O mundo de Rita

O mundo de Rita

Conduzida pela escritora Eliane Ratier, a poetisa Rita Mourão, escritora local homenageada pela Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto, resgata sua história e revela aspirações

Apaixonada por rimas, Rita puxa o fio da memória para constar a sua vida em prosaQuem tem contato com Rita Mourão, autora local homenageada na 16ª Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto, tem a impressão de ser envolto por outro tempo — o tempo da delicadeza, da suavidade, que nada tem a ver com a imperatividade dos compromissos que ditam e definem a urgência dos passos e das horas da contemporaneidade. Talvez isso ocorra porque essa simpática senhora de 82 anos, além de ser mineira, de Piumhi, tenha uma raiz telúrica, tendo vivido em uma fazenda durante boa parte da infância e da juventude e aprendido a desbravar outros mundos e novas ideias apenas sentada sob uma mangueira, na companhia dos livros.  

Rita saiu do sítio para estudar, concluiu o ensino fundamental, retornou à fazenda e, ainda jovem, passou a alfabetizar pessoas. Casou-se aos 19 anos, teve sete filhos, mudou-se para Ribeirão Preto em 1972 e, depois, de encaminhá-los na vida, aos 56 anos, retornou aos bancos escolares para concretizar o velho sonho: voltar a estudar. Fez supletivo, concluiu o magistério em 1996 e começou a trabalhar no Colégio Metodista com produção e Interpretação de textos, ao lado da professora Mara Jorge. Juntas, deixaram 14 antologias poéticas editadas com poemas dos alunos.

Em 1997, Rita lançou  o livro "Chama e Mormaço", ingressando, dois anos após, na Academia Ribeirãopretana de Letras e passando a integrar, mais tarde, várias instituições  literárias. Autora de mais quatro livros de poema, é também contista, cronista e trovadora premiada em inúmeros concursos, para orgulho da família, um núcleo que, como ela, prosperou: hoje, Rita tem 16 netos e seis bisnetos. 

Conduzida pela escritora e coordenadora do Núcleo de Ribeirão Preto da União Brasileira de Escritores (UBE), Eliane Ratier, Rita resgata o fio da própria história a partir dos olhos da garotinha curiosa que, à sombra da velha mangueira, imaginava o mundo — um mundo que foi generosamente apresentado a ela, incialmente pelos poetas inconfidentes, mais tarde, por mestres da literatura. 

Eliane: Você cumpriu seu programa oficial de mulher nos primeiros 50 anos de sua vida, sendo esposa e mãe. Então, estudou, formou-se professora, tornou-se uma escritora campeã em premiações e, este ano, é homenageada da Feira do Livro de Ribeirão Preto. Como se sente com esse reconhecimento? 
Rita:
É uma emoção muito forte, não sei se esse coração velhinho vai aguentar. Estou muito feliz porque, justamente neste ano, a Feira está voltada à literatura. 

Eliane: Tenho acompanhado seus encontros com alunos em várias atividades. Eles são diferentes dos alunos de outrora? 
Rita:
Amo alunos de qualquer idade e de qualquer época — são pensadores, pessoas que estão buscando seu futuro e precisam de um alicerce. Tempos atrás, fui ao colégio Thomas Alberto Whatelly conversar com os alunos do terceiro colegial. Quando entrei, estavam me esperando na sala onde, aos 56 anos, eu fazia o supletivo. Segurei para não chorar. Tive a oportunidade de retornar à velha escola para conversar com uma turma bem preparada e interessada. Nesses encontros, eles ficam quietinhos, fazem perguntas e participam. 

Eliane: Foi difícil para você ter que parar de estudar? 
Rita:
Eu vivia enclausurada. Não culpo meu pai, mas eu percebia que o mundo não era aquilo. Naquela época, mulher era educada para ser uma boa esposa e uma boa dona de casa. Não cozinhava de jeito nenhum, só aprendi a cozinhar depois que me casei.

Eliane: O que fez você dar vez aos seus sonhos e desde quando eles povoam seu pensamento?
Rita:
Desde criança, quando eu fazia 4º ano do ensino fundamental, em 1948, voltei-me para a poesia. Lia muito, principalmente a poesia dos inconfidentes, e ficava muito emocionada. Resolvi voltar a estudar por amor à poesia, senti que precisava desenvolver o meu conteúdo para escrever o que gostaria, com mais segurança. Voltei e procurei ouvir a voz dos grandes mestres da literatura. 

Eliane: Quem foram eles para você?  
Rita:
Manoel de Barros. Do Manoel Bandeira eu também gosto, mas o Manoel de Barros me deu uma direção muito boa porque ele também escreve sobre o telúrico, viveu muito em fazenda. Gosto de Fernando Pessoa, aliás, gosto de todos, pois quem ama poesia, ama todos os poetas. 

Eliane: Você voltou a estudar não com a intenção de ser proEliane conduz Rita ao resgate da própria história fessora, mas com a intenção de melhorar a sua escrita? 
Rita:
Eu também sonhava em ser professora. Morava em um lugar onde não havia informação e achava que as pessoas tinham que procurar saber mais. Eu queria ir além daquele horizonte que me cercava, daí nasceu o sonho de ser professora, para transmitir informação. Eu insisti nesse sonho.

Eliane: Nessa busca, o que primeiro despertou o desejo: um mestre, uma inspiração, um livro? 
Rita:
Eu escrevia e lia muito quando criança. Já tinha mais informações do que as pessoas que viviam fazenda. Quando mudei para Ribeirão Preto, procurei conviver com pessoas da literatura, que me ajudaram muito. Não foi coincidência, foi providência de Deus, que colocou muita gente boa na minha vida — Ely Vieitez Lisboa, você e tantos outros que me ajudaram a escrever minha história e me passaram informação. Sou muito grata a Deus também. Sempre busquei conversar com pessoas que sabiam mais do que eu, que me despertavam o desejo de informar, de escrever melhor. 

Eliane: Esses dias, ouvi que não há acaso: o que existe é um oferecimento e um aceite. Você é uma dessas pessoas que diz sim às oportunidades?
Rita:
Busco isso com todo o empenho, desde pequena. Sempre pensava: ainda vou realizar o meu sonho. Morava em um lugar distante, que parecia um pedacinho de “Os sertões”, de Guimarães Rosa, mas sempre esperava que o milagre acontecesse, e aconteceu. Vim morar em Ribeirão Preto, criei meus filhos, fiz amizades com pessoas que só me ajudaram e me fizeram crescer. 

Eliane: Para escrever é preciso ler? 
Rita:
Ler e buscar informação.

Eliane: Você continua estudando? 
Rita:
Leio os livros e eles me ensinam, são meus mestres. Busco auxílio com colegas, vou à Academia de Letras, o que é uma benção, pois passei a conviver só com pessoas da literatura, que me ajudaram muito. Quando ingressei, recebi enorme apoio de Antonio Carlos Tórtoro, presidente na época. Naquele início, tinha muito medo de me expor, pois sabia que o conteúdo deles era bem maior que o meu.

Eliane: A inspiração e a escrita já estão dentro. Escrever e pôr para fora é uma questão de aprimorar, não acha? 
Rita:
Precisa ser lapidado. Daqueles textos dos inconfidentes fiz meu primeiro poema, aos 11 anos. Como vê, eu já tinha vontade de escrever. 

Eliane: O que você mais gostava de ler, além dos inconfidentes? 
Rita:
Lia Dom Casmurro; li a trilogia de Érico Veríssimo, “O tempo e o vento”, e amei — quando o autor falava do sussurro do vento, eu me imaginava na fazenda, envolta por ele, imaginava a Ana Terra. Quando me mudei para a cidade para levar meus filhos à escola, fiquei amiga da diretora e emprestava os livros da biblioteca. Várias obras me influenciaram. Outra que amei foi “O Cortiço”, de Aluízio Azevedo: o livro retrata as favelas de hoje, que ele já descrevia naquela época. “Iracema”, de José de Alencar, ainda releio porque é um poema em prosa. 

Eliane: Além dos autores que a influenciaram, o que a estimula a escrever? 
Rita:
Tenho uma necessidade muito grande de escrever e certa dificuldade para expor minhas ideias em público. Escrevendo tenho mais liberdade de vasculhar os meus subterrâneos e passar os sentimentos com mais clareza. Escrever é uma catarse para mim. 

Eliane: Dizem que sempre colocamos nos textos um pouco da nossa vivência ou mesmo da nossa dúvida. Você acredita nisso? 
Rita:
A Ely, outra grande mestra da minha vida, sempre fala que o que escrevemos, às vezes, não tem nada a ver com a gente. Eu não concordo, acho que tem muito. Direcionamos o que escrevemos para o que fomos e para o que somos, mesmo que não claramente. 

Eliane: O livro tem fundamental importância na formação do indivíduo. Como despertar este gosto pela leitura em quem não o tem?
Rita:
Trabalhei muito essa questão como professora. Eu e a Mara Jorge lidávamos com alunos pequenos, de terceiro e quarto anos. No início, não tinham nenhum interesse, mas começamos a trabalhar pequenos poemas, poemas infantis e depois poemas mais profundos. Além da leitura, os alunos faziam a interpretação. Eles aprenderam a entender os poemas, passaram a gostar e, baseados nos autores, criavam seus próprios. Isso deu tanto resultado que, em 16 anos, lançamos 14 antologias das crianças. Esse trabalho ainda é feito. O aluno passa de leitor a autor e percebe que o poeta não está distante nos livros, está dentro dele. O poeta está ali, só precisa ser trabalhado. No começo do trabalho, nota-se uma rejeição à poesia porque é preciso aprender a ler o poema. Depois que se passa a interpretar palavra por palavra, a entender o texto, o gosto passa a ser natural, porque a poesia sensibiliza, cria pensadores. 

Eliane: Você acredita, então, que dar oportunidade e estimular a escrever torna os alunos mais curiosos para a leitura? 
Rita:
É claro, desperta mais interesse. Começam a pensar que têm direito a fazer alguma coisa, a mudar o que está à volta deles e dar seu grito de liberdade como escritor e como leitor.

Eliane: Você teve uma experiência parecida, quando aluna, em projeto semelhante. O que aprendeu com esse trabalho? 
Rita:
Que a reescrita ajuda muito. No Grupo Flamboyant, que a Ely patrocinava e dava as aulas, ela passava um texto, fazia uma interpretação e o reescrevíamos. Aprendi muito lá. 

Eliane: Você continua interessada na Educação? 
Rita:
Continuo, mas não tenho mais condição de atuar constantemente nessa área. Minha filha é professora de crianças pequenas e tinha alguns alunos com problemas de alfabetização. Fiquei algumas semanas na escola e recuperei uma porção de alunos. Amo fazer isso, mas, hoje, a rotina me cansa. 

A jornalista Carla Mimessi acompanhou a entrevistaEliane: Sua história deu frutos: tem uma filha professora. E na parte da escrita? 
Rita:
Tenho duas filhas professoras e um sobrinho escritor, que acho que vai longe. De vez em quando, ele manda seus poemas para saber a minha opinião. Meu irmão até brincou, dizendo para que não entrasse nessa, que morreria de fome, e eu retruquei “mas não gasta com calmante”. A poesia é remédio para todos os males.

Eliane: Quem lê seus trabalhos em primeira mão? Qual é o seu parâmetro? 
Rita:
A Ely e a Mariinha Salomão, que foi minha professora no supletivo e minha colega no Colégio Metodista. A Mariinha tem todo o meu arquivo, se um dia eu morrer, está com ela. 

Eliane: Sei que você é muito premiada com poesias e trovas. Você já escreveu prosa ou se arriscaria em um romance? 
Rita:
Romance eu não teria a ousadia de escrever, não acho que tenha conteúdo literário para isso, mas tenho várias crônicas e contos premiados, em um livro chamado “O mundo aos meus olhos”, que será lançado na Feira do Livro, no dia 12 de junho, às 10h, no salão térreo do Centro Cultural Palace. Gosto muito de romances, mas como desde criança sou ligada à poesia, segui esse caminho. Mandei os contos e as crônicas para a Ely avaliar e ela os achou muito bons. Nesse livro, há umas cinco crônicas premiadas. 

Eliane: Acredito que escrever um romance também depende de fôlego, de se envolver com os personagens por meses, às vezes, até conseguir concluir a história. Você concorda? 
Rita:
Acho isso até importante. Para escrever, precisa ter técnica. Eu não teria coragem, só escrevo o que acho que não está ridículo. 

Eliane: Você também escreveu para crianças? 
Rita:
Tenho alguns poemetos. Trabalhava a língua portuguesa, os substantivos e os pronomes, com poemas, era uma graça. Fiz um poema chamado “Olha a pipa do Henrique”, que falava sobre o “r” entre vogais, para os alunos que estavam começando a ser alfabetizados.

Eliane: O dia a dia consome a gente, ainda mais a mulher, em suas jornadas múltiplas. O que faz para não ser consumida pelo cotidiano e manter vivo o olhar poético? 
Rita:
Amo a natureza e acho o amor lindo. Quando quero fugir do cotidiano, contemplo o universo, penso em um lindo amor e começo a colocar para fora os meus sentimentos. Olhando para o universo, encontro minha felicidade. De vez em quando, vou até a janela do apartamento, fico olhando o pôr do sol, as plantas, bendizendo a Deus, que é o maior poeta, cuja obra é maravilhosa, e me inspiro nele. 

Eliane: De onde vem esse amor? É um amor romântico, divino ou universal? 
Rita:
O romântico eu já vivi. Acho maravilhoso o amor perfeito, com respeito. Busco o amor divino, pois Deus é maravilhoso e eu sou muito feliz, apesar das minhas limitações, porque tenho um Deus que me protege. 

Elaine: Agora que você tem as armas, sabe escrever e tem conhecimento, aquela menina da roça ainda te conta algumas coisas? É baseada nela que você escreve? 
Rita:
Às vezes. Ultimamente, tenho abordado outras coisas, mas ainda me lembro de estar sentada, fazendo rimas (que eu nem sabia que eram rimas) aos 14 anos. Sempre fui muito introspectiva e, às vezes, me lembro dessa época. Tem um poema, no meu livro “Meu Sertão, Meu Brasil”, que relata sobre esses momentos em que me sentava sob a mangueira. 

Eliane: Foi aí que nasceu a trovadora?
Rita:
Eu ficava ali, pensando nas rimas, mas não sabia que precisava métrica, não tinha noção de muita coisa, mas queria fazer. Acho que nasci poeta, precisava ser lapidada. 

Eliane: Você é uma mulher de muitas vitórias, algumas são conquistas, outras são presentes da vida que você sabiamente aceita. E agora, o que a Rita quer? Quais são seus planos?
Rita:
Vou continuar com os mesmos planos: amando a poesia, a minha família e agradecendo a Deus por colocar tanta gente boa no meu caminho. Quero ser humilde para continuar ouvindo os grandes mestres da literatura. 

À mesa com Rita 

“Rita me veio nesta camaradagem fraterna que une os que têm o mesmo gosto. Ela põe na mesa da poesia finas iguarias vindas do chão, inspiradas pela natureza, a perfeita manifestação do amor divino, que ela serve com o coração pleno de gratidão. Mulher de carne e osso, vitoriosa entre perdas e ganhos, transformadora de pedra em poesia. Mulher que busca o sonho é exemplo que inspira. Ler Rita é encontrar-se espelhada em seus poemas, é ter a alma traduzida pela palavra exata, é partilhar do humano e universal sentir; é descobrir um segredo sobre si, é visitar um futuro que talvez não seja, recordar um passado não vivido, vestir outra pele que também lhe cabe; é permitir-se o prazer da descoberta do sabor surpreendente da poesia. Experimente ler Rita Mourão!” Eliane Ratier, escritora.

Texto: Carla Mimessi • Fotos: Ibraim Leão

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