Descortinando a Esclerose Múltipla
A jornalista Yara Racy intermediou a entrevista entre o médico e a paciente

Descortinando a Esclerose Múltipla

Com mais de 30 anos dedicados ao estudo, ensino e tratamento da doença, o neurologista Amilton Antunes Barreira responde a questões da presidente da AREMD, Martinha Alves Ferreira da Cunha

A esclerose múltipla é uma doença de origem autoimune, ou seja, em que as células e, possivelmente, fatores circulantes, como os anticorpos do próprio organismo do paciente, são responsáveis pelas lesões ocasionadas à substância branca do cérebro, da medula espinhal, do cerebelo e de uma parte do componente do sistema nervoso que une a medula espinhal ao cérebro, denominada tronco cerebral. A doença está relacionada a vários fatores ambientais e genéticos, como a deficiência de vitamina D, a obesidade, o hábito de fumar ou o contato prévio com o vírus de uma doença chamada mononucleose infecciosa. 

Segundo o médico neurologista Amilton Antunes Barreira, professor titular do Departamento de Neurologia, Psiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FMRP-USP), caucasianos são mais propensos a contrair a doença do que ameríndios. Na entrevista a seguir, concedida à presidente da Associação Ribeirãopretana de Esclerose Múltipla e Outras Doenças Desmielinizantes (AREMD), Martinha Alves Ferreira da Cunha, o médico cumpre o importante papel de informar sobre esta ameaça que não tem cura.
 

Martinha: Pessoalmente, o que o levou a se aprofundar e a dedicar mais de 30 anos da sua vida à esclerose múltipla?
Amilton: Meu interesse surgiu quando comecei a estudar outras doenças, principalmente do sistema nervoso periférico, de origem autoimune. Alguns tratamentos são comuns a essas doenças e o fato de conhecer e manejar bem tais procedimentos me levou, naturalmente, a lidar com pacientes que apresentam esclerose múltipla. A incapacitação que a doença pode trazer é muito grave e poder interferir para reduzir os danos e diminuir a velocidade da evolução da doença motivou-me a trabalhar na área. É muito gratificante agir para reverter alterações neurológicas incapacitantes. 
 

 Martinha: Como se desenrolou sua carreira como pesquisador da esclerose múltipla?
Amilton: Tenho interesse pelas doenças autoimunes do sistema nervoso desde que realizei meu pós-doutorado, ainda nos anos de 1980, no Centro Hospitalar de Bicêtre, na França, onde convivi com as equipes do professor Gérard Said e do professor Austin Sumner, da Escola Médica da Universidade da Pensilvânia. Lá, eram estudadas neuropatias periféricas autoimunes, do ponto de vista experimental e aplicado. Novos tratamentos começavam a surgir e, quando voltei do pós-doutorado para o HCFMRP, introduzi a pulsoterapia com altas doses de corticosteroides para tratamento de neuropatias autoimunes. Pouco tempo depois, esse tratamento passou a ser utilizado visando à reversão dos surtos de esclerose múltipla. Nossa equipe já tinha bastante experiência no seu uso. Anos mais tarde, quando o professor Júlio Voltarelli começou as pesquisas com transplante de células tronco hematopoiéticas, a esclerose múltipla foi uma das doenças para a qual se estudou, com êxito, essa alternativa terapêutica. 
 

Martinha: Afinal, o que é esclerose múltipla, quais são suas causas e sintomas?
Amilton: Esclerose múltipla é uma doença do sistema nervoso central (cérebro e medula espinhal) que afeta a substância branca, ou seja, as porções do cérebro e da medula onde se encontra a bainha de mielina (responsável pela cor da substância branca). A bainha de mielina é uma capa protetora de fibras nervosas desse sistema. A esclerose múltipla é autoimune, ou seja, as células do sistema de defesa (sistema imune) do próprio organismo do paciente produzem lesões em várias partes da substância branca. Os locais acometidos por tais lesões são denominados placas, ou focos, e ocorrem em mais de um ponto do sistema nervoso central, por isso, a doença é denominada multifocal. Ao longo dos primeiros anos, a esclerose múltipla é considerada exclusivamente autoimune e, com o passar dos anos, surge um componente considerado degenerativo.


Martinha: Quais transtornos essa patologia pode provocar no cotidiano de uma pessoa?
Amilton: De maneira geral, a doença manifesta-se através de surtos ou episódios de alterações neurológicas, transitórias ou não. Essas alterações podem ser espontaneamente reversíveis, podem deixar sequelas ou podem ser cumulativas, com prejuízo neurológico cada vez mais acentuado. As alterações neurológicas são muito variáveis em intensidade e diversas entre si. Pode haver desde uma neuralgia do trigêmio (dor facial intensa, em geral, na região da mandíbula ou na maçã do rosto), até a paralisia de um ou dois membros, paralisia de um lado do corpo e da face, desequilíbrio associado ou não a vertigens, falta de coordenação motora, visão dupla, alteração na voz ou na fala, amortecimento de um ou mais membros, dormências nas mãos e na boca ou, ainda, dificuldade para caminhar, além de muitas outras possibilidades. 
 

Martinha: A ciência já deu alguma explicação para as inúmeras possibilidades no quadro da doença?
Amilton: Há pacientes que, desde o início, apresentam uma progressão continuada dos déficits neurológicos. Não há, ainda, uma explicação convincente para esses casos, mas todas as formas clínicas parecem ter um caráter inflamatório e há indicações que seja de origem autoimune. 
 

Martinha: Há estudos associando esses componentes degenerativos a algum tipo de padrão?
Amilton: O componente degenerativo, em geral, é mais evidente depois de vários anos de convívio com a doença. A característica clínica da fase progressiva, ou das formas progressivas, é a mudança do caráter episódico para o acúmulo continuado de deficiências neurológicas. Mais recentemente, há a percepção de que o componente inflamatório tem maior papel nas fases e formas progressivas da doença. Essa constatação é estimulante para a busca de novos medicamentos ou extensão do uso dos existentes para tratamento das formas progressivas. 
 

Martinha: Qual é a incidência da esclerose múltipla no mundo e, em particular, na população brasileira?
Amilton: Tratando-se de doença crônica, é melhor que os números sejam referidos em relação à prevalência, e não à incidência. Incidência é o número de casos novos da doença ao longo de um período de tempo pré-determinado (em geral, um ano), enquanto prevalência é o número total de casos da doença em uma cidade, região geográfica ou país. Em Ribeirão Preto, a prevalência da esclerose múltipla é de cerca de 18 casos por 100.000 habitantes, ou seja, para uma população estimada, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),  em 674.405 habitantes, temos cerca de 120 pessoas com a doença morando em Ribeirão Preto. Cerca de 2.300.000 pessoas são afetadas no mundo, havendo uma grande variabilidade de prevalência de acordo com a cidade ou o país. Na América do Sul, o Uruguai tem cerca de 30.000 pessoas afetadas, para uma população de 3.445.000 pessoas, enquanto no Brasil, com mais de 200.000.000 de habitantes, estima-se que também haja cerca de 30.000 afetados. A variabilidade da prevalência é notável.
 

Martinha: Quais são os tratamentos atualmente disponíveis para a esclerose múltipla?
Amilton: Há várias possibilidades. Existem medicamentos, imunomoduladores e imunossupressores que podem ser ministrados tanto por via oral, quanto por via parenteral (subcutânea, intramuscular ou endovenosa). Há, ainda, a possibilidade do transplante autólogo de células-tronco hematopoiética para casos mais graves. 
 

Martinha: Desde quando a doença começou a ser estudada com maior aprofundamento e quais são os resultados obtidos no período? 
Amilton: Nos últimos 30 anos, novos tratamentos têm sido intensamente estudados. Estão surgindo evidências científicas de efetividade de tratamentos que atenuem a velocidade do acúmulo de deficiências neurológicas. Há a percepção recente de que o tempo prolongado de tratamento (mais de dois anos) beneficia os pacientes com a forma progressiva, quando comparado aos que deixam de ser tratados. Os resultados de tais estudos devem ser confirmados, ou não, nos próximos anos. Parece ser possível resposta favorável para casos que estejam no início da forma secundariamente progressiva, quando ainda há lesões com impregnação de contraste na ressonância magnética (essa impregnação é indicativa de que há inflamação ativa no momento do exame). Esses casos poderiam responder ao transplante de células-tronco hematopoiéticas ou a alguns medicamentos. 
 

Martinha: O senhor esteve recentemente em um Congresso na Europa. Quais avanços a comunidade internacional apresenta?
Amilton: Procuramos participar da reunião anual do “European Committee for Treatment and Reserarch in Multiple Sclerosis” (ECTRIMS), em Londres, pois esse tem sido o congresso mais importante da área.  A esclerose múltipla é uma das doenças que registra mais avanços no tratamento. Novos imunomoduladores estão sendo disponibilizados, principalmente, os que alvejam as células B do sistema imune.  Para duas novas medicações com esse tipo de ação já foram concluídos os ensaios terapêuticos. Os mecanismos de ação dos medicamentos são diferentes e, para pacientes que não respondam a um tipo, pode-se utilizar os que não tenham respondido ao anterior.
 

Martinha: Sabendo que a medicina ainda não dispõe de cura para a esclerose múltipla, o que um paciente com essa patologia pode esperar dos tratamentos existentes?
Amilton: As investigações científicas têm levado ao surgimento de novos tratamentos para a doença, em quantidade e diversidade notáveis. Está cada vez mais claro que a “pedra de toque” para uma evolução lenta da doença está no tratamento precoce, seguido por neurologistas especializados (superespecializados) na área. A falta de efetividade ou efetividade parcial de um tratamento necessita ser diagnosticada rapidamente para que os medicamentos sejam trocados por outros mais eficazes. Essas duas atitudes estão relacionadas a um melhor controle da doença e menor número e intensidade das sequelas ao longo do tempo.
 

Martinha: Quais são os serviços disponíveis atualmente no Hospital da Clínicas para pacientes com esclerose múltipla?
Amilton: Temos um setor exclusivo e uma equipe qualificada de neurologistas, coordenada por mim e pela doutora Vanessa Daccach Marques. Os pacientes são reavaliados pelo menos uma vez por ano e quantas forem necessárias, de acordo com a gravidade do caso. Além do atendimento neurológico, temos equipes de neuroradiologia, de neuropsicologia e neuro-reabilitação. Temos um projeto de melhoria contínua do atendimento ao paciente. 
 

Martinha: Como ocorre o acompanhamento desses pacientes?
Amilton: Em nível ambulatorial, atendemos hoje pelo menos 35 pacientes por semana, perfazendo mais de mil de 500 atendimentos por ano. No retorno anual é feito pelo menos um controle da evolução da doença, através de ressonância magnética do encéfalo (incluindo o cérebro e o tronco cerebral) e da medula espinhal, um exame neurológico completo. Além do exame convencional, esses pacientes passam por uma avaliação quantitativa do seu desempenho motor e cognitivo que inclui um teste de marcha no qual o paciente deve andar 500 metros, devidamente cronometrados. A somatória dessas avaliações é indicativa da estabilidade ou da evolução da doença e, consequentemente, da necessidade de modificação do tratamento ou do investimento da reabilitação quando há evidências de atividade da doença e avanço das deficiências. A maioria dos pacientes está na região de Ribeirão Preto, mas recebemos casos de todo o Brasil. Há poucos centros no país que realizam transplante autólogo de células-tronco hematopoiéticas.
 

Martinha: O que são os procedimentos infusionais?
Amilton: A sala de infusões foi criada pelo empenho da nossa médica assistente, doutora Vanessa Daccach Marques, que coordena as atividades de atendimento da área conosco, e os professores Cláudia Ferreira da Rosa Sobreira e Wilson Marques Júnior. Os pacientes com esclerose múltipla são atendidos neste ambiente quando estão em surto ou seu tratamento implica em infusões de medicamentos por via endovenosa. Na sala, são infundidos com imunobiológicos e imunossupressores oito pacientes por dia, sempre acompanhados por um neurologista. 
 

Martinha: Quais os resultados alcançados com essa sala de infusões?
Amilton: O resultado desse trabalho tem sido concreto por várias razões. Assegura-se que os pacientes em uso eletivo estejam sendo tratados com o medicamento adequado, na dose e na periodicidade corretas. Para o tratamento do surto, há garantia de acompanhamento do efeito do tratamento pelo neurologista dia a dia. O monitoramento laboratorial dos efeitos colaterais e das mudanças biológicas indicativas da efetividade do medicamento também é garantido na sala de infusão. A maioria desses medicamentos exige uma grande vigilância em relação aos efeitos colaterais. No atendimento da sala, o prontuário do paciente é revisto, o paciente é examinado, o resultado dos exames, verificado e novos exames são solicitados.  A agilidade do processo beneficia imediatamente o paciente.
 

Martinha: Qual a importância do ensino nessa área e qual a receptividade do tema na atualidade?
Amilton: A equipe, que cuida tanto das doenças autoimunes do sistema nervoso, quanto das doenças neuromusculares, dá treinamento para especializandos em diversos níveis, alunos da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, além de pós-graduação (mestrado e doutorado). Essa formação é dada para neurologistas e profissionais de saúde que queiram fazer investigações na área. Nesse sentido, o suporte da Universidade de São Paulo, à qual está filiada a Faculdade, através dos seus professores, conjuntamente com os médicos do HC, é fundamental. 
 

Martinha: Quais são os avanços na área da pesquisa em esclerose múltipla?
Amilton: Além da participação da equipe em estudos clínicos, o que permite um sólido conhecimento de novos medicamentos, mesmo antes da sua comercialização, a equipe tem várias contribuições na verificação dos mecanismos subjacentes ao transplante autólogo de células tronco e de aspectos específicos da esclerose múltipla. Os resultados de tais pesquisas têm sido publicados em periódicos de circulação internacional. A busca pode ser feita através do endereço https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed, utilizando o nome Marques VD ou Barreira AA.
 

Martinha: Como vê as iniciativas voltadas ao compartilhamento de experiências e conhecimentos científicos entre pacientes e profissionais da saúde?
Amilton: A Associação Ribeirãopretana de Esclerose Múltipla e Outras Doenças Desmielinizantes (AREMD) promove, mensalmente, palestras sobre a doença com apoio de nossa equipe médica, que está atenta às solicitações dos pacientes para a melhoria do atendimento. Nos encontros, os pacientes são informados sobre todos os aspectos da doença, além disso, canais de comunicação com a equipe do HCFMRP estão sempre abertos para contato dos pacientes.  

Martinha: Concretamente, como os profissionais de saúde podem contribuir com as atividades da AREMD?
Amilton: Os profissionais de saúde da cidade, da região e do país que trabalham com a doença, habitualmente, estão disponíveis para fazer palestras na AREMP. Estes momentos costumam ser seguidos de perguntas. O esclarecimento às dúvidas é uma enorme contribuição que os profissionais podem dar aos associados e interessados no aprofundamento do tema. 


Dedicação sem igual

“Conheci o Dr. Amilton Barreira em 1998, quando, já diagnosticada com Esclerose Múltipla, comecei a ser acompanhada pelos médicos do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto. Logo notei que se tratava de um profissional competente e respeitado por seus colegas, um verdadeiro líder na pesquisa e nas atividades administrativas a que se dedicava. Hoje, quase 20 anos depois, o meu apreço por ele é ainda maior, pois foi graças a seu incentivo que criamos, em 2002, a AREMD. Até hoje ele nos auxilia a difundir conhecimentos sobre essas patologias, objetivando melhorar a qualidade de vida dos pacientes e suas famílias e oferecer uma palavra amiga e afetuosa a todos os que buscam a sua ajuda.”
Martinha Alves Ferreira da Cunha, presidente da Associação Riberopretana de Esclerose Múltipla e Outras Doenças Desmielinizantes (AREMD)

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