As singularidades do canto

As singularidades do canto

Apaixonados pelo universo erudito, Cyrilo Luciano Gomes Júnior entrevista Maria Yuka de Almeida Prado, revelando a trajetória e os aprendizados dessa professora e artista

Uma conversa entre Cyrilo Luciano Gomes Júnior e Maria Yuka de Almeida Prado só poderia acabar de uma forma: em canto lírico. Além de ser promotor de Justiça, mestre em Direito, professor universitário e presidente da Associação Musical de Ribeirão Preto, Cyrilo é tenor. Yuka é professora de canto, coordenadora do Laboratório de Performance e Ciências do Canto (LAPECC) do Departamento de Música e membro do Núcleo de Apoio à Pesquisa do Laboratório de Ciências da Performance em Música (NAP-CIPEM) da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP). Graduada em Canto pela Faculdade de Música Kunitachi, concluiu o mestrado e o doutorado na ECA-USP e realiza, hoje, recitais-conferências e conferências na Europa, e se destaca como camerista, com amplo repertório da canção brasileira, além de ser membro do Ensemble Mentemanuque que se apresenta no Brasil, na Suíça, na Alemanha, na Itália e nos Estados Unidos.

Os dois se conheceram durante a montagem da Ópera La Bohème, e Cyrilo ficou surpreso com a performance de Yuka  no espetáculo. Na entrevista, que foi acompanhada pela jornalista Carla Mimessi, o tenor aproveita para saber um pouco mais dessa mulher generosa na vida e no palco, que esbanja encanto com sua arte.

Cyrilo: Nos conhecemos na montagem da ópera La Bohème e, desde então, sua presença no cenário artístico ribeirãopretano se intensificou muito. Fale um pouco de sua trajetória musical e acadêmica em Ribeirão Preto.
Yuka: Ribeirão Preto é uma cidade que tem grande vocação e é um campo muito fértil para a música. Temos o Theatro Pedro II, que é maravilhoso, a Orquestra Sinfônica de Ribeirão Preto, o Departamento de Música da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, conservatórios musicais, a Companhia Minaz e vários corais. No Departamento de Música, temos, como grupos estáveis, a USP-Filarmônica, a Banda Mogiana, o Ensemble Mentemanuque, o Grupuri, Duo Corvisier, In Tempori Duo, Oficina Experimental da Voz, Oficina Experimental de Instrumentos e Quarteto Lacorde. Todas essas atividades se complementam, conglomeram e criam um polo muito forte na música em termos de Brasil.

Cyrilo: De que forma a vocação musical do município influenciou em sua opção de vida pessoal e profissional?
Yuka: Em Ribeirão Preto, pude desenvolver um trabalho para o qual vinha me preparando desde a minha adolescência, a minha formação, que ocorreu em Tóquio. Refiro-me não só à performance junto à Orquestra Sinfônica de  Ribeirão Preto, à USP Filarmônica  e a outras formações camerísticas no Theatro Pedro II e nos espaços culturais do campus da USP, mas também à Academia, pois a universidade é um espaço que propicia mais que a prática da arte, é,  também, um ambiente de questionamento dessa prática. O que é o canto? Para que serve? Como se canta? A prática da performance vinculada à pesquisa acadêmica engrandece o trabalho, aprofunda o conhecimento para o qual vinha me preparando. A universidade, além da pesquisa, permite que eu transmita esse conhecimento e, para realizar essa tarefa, ele deve ser constantemente renovado, o que me faz adquirir outra dimensão do próprio conhecimento, pois esse saber não é construído somente para o aprimoramento pessoal, mas para ser transmitido ao aluno e à sociedade.

Cyrilo: O que mais a marcou em sua trajetória como acadêmica e como cantora lírica?
Yuka: Conciliar essas duas atividades. Não há um marco, pois foi um processo em que as experiências se agregaram. Essa oportunidade que eu tenho de ser artista, professora e pesquisadora ao mesmo tempo é muito enriquecedora. Por meio dela, pude expandir minha bagagem porque cantar e ensinar são atividades muito distintas e aqui consegui conciliar essas duas práticas. Isso é o que me apaixona, o que me motiva.

Cyrilo: Essa junção proporcionou um tempero diferente ao seu trabalho?
Yuka: Sim. Eu adoro o Theatro Pedro II, é o meu templo musical. Gosto de locais que tenham uma acústica que engrandeça a voz. O Theatro Pedro II valoriza a voz do artista, cantar ali é uma experiência maravilhosa.  Poder fazer ópera no Theatro Pedro II é fantástico. A La Bohème foi um marco, porque eu não sou uma cantora de ópera, sou camerista. Nunca tive grandes oportunidades para participar de óperas. Poder realizar um evento como esse naquele teatro, ao lado da Orquestra Sinfônica de Ribeirão Preto, com alunos e professores do Departamento de Música da USP envolvidos, tendo a participação de empresas e da comunidade, é muito engrandecedor. Situações como essa me deixam fascinada pelo que venho desenvolvendo.

Cyrilo: Todos nós ficamos apaixonados pela Musetta, jovem namoradeira da ópera La Bohème, que você interpretou tão magistralmente. E você?
Yuka: Acho que toda mulher tem uma Musetta dentro dela, de forma mais ou menos evidente. Quando nos encontrávamos com os amigos que assistiram à ópera, meu marido logo advertia: a Yuka é isso que vocês estão vendo, ela não é Musetta. Porém, no fundo, todos nós temos esse sonho, essa fantasia de fazer o que “dá na telha” e a Musetta é muito livre, despachada, faz o que bem entende. Nossa sociedade, de certa forma, inibe esses ímpetos. Musetta é uma parte da Yuka, que está ali, bem guardadinha, mas existe. Aquela também sou eu.

Cyrilo: Quando a Yuka é cantora de câmara, deixa a Musetta bem guardada e encarna a apaixonada e romântica Mimi, protagonista da La Bohème?
Yuka: Depende da música.

Cyrilo: Como é essa versatilidade da cantora de, a cada canção, ter que incorporar um personagem diferente, que precisa ser natural aos olhos do público, sendo tantas as personalidades interpretadas sucessivamente?
Yuka: Essa característica faz parte da natureza do artista, do ator, da atriz. O canto envolve tudo isso. Quando se interpreta uma ópera, o personagem tem vários momentos e nuances. Cada canção é única e você pode ser o protagonista do enredo, pode estar narrando ou interpretando outro personagem, ou mesmo realizando tudo isso no espetáculo. Em cada canção, o cantor tem um universo semelhante a uma miniópera, em que um personagem tem que ser interpretado, situado em determinado ambiente ou condição. Toda canção requer um estudo detalhado para que sua interpretação ocorra da melhor forma possível. Todo artista deve ter essa versatilidade.

Cyrilo: O canto e a canção brasileira podem ser comparados ao canto e à canção japonesa?
Yuka: As pesquisas que realizei na dissertação de mestrado e na tese do doutorado tratam da poética japonesa na canção brasileira. A canção brasileira tem um universo muito distinto que é o retrato da própria nação, com essa diversidade cultural que transparece, tanto na canção erudita, quanto na canção popular. A canção erudita brasileira incorpora os conteúdos de diversas culturas, como a indígena, a africana, a italiana, a alemã, a japonesa, entre outras, o que a torna um universo muito rico, que retrata a heterogeneidade da própria cultura do país. Esse caráter heterogêneo fascina os estrangeiros. O melhor elogio que podemos receber quando nos apresentamos é ser convidado para voltar. Nos Estados Unidos, na Alemanha, na Suíça ou na Itália, lugares em que tenho cantado, recebo convites para retornar. As pessoas querem ouvir novamente essa diversidade que a canção brasileira tem, uma riqueza que não é conhecida nem pelos próprios brasileiros. A canção japonesa, na qual me especializei quando me formei, tem outra natureza. Ela não é a canção tradicional japonesa.

Cyrilo: Quais são, então, os fundamentos da canção na qual se especializou?
Yuka: Na Era Meiji, o Japão deu um salto do sistema feudalista para o sistema capitalista, devido à corrida armamentista. Se houvesse uma guerra, eles não teriam nenhum tipo de defesa, além das espadas dos samurais. Devido a questões econômicas e políticas, o canto incorporado a vertentes ocidentais da harmonia foi utilizado como uma forma de ocidentalizar o país. O sistema de ensino se tornou compulsório em 1872. Todas as crianças eram obrigadas a estudar e incluíram o canto como disciplina obrigatória na grade. Nesse processo de ocidentalização, os japoneses enviaram estudiosos para aprender a música ocidental no Velho Continente, onde absorveram canções folclóricas inglesas, espanholas e italianas e as musicaram em japonês. Com a chegada do piano, introduziram a harmonia, que até então não existia na música japonesa. Melodicamente, a canção japonesa continua com a nuance pentatônica, ou seja, de cinco notas. Começa, então, a surgir a canção japonesa, em princípio, com cunho moral para educar as crianças.

Cyrilo: Em relação às temáticas das canções japonesas e brasileiras — a alegria, o amor, a grande perda, o apego à pátria — há semelhanças e diferenças importantes?
Yuka: Sim. Na cultura brasileira, a emoção é explosiva, expande-se mais. Na cultura japonesa, a emoção é mais contida. A palavra amor não existia nem no idioma japonês. Nessa língua, a definição mais próxima de amor era o respeito. A alegria também é mais contida. Existe uma melancolia no geral, que é um traço da cultura do país. A cultura japonesa se estruturou no cultivo do arroz, no qual as pessoas trabalham comunitariamente. A cultura ocidental foi baseada na caça e, por consequência, é individualista. Há, portanto, na cultura japonesa, respeito e importância em relação ao que é do grupo, ao que é comunitário, e o sentimento que a pessoa quer explodir acaba sendo contido em prol da harmonia do conjunto, da comunidade. Isso se reflete na música. Entretanto, nas minhas pesquisas, descobri que a música brasileira é, também, muito melancólica. Se você prestar atenção nos enredos das escolas de samba, há muita batucada e ritmo, mas as letras são melancólicas. Mário de Andrade disse que o povo brasileiro é melancólico porque basicamente é formado por três raças: o índio que perdeu as terras, o negro que foi trazido da África e o português que deixou sua terra natal. Na cultura brasileira, também há essa melancolia e pode-se dizer que essa característica é comum na canção dos dois países, pois esse caráter melancólico está intrínseco na cultura japonesa.

Cyrilo: Em relação à musica, em Ribeirão Preto, quais são os seus sonhos e planos para o futuro?
Yuka: O Departamento de Música da (FFCLRP-USP) multiplica o conhecimento e a formação. A grande maioria dos meus alunos está dando aulas particulares de canto, trabalhando em corais ou em conservatórios. Esse desdobramento criado pela Faculdade em conjunção com os corpos estáveis que temos no próprio Departamento — como a USP Filarmôncia, por exemplo, associados à Orquestra Sinfônica de Ribeirão Preto e a outros grupos musicais da cidade, ao Theatro Pedro II, induzem em mim uma visão otimista. Mesmo que invisíveis, essas forças se aglutinam e, na interlocução entre as instituições, potencializam-se.

Cyrilo: Tendo em vista a crise econômica instaurada no país, como as instituições culturais podem manter seu trabalho em favor da arte? O que podemos fazer para conclamar a comunidade de Ribeirão Preto a abraçar suas instituições culturais?
Yuka: Isso leva tempo. Não acho possível convencer rapidamente as pessoas de que a arte e a cultura são essenciais para o desenvolvimento de uma nação, a não ser que haja uma ação política nacional. Sem essa ajuda política, o processo é lento. Porém, não precisamos aguardar uma ação dos governantes; temos que ter uma ação individual. Sempre digo aos meus alunos que a arte do canto é o caminho deles e não o fim, que ela faz com que a pessoa se depure, seja um ser humano melhor. Se cada um que atua com a arte se lapidar e der o seu exemplo como ser humano e como profissional, já está dando sua contribuição, mesmo que pequena. Se cada profissional tiver ciência da importância da arte para a sociedade e conseguir demonstrar às pessoas o quanto ela modificou sua vida e é capaz de modificar a de outros, acredito que podemos alcançar essa mudança.

UMA MULHER SURPREENDENTE

“Eu conheci Yuka de Almeida Prado durante os trabalhos para a montagem da ópera La Bohème, de Puccini, em Ribeirão Preto, em 2011. É verdade que já ouvira falar dela, especialmente pelo seu destaque como professora no Departamento de Música da Faculdade de Ciências e Letras, da Universidade de São Paulo, de Ribeirão Preto. Porém, aquela mulher discreta, gentil e elegante se transformou para representar a jovem Musetta, com seus traços de liberdade e irreverência. Ficamos todos encantados com Yuka. Mais encantado ainda me senti nessa conversa, na qual ela revela o quanto trabalhou sua arte e por ela foi lapidada, mostrando que a mesma generosidade que oferta no palco serve de parâmetro para conduzir sua vida.”
Cyrilo Luciano Gomes Júnior, promotor de Justiça e tenor.

Texto: Carla Mimessi
Fotos: Ibraim Leão

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