa do Mundo marcou o Brasil e se tornou um símbolo de tudo o que está errado no futebol. Aprendemos a lição? Algo mudou?
Casagrande:
Está mudando, na raça, na sorte e no medo. Não foi nada organizado. O Tite tem desenvolvido um ótimo trabalho. É um bom técnico, o nome do momento, aquele que todo mundo queria à frente da seleção. Sem o ambiente pesado que dominava o time na época do Dunga, os jogadores, motivados, rendem mais. Já vimos nas primeiras partidas das eliminatórias os reflexos da mudança. É importante ressaltar que a culpa não é do Dunga. Ele tem os seus defeitos, mas fez tudo o que era possível. A estrutura, em si, estava errada. Agora, com a campanha positiva e a garantia da vaga na Copa do Mundo, em 2018, os administradores vão querer enganar os torcedores dizendo que superamos por completo o 7 x 1. É mentira. O futebol brasileiro continua uma bagunça. O que salva é o talento, do treinador e dos jogadores. Temos uma geração interessante surgindo: Gabriel Jesus, Gabigol, Zeca, Douglas Costa e Renato Augusto ganham espaço ao lado de Neymar, Willian, Elias e Casemiro. É um grupo com potencial e que ainda não foi contaminado por essas bobeiras da vaidade, com exceção do Neymar, já viciado nessa vida de exposição e de ostentação. O Tite vai segurar essa molecada para não cair no deslumbre.

Gilvan: De todos os dirigentes listados no escândalo da FIFA, Marco Polo Del Nero, presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), é o único investigado que continua no cargo. Essa falta de uma reformulação na gestão te surpreende?
Casagrande:
É, no mínimo, um absurdo que ele ainda esteja no cargo depois de o FBI ter descoberto pagamentos de propina na CBF que, inclusive, levaram à prisão o ex-presidente, José Maria Marin, nos Estados Unidos. Para começar, isso diz bastante sobre o caráter dele. Você até pode ser seduzido e seguir os passos dos outros envolvidos no esquema, mas, ao ser descoberto, assuma o erro. Abra mão do posto que ocupa. O Del Nero continua vivendo o dia a dia como se tentasse provar para as pessoas que nada aconteceu. Quer mostrar que não está sendo investigado. O mundo todo já sabe, mas, enquanto os presidentes das outras federações não pressionarem e os patrocinadores mantiverem os investimentos nesse sistema corrupto, tudo continuará igual. Não podemos ser assim, tão coniventes. 

Os bastidores da obra

“A morte do Sócrates teve um peso muito grande na vida do Casagrande. Felizmente, os dois se reaproximaram antes dele partir, mas o pouco tempo que tiveram não foi suficiente para compensar o longo período de afastamento. O Casagrande e eu já trabalhamos juntos e nos tornamos amigos. Ele me procurou porque sentiu a necessidade de falar sobre a dupla, de trazer o Sócrates para perto novamente. Como sou fã de futebol, fiquei animado com o projeto. Era a oportunidade de saber mais sobre esses ídolos, que marcaram a minha adolescência. Aceitei o desafio de desvendar as nuances da parceria e da amizade que surgiu entre os dois. Tivemos inúmeras conversas para levantar os temas abordados. O Casagrande possui uma memória afiada, o que facilitou o processo. As recordações fervilhavam com uma vivacidade incrível. Além disso, entrevistei amigos e familiares para traçar uma outra perspectiva do grande homenageado dessa obra. Senti uma alegria imensa ao escrever cada capítulo. Esse livro é uma declaração de amor e, para mim, é a realização de um sonho.” Gilvan Ribeiro, jornalista e escritor.

 

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