Um tema mais do que delicado

Um tema mais do que delicado

Na Semana Nacional pela Não Violência Contra a Mulher, o médico Thiago Apolinário, responde perguntas da advogada Najla Ferraz, apontando os desafios para uma maior conscientização sobre o assunto

Médico psiquiatra, especialista em Sexualidade Humana pela Universidade de São Paulo, Thiago Dornela Apolinário atua junto ao Serviço de Atendimento à Violência Doméstica e Agressão Sexual (Seavidas), ao Ambulatório de Ansiedade do Setor de Psiquiatria do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento e ao Ambulatório de Estudos da Sexualidade Humana do Setor de Reprodução Humana do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo.

Na entrevista a seguir, concedida à advogada Najla Ferraz, coordenadora regional da Comissão da Mulher Para advogada e o médico, a conscientização sobre os fundamentos e as consequências da violência contra a mulher são temas urgentesAdvogada da OAB-SP e presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, Apolinário aprofunda aspectos importantes, muitas vezes, despercebidos, sobre a origem e os impactos sociais decorrentes da violência contra a mulher.

Najla: A violência contra a mulher é um problema “naturalizado” pela sociedade?
Thiago:
Existe, sim, uma estrutura social, um histórico de desigualdade de direitos, que favorece violência à mulher. Isso não está relacionado apenas à questão da força bruta — de o homem ser mais forte do que a mulher —, mas, também, à renda, à liberdade de ir e vir ou de experimentar a própria sexualidade. Há muitos casos de dificuldades sexuais relacionados ao fato de os homens, desde criança, serem ensinados que o prazer é permitido e que se tocar é comum, enquanto as mulheres são reprimidas de se tocarem, precisam ser “delicadas”, não podem sentar de perna aberta porque “é feio”. Essa mentalidade, que historicamente coloca a mulher como quem cuida da casa e o homem como provedor, favorece a violência porque, neste papel, a última palavra é do homem. A naturalização da violência começa porque existem esses fatores por baixo do pano. 

Najla: Quais são os tipos de violência contra a mulher?
Thiago:
Existe a violência psicológica, a física, a sexual, a moral e a patrimonial. A psicológica compreende todas as ações que levam ao dano emocional, que atingem a autoestima e provocam algum tipo de dificuldade no desenvolvimento. Isso inclui humilhações chantagens, ameaças e ofensas que vão minando a autoconfiança da mulher. A sexual compreende algum tipo de dano ao corpo da mulher, onde ela participa de um ato sexual sem consentimento. Essa é uma questão importante porque a mulher pode — a qualquer momento — retirar seu consentimento e, se isso não for respeitado, a partir dai, é violência. A moral inclui injúria, calúnia e difamação. Já a patrimonial é quando é subtraído algum bem da mulher ou o direito dela de acessar seus bens, seus valores. Segundo a Organização Mundial da Saúde, mais de 35% das mulheres no mundo já experimentaram violência física ou sexual. Esse número tende a ser maior porque, no Brasil, por exemplo, apenas 10% dos casos chegam à delegacia ou ao sistema de saúde. Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública, houve um aumento de 28% nos casos de estupro em 2016, na comparação com o ano passado. Se estamos convivendo com estatísticas tão elevadas, é hora de falar sobre isso.

Najla: Quais são os principais atos de violência contra a mulher relatados pelas vítimas?
Thiago:
Isso depende muito da consciência que a mulher tem sobre o que é violência. Os principais relatos são os mais visíveis, como agressão física e violência sexual ou mesmo a questão de uma violência mais grave de insulto e de situações mais gritantes. Esses são os mais notados pelas mulheres quando chegam ao atendimento, porém, a partir de uma escuta ativa, ficam claras outras violências, como manipulação e isolamento da família ou dos amigos —  o que contribui para que a mulher fique mais presa, fragilizada —, vigilância constante, perseguição, chantagens, ridicularização e limitação do direito de ir e vir. Isso vai aparecendo com o relato e, só então, a mulher toma consciência que isso também é violência. Muitas vezes, uma mulher sofre violência e não sabe. A questão da violência sexual, por exemplo, vai além somente da questão do estrupo. Também é uma forma de violência quando uma mulher casada participa de uma relação sexual sem vontade ou tem dificuldade de acesso a um método contraceptivo ou falta autonomia para escolher o momento de engravidar. Outras situações, como exposição da imagem e constrangimentos, também envolvem violência contra a mulher.

Najla: Há dificuldade de a própria vítima reconhecer que esteja sendo vítima de violência?
Thiago:
Sim, a violência está presente em todas as camadas sociais, não é algo que acontece apenas com a população mais pobre. Ela apenas ganha a justificativa de que o homem chega do trabalho cansado e, por isso, a mulher tem que tolerar porque é seu papel. O atendimento médico, no caso da violência, entra não para “patologizar” a vítima ou o agressor, mas para averiguar e levar essa mulher à informação de que ela está em um ciclo, à consciência de que existe um ciclo onde, em um primeiro momento, está tudo bem, depois, aparecem agressões verbais e situações que podem culminar em uma agressão maior ou não, mas que vão prejudicando a saúde física e mental dessa mulher. Depois de um momento de crise, pode parecer tudo bem novamente, levando a mulher a acreditar na possibilidade de melhora, recomeçando o ciclo. Isso se repete indefinidamente. Quando falamos da importância de um atendimento médico não queremos reforçar na mulher a ideia de doente ou de uma vítima indefesa, mas suscitar nela condições para que perceba a violência e se organize para romper com isso.

Najla: É possível tratar uma vítima de violência para que ela saia ou rompa o ciclo de violência? Caso sim, como acontece?
Thiago:
A possibilidade existe. A mulher precisa ser acolhida sem julgamento e sem estereótipos. Também não se pode reforçar nela a posição de vítima, mas atuar no sentido de convidá-la a se responsabilizar, cada vez mais, por si, pelo cuidado com a sua saúde e sua autonomia, para não cristalizar nela esse papel frágil. O acolhimento convida a mulher a pensar, dentro de seu contexto, quais caminhos ela pode tomar e quais serão seus pontos de apoio para que ela se articule para dar uma resposta, defender-se, não aceitar mais situações de violência. Existem barreiras, não é fácil romper com todas as camadas, mas se a mulher consegue desenvolver sua autoestima e autonomia, há uma possibilidade, um caminho. Tudo isso depende de ela perceber que está participando de uma violência e desejar sair dessa posição. 

Najla: Há, também, a questão da mulher, muitas vezes, ser culpada pela violência.
Thiago:
Sim, o conceito de culpar a mulher por estar se vestindo de uma maneira provocante ou andando sozinha também precisa ser discutido e ampliado. A pesquisa que apontou para o fato de que 30% dos entrevistados — homens e mulheres —, acham que a mulher favorece o estupro revela a necessidade dessa avaliação mais aprofundada. As pessoas não conseguem olhar de outra forma, mas a mulher tem o direito de andar como quiser e de dizer não a qualquer momento e ter sua decisão respeitada. Os homens precisam parar de achar que o não é “charme” e entender que — tenha a mulher estimulado ou não —, o momento do ato sexual precisa de consentimento. Quando isso deixa de ser discutido, favorece a desigualdade e a violência. A questão da liberdade sexual para a mulher não é abordada na escola ou pela família. Essa ausência do conhecimento do que é a liberdade sexual influencia muito no fato de a mulher não saber que está sendo vítima da violência. Muitas não têm consciência da violência que vivenciam.

Najla: O aspecto cultural é relevante para a análise da violência contra a mulher?
Thiago:
Assim como é importante não tratar a mulher como vítima, também não se deve tratar o homem como agressor. Esse é um ponto delicado porque o cuidado necessário é de não “patologizar” esse autor, ou seja, atribuir Não falar sobre a cultura do estupro e manter o tabu sobre sexualidade na Educação é um erro, na opinião de Thiago Apolinárioa ele uma condição de transtorno mental e, assim, redimi-lo de suas responsabilidades. Os dois extremos preocupam: tanto atribuir a violência a fatores puramente psiquiátricos, dizendo que o homem tem um problema mental, por isso, agrediu, quanto dizer que, de alguma maneira, ele também sofre pressões para exercer uma masculinidade forte e prover porque, longe de querer não responsabilizar o agressor, mas isso acontece também, o que não justifica a violência, claro. Dada a criminologia da violência — de que uma em cada três mulheres foi vítima —, é preciso refletir sobre o que está acontecendo com esse homem, mas também tomar o cuidado de não cair na armadilha de atribuir tudo isso apenas ao fator cultural, que vivemos em uma sociedade patriarcal e machista que viabiliza o estupro porque, senão, some o sujeito. 

Najla: Há algum tratamento para os autores da violência contra a mulher?
Thiago:
Acredito que esse homem deve ter algum tipo de acolhimento psicossocial para identificar as muitas dimensões da vida que contribuíram para que ele tenha esse comportamento violento, incluindo o aspecto sociocultural, mas também o psiquiátrico, em alguns casos, como o uso de álcool e drogas, que desencadeia a violência e outras condições, como a pedofilia ou algum transtorno de humor, caso da depressão. Se esse homem teve algum tipo de acolhimento e escuta, com identificação de algum transtorno psiquiátrico, ele deve ser tratado, mas, mesmo quando não há um diagnóstico clínico, é preciso ampliar a avaliação situacional para identificar as fragilidades do indivíduo relacionadas à dificuldade de lidar com pressões, a estar submetido a uma hierarquia também violenta no trabalho ou na família ou mesmo por não conhecer outra linguagem, outra forma de se relacionar, ter dificuldade em lidar com frustração ou com a questão da posse, necessitando estar no controle sobre  a mulher ou, ainda, a dificuldade de lidar com a impulsividade, com o não e com o ciúme patológico. Muitos homens violentos são muito frágeis do ponto de vista psicológico, possuem uma insegurança muito grande e precisam exercer o controle para existirem como sujeito, têm dificuldade de criar vínculos, não conseguem se controlar ou lidar com a individualidade do outro. Tudo isso requer cuidado.

Najla: O uso abusivo de álcool e de drogas têm relação com episódios de violência?
Thiago:
Sem dúvida, esses são aspectos potencializadores, mas não se pode cair no simplismo de colocar como causas da violência porque, mesmo no abuso, estão dentro de uma estrutura maior que inclui a busca de satisfação imediata, a falta de repertório de socialização, a falta de lazer, ou seja, mesmo esses fatores têm algo por trás, mas são, sim, fortes desencadeadores.

Najla: Temos, atualmente, abordado muito a cultura do estupro. O que seria isso?
Thiago:
A cultura do estupro é, justamente, esse conjunto de ideias que normativa a violência e o estupro, o que inclui a negação da violência, a “objetificação” do corpo da mulher, a “culpabilização” da vítima. Não falar sobre isso, manter o tabu de que isso não pode ser dito ou trabalhado na Educação é um erro. Para prevenir que a violência se estruture é necessário atuar nas escolas. Meninos e meninas precisam compreender a sexualidade e aprofundar as questões de comportamento. O menino precisa aprender que não é porque a menina está usando uma roupa justa ou curta que ele pode avançar sobre ela sem consentimento. Da mesma maneira que não podemos atribuir apenas a transtornos mentais a questão do agressor, também não podemos atribuir a violência — que é um problema multidimensional — à cultura do estupro. Corremos o risco de não enxergar o autor e dizer: “ah, ele é fruto de uma cultura machista e patriarcal”. Está errado apagar o sujeito da ação, como se ele não pudesse pensar nas escolhas que fez e se responsabilizar por seus atos. Trata-se de um paradoxo um conceito que tanto pode ajudar a pensar as barreiras do sistema como, por outro lado, pode favorecê-lo, na medida em que torna o sujeito mero fruto da sociedade. 

A jornalista Yara Racy acompanhou os convidados na conversa sobre violênciaNajla: Quais são os impactos da violência na saúde física e mental das mulheres?
Thiago:
Muitas mulheres vítimas de violência crônica desenvolvem diversas doenças mentais, como depressão, ansiedade, pânico e estresse pós-traumático, que prejudicam a capacidade de desenvolvimento. Há, também, mulheres que chegam ao atendimento com queixas clínicas vagas e inexpressivas, que não têm equivalente orgânico — quer dizer, não são identificadas por meio de exame —, e acabam recebendo o rótulo de ‘poliqueixosas’, ou seja, de pessoas que se queixam demais, apresentam somatização, buscam frequentemente atendimento clínico, quando, na verdade, podem estar sofrendo por uma questão crônica de violência difícil de reconhecer, mas expressa no corpo. Um outro extremo seria a negligência com relação à própria saúde, relacionada  à autoestima baixa e à “objetificação” do corpo do mulher. 

Najla: Quais são os serviços disponíveis para o atendimento da vítima de violência no município?
Thiago:
No caso do estupro, a unidade de emergência é a porta de entrada da paciente. Ela recebe todas as prevenções e acolhimento social. A mulher é encaminhada ao HC Campus e, após avaliação médica e psicológica, segue para o Seavidas. O serviço, que começou em 2000, como um grupo de estudos e se consolidou através do esforço de vários profissionais, oferece atendimento médico, psiquiatria, psiquiatria infantil, infectologia e pediatria, psicologia e serviço social. Prestamos atendimentos individuais e em grupos para crianças e mulheres que precisam de uma atenção terciária. A entrada no Seavidas acontece pela Saúde e, quando a situação não chega pela emergência, vem pelas unidades básicas.

Najla: Na sua opinião, os serviços disponíveis no município são suficientes ou podem ser melhorados? Como?
Thiago:
Como é um problema multifocal, a violência deveria ter os atendimentos organizados em uma rede. A fragmentação da ação revitimiza a mulher, que tem que expor sua situação diversas vezes, para a assistente social, o médico, o psicólogo. Isso também reduz a resolutividade dos casos. As ações devem ser integradas com o trabalho conjunto dos diversos equipamentos: Centro de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS); representantes da Saúde nos diversos níveis, desde a Atenção Básica; Delegacia de Defesa da Mulher e equipes do Fórum e Terceiro Setor. Também gostaria de incluir as Universidades — porque correspondem a um espaço onde existe violência, em diferentes níveis, e as pessoas fogem do tema —, um lugar de Educação também para os adultos. O município conta com a Coordenadoria da Mulher, o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, o Fórum, o Seavidas (serviço do Hospital das Clínicas que atende 26 municípios da região) e também existem trabalhos realizados pelas ONGS. É necessário que os diversos elementos dessa rede se articulem, todos precisam estar capacitados e unidos para discutir e atuar neste campo. 

Um bom exemplo

“Acredito que um dos meios de uma mulher que está sendo vítima de violência romper o silêncio e procurar ajuda seja através da informação. Os meios de comunicação precisam assumir esse compromisso de responsabilidade social e com os direitos humanos. Como advogada tenho como principio a defesa dos direitos e defender os direitos das mulheres é o que me motiva todos os dias. Noto que os movimentos feministas não são somente o assunto do momento, mas tenho convicção de que estamos dando grandes passos em busca de uma sociedade mais justa e igualitária, livre de todo e qualquer preconceito e machismo. Essa oportunidade criada pela Revide, através da entrevista  com o doutor Thiago Dornela Apolinário, especialista no tema sexualidade, exemplifica bem tudo isso”
Najla Ferraz, advogada.

Texto: Yara Racy
Fotos: Júlio Sian

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