Cada experiência, uma referência

Cada experiência, uma referência

É com a bagagem acumulada a cada trabalho que a artista plástica Maysa Pettes atinge um estágio de plenitude e de afeto com a própria criação e com a arte em si

O fato de, aos 60 anos, assumir os cabelos brancos mostra muito mais do que a boa relação que Maysa Pettes tem com ela mesma. Formada há mais de 35 anos em Artes Plásticas e depois de atuar profissionalmente em outros segmentos, hoje a artista vive daquilo que lhe faz bem — e que ela faz muito bem — e está em paz com isso: a arte. Fora do circuito oficial dos salões e das exposições, Maysa encontrou um caminho próprio montando um espaço onde cria, apresenta e comercializa suas obras. Seu currículo é enriquecido, principalmente, através de viagens, de oficinas e de experiências que lhe permitem respirar e assimilar a arte com liberdade e simplicidade, sem julgamentos.

Maysa: “Eu sou uma pessoa extremamente plural e a minha arte também é assim”É essa vivência sem amarras que deixa transparecer na entrevista concedida à Adriana Amaral, artista visual laureada, que tem no currículo os prêmios do 37º Salão de Arte Contemporâneo de Ribeirão Preto (SARP), concedido pelo Museu de Arte de Ribeirão Preto (MARP) e do ProAc — Artes Visuais, em 2014.  Formada em Zootecnia, com mestrado em nutrição de ruminantes, Adriana enveredou pelo caminho das artes e se tornou um nome respeitado no cenário cultural. Entre as diversas atividades desempenhadas nesse universo, ela também é artista membro da galeria Plano-A. O encontro, realizado na Arter, galeria de Maysa, possibilitou que falassem sobre referências, processo criativo e o papel do artista na cena atual.

Adriana: Por que você se tornou artista?
Maysa:
Eu sempre desenhei muito. Fui uma criança disléxica, que não prestava atenção à aula e só ficava desenhando. A minha mãe era professora. Por parte de mãe, venho de uma família de educadores, então, eu tinha que ser o exemplo da sala. O que consegui foi me tornar uma aluna mediana, que passava de ano, mas o que gostava mesmo era de desenhar. Sempre fui curiosa, sozinha, por ser filha única, e muito pensadora. A filosofia me despertava interesse e, aos 14 anos, eu lia Nietzche. A Arquitetura também me interessava, mas não tinha o curso aqui, então, resolvi estudar Artes Plásticas, aqui mesmo, em Ribeirão Preto.

Adriana: Então, você estudou Artes Plásticas nos tempos áureos?
Maysa:
Sim, formei em 1979. Fui aluna do Bassano Vaccarini, do Francisco Amêndola, do Fernando Calzzani, da Fúlvia Gonçalves. Era uma precariedade imensa. Lembro que tinha uma filmadora na escola e, quando os proprietários saíam de viagem, eles a levavam. Ainda assim, era muito bom. Eu acredito que até o desenvolvimento da criatividade vem da necessidade, da precariedade. Em tempos difíceis, trabalha-se mais, melhor, descobre-se um novo viés, parte se para um novo tipo de projeto. Eu acredito muito no acaso, ele me move bastante.

Adriana: O que há de singular na sua obra?
Maysa:
Eu sou uma pessoa extremamente plural e a minha arte também é assim. Acredito que o singular está na minha pluralidade, nessa inquietude de fazer e de pensar muitas coisas diferentes. Eu consigo fazer várias tarefas ao mesmo tempo, mas elas são muito pensadas. Vale lembrar que existe o meu tempo, o tempo da obra e o tempo do mundo. Por isso, tem projetos que eu crio rapidamente e tem outros que estão conversando comigo há anos, que não acabei. O próprio projeto tem o tempo dele. A série “A legítima defesa da honra”, que acaba de ficar pronta e eu ainda não apresentei, foi extremamente rápida. Esse projeto foi pensado em um fim de semana, embora já estivesse conversando comigo há tempos, a pesquisa já vinha sendo desenvolvida, enquanto eu ainda nem sabia que isso se transformaria em arte. Primeiro, vem o interesse. Depois, a arte brota daquilo que você está interessada. Esse tempo não dá para ser medido. Há, também, que ser considerada a vontade da obra. Às vezes, você pensa algo que não vira. Essa liberdade, no meu trabalho, é muito clara. Eu me permito essa liberdade. Eu me permito ser feliz. Às vezes, decido mudar de caminho, independente do projeto, e até abandoná-lo. Eu me permito viver essa dislexia, de não me fixar no que não me interessa.

Adriana: O que interessa para você?
Maysa:
O que desperta a minha curiosidade, o que abastece a minha arte, o afeto. Estou na fase dos afetos. Recentemente, participei de oficinas em Santa Terezinha, em Pernambuco, no festival chamado Usina de Arte. O evento, em sua segunda edição, acontece em uma usina desativada há 15 anos, pertencente à família Pessoa de Queiroz. O dono de lá começou a se interessar por arte e, querendo fazer algo pela vila que fica ali ao lado, construída pelo avô dele, implantou esse projeto. Os participantes ficam hospedados nas casas dos funcionários. Eu fui a única representante do estado de São Paulo. Transitei por todas as oficinas e participei das mesas redondas, que eram bem enriquecedoras. Foi uma experiência inigualável, tudo muito intenso. Conheci técnicas bastante diferentes e aprendi que, na arte contemporânea, tudo pode. Eu já fazia isso, mas sentia culpa. Eu tinha culpa por ser multifacetada. Agora, não tenho nada.

Adriana: Quais são as suas referências?
Maysa:
Eu busco, para cada trabalho, uma referência. Nós temos, aqui na Arter, uma exposição anual maior. Ultimamente, temos feito releituras. Fizemos, recentemente, por exemplo, um trabalho de pop art, então, estudamos profundamente o assunto, buscamos referências que vêm através do estudo feito pelo interesse daquela exposição, mas cada experiência é uma referência. Cada inquietação busca algo diferente da outra. Eu não penso muito. Vou sendo feliz. Hoje, eu me perdoo por ser assim.

Adriana: Como você definiria obra de arte?
Maysa:
Vamos colocar ao contrário. Não a obra de arte, mas a arte na obra. Eu acredito que onde há criação, a arte está ali. Qualquer obra, para mim, é arte. O marceneiro que entalha a madeira, está fazendo um ato criativo e isso é arte. O fato dele ter o estímulo de resolver algo com a sua criação já o torna artista. Fico incomodada com os conceitos de arte menor e arte maior. Para mim, é tudo igual. Eu tenho até estudado bastante para tentar entender o outro lado, mas quanto mais eu penso, mais me distancio. Hoje, vejo que não estou sozinha. Em todas as vivências que tenho buscado, percebo que muita gente está descontente. Eu não acredito em instituições humanas — igreja, O bate-papo entre Maysa e Adriana foi acompanhado pela jornalista Máisa Valochipolítica, dinheiro, entre outras — porque o ego entra em cena. Na arte, acontece o mesmo. Desde que se institui algo, entra o seu gosto, o seu ego. Por isso que, dentro da minha definição bem purista, é tudo igual. O resto vem com o interesse financeiro, como em todas as instituições. Eu não condeno isso, afinal, também preciso de dinheiro para viver, mas o que questiono é esse julgamento do que é arte superior. As pessoas separam muito o popular e o erudito. Para mim, é uma coisa só.

Adriana: Hoje, a Lei Rouanet é muito discutida. Ela existe e, assim como o ProAc, precisa ser modificada. O que você pensa sobre isso?
Maysa:
Eu tive uma boa experiência com isso. Eu e a Ana, minha filha, que trabalha na Arter comigo, fizemos a direção de arte de uma videoinstalação com os meninos da Calzare. Eles filmaram aqui na galeria durante dois meses, à noite, e tudo virou cenário. O projeto foi feito com recurso próprio e foi crescendo. Essa experiência foi ótima. Por outro lado, nós também fizemos outra videoinstalação, que cuida do momento da perda da inocência, mas essa ainda não virou. É um trabalho que eu e a Ana fizemos, de 20 minutos, que não é caro, custa cerca de R$ 40 mil, mas, até hoje, está parado, em busca de recursos. Essa é a nossa verdade: nós somos heroínas da resistência. Fazemos arte na raça. Um projeto vendido vai patrocinando outro. Eu vivo da galeria. Sou muito feliz porque vivo do meu trabalho, mas é difícil conseguir isso porque esses projetos culturais, de certa forma, privilegiam apenas os artistas consagrados.

Adriana: Há uma discussão sempre presente na Arte Contemporânea sobre qual o papel do artista no mundo atual e a importância estética, ética ou social da arte. De certa maneira, a 32ª Bienal de São Paulo espelhou uma dessas tendências de opinião. Para você, qual a função do artista visual hoje?
Maysa:
Eu vou responder com uma frase do Ferreira Gullar, que morreu recentemente: “A arte existe porque a vida não basta”. No meu sentir, eu não colocaria a arte em nenhuma dessas divisões. Eu acho que ela paira em cima de tudo isso. De alguma forma, o artista mostra alguma coisa para algumas pessoas. Ele está inserido em tudo. Eu não posso ter uma gaveta para cada coisa. Tenho as minhas convicções e elas aparecem em todas as áreas. O meu “ser feliz” vai diretamente naquilo que eu sou. Nós precisamos da beleza e da transformação, da necessidade do fazer. Essa nossa liberdade de ser, de poder ser e viver do jeito que gostamos, fora da pressão social e dos modismos, é perdoada porque somos artistas.

Adriana: Desde o século XVII, durante o apogeu da Holanda como potência econômica mundial, a produção artística tem se desenvolvido em paralelo a um mercado de obras de arte. A importância do mercado e do sistema institucional da arte cresceu muito a partir da década de 1980, com a multiplicação vertiginosa de feiras e de galerias internacionais, museus públicos e privados e recordes dos preços de venda nas principais casas de leilões do mundo. Os valores que alguns artistas atingem no mercado parecem determinar a fama e o reconhecimento que conquistam dentro do próprio sistema da arte. Para muitos críticos desse fenômeno, o preço de mercado de um artista, ou a galeria que o representa, não são capazes de validar sua importância artística nem de justificar sua presença nos acervos dos principais museus do mundo. Esses críticos acreditam que a importância de um artista poderá ser devidamente dimensionada apenas a posteriori, em retrospectiva e perante seu corpo de obra. O que você pensa sobre isso? Como você julga, ou vivencia, as obras de arte dos outros artistas?
Maysa:
Aí nós caímos, novamente, na discussão de uma instituição: o dinheiro. As galerias que vendem, que representam os artistas, são bacanas. Eu, particularmente, fiz um alinhavo todo diferente. Formei em Artes Plásticas, casei, fui morar em uma fazenda, separei depois de 11 anos, voltei para a cidade e precisava sustentar minhas filhas. Fui trabalhar em shopping e fiquei 15 anos por lá. Nessa época, eu pintava para mim. Fiquei doente e fui para Rifaina me recuperar. Depois de cinco anos, voltei para Ribeirão Preto porque meus pais estavam velhinhos e doentes e eu precisava cuidar deles. Voltei para essa casa, onde eles moravam e hoje funciona a galeria. Pintei uma série de budas, vendi as obras, peguei meu portfólio e visitei as galerias da cidade. Ninguém me deu bola. Logo depois, meus pais faleceram e eu fiz dessa casa um espaço de mostra do meu trabalho. Isso faz diferença porque antes eu pintava e apresentava minhas obras na garagem. A partir daí, passei a ter um lugar harmonioso. Eu mesma projetei e modifiquei essa casa, construída nos anos 50. Aí, comecei a arrumar clientes. As pessoas gostam de vir aqui, ver o meu trabalho e tomar um café. Isso tudo gera um envolvimento. Aliás, acho que sempre devíamos ver a obra do artista dentro do ateliê dele. Isso faz todo o sentido e deselitiza um pouco, desmistifica essa ideia de que a galeria inibe.

Adriana: Penso haver uma diferença conceitual e estética (mesmo que, algumas vezes, os limites sejam tênues e imprecisos) entre obra de arte e um trabalho de decoração. Mesmo que o objeto atenda às mesmas definições genéricas de material — por exemplo: fotografia e pintura a óleo sobre tela — a obra de arte, impregnada das intenções e das aspirações do artista, ganha vida própria e tem valor em si mesma, enquanto que a peça de decoração existe apenas em função do sofá, do móvel, do tapete e da cor da parede, sendo compreensível seu descarte, quando acontece a troca da mobília. Sendo artista, como você lida com esse fato dentro do mercado ribeirãopretano e essas diferenças de interesse entre os possíveis compradores de seu trabalho?
Maysa:
A obra fala por si mesma. Ela não precisa estar na galeria para ter voz própria. Eu não faço nada com a intenção de que fique em cima do sofá, mas eu faço o meu trabalho, só que, algumas vezes, o que move a pessoa é colocar a obra em cima do sofá. Aí, tem uma vantagem maravilhosa: a pessoa que vem buscar a decoração, muitas vezes até acompanhada de um profissional da área, sente como eu vivo, entende o meu trabalho e paga um valor honesto por isso. Assim, eu dou uma espécie de aula cada vez que alguém vem aqui. Entendendo que a obra é única, que faz parte de uma série que foi projetada com muito estudo, que ela carrega uma bagagem de vida, a pessoa não descarta a obra junto com o sofá. Isso me deixa muito feliz porque eu sinto que posso proporcionar mais conhecimento para as pessoas. Tem mais: mesmo que o sujeito não entenda muito aquilo, a arte pode despertar o interesse do filho, por exemplo, que também mora naquela casa. Ele ser criado nesse contexto cultural já é outro ponto positivo.

Adriana: Segundo a crítica de arte Thaís Rivitti, uma exposição é um encontro consigo mesmo. Você já vivenciou uma experiência assim?
Maysa:
Eu me encontro, na verdade, não na exposição, mas em cada obra. Eu vivo isso. Esse encontro é a minha vida. O que busco é me achar no meio disso tudo. É a velha questão: quem eu sou, por que estou aqui, de onde eu vim, o que aprendi. Às vezes, entendo que desaprender é melhor do que aprender. Ao desaprender, você vai se libertando de tudo. Conhecimento demais, em alguns momentos, amarra, prende. Não digo isso no âmbito cultural, mas me refiro à muita análise. A vida fica pesada. Eu brinco, no sentido correto da palavra. A minha arte é a minha brincadeira. Muitas vezes, eu não gosto do que eu sei, do que eu vejo, mas eu me aceito. Eu busco me amar e me reinvento todos os dias. Agora, por exemplo, estou na fase dos afetos. O afeto faz com que você ouça o outro, deixa o outro entrar em você. Hoje, aos 60 anos, estou reconciliando com o passado e comigo mesma. Quanto mais questões deixamos resolvidas, mais leve é a mala que carregamos. Eu sou muito generosa e amo isso em mim. Só que, em contrapartida, sou muito perfeccionista e não gosto disso em mim. Eu sou de virgem e me critico o tempo todo. Agora, não quero sofrer mais com isso. Quero sofrer de compaixão.

Adriana: O curador da 32ª Bienal, Jochen Volz, diz que o evento não é mais a principal janela para o mundo; é uma plataforma articuladora de pensamento critico. Você concorda com ele?
Maysa:
Essas coisas todas institucionais impressionam muito as pessoas que entendem o que está acontecendo, mas tem gente muito boa que não está ali. É nossa responsabilidade como artistas, que temos um pé em cada canoa, com condição de vivenciar os dois lados, falar isso, mostrar que existe mais do que está sendo visto. Eu estou vivenciando outras possibilidades. Fui para Pernambuco, quero ir para a Ilha do Marajó, vivenciar a arte de outras formas. Quero abrir, expandir. Esse meu preconceito com as instituições também se estende para o circuito oficial. Eu não faço parte disso, mas talvez precise repensar essa questão. 

Um caminho aberto

“Eu tenho uma inveja boa da Maysa. Para mim, tudo fica tão pesado com isso de querer que as coisas sejam perfeitas. Eu estou sempre tensa, preocupada. A Maysa, apesar de ser virginiana como eu, leva a vida de uma forma mais leve. O Bernardo Mosqueira, curador carioca, também me ensinou um pouco disso. Ele é um cara jovem, que conheci recentemente e fiquei impressionada com o trabalho dele. É um rapaz de 28 anos com um conhecimento incrível. Ele me despertou para isso e também me ensinou que a obra de arte é um caminho aberto, um universo de possibilidades. O que está em jogo na arte contemporânea é o pensamento. Ele a Maysa se assemelham muito nesse sentido. Então, a experiência desse encontro foi enriquecedora porque eu pude conhecer um pouco mais dela, dessa forma boa de viver.” Adriana Amaral, artista visual.

Texto: Máisa Valochi
Fotos: Júlio Sian

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