Uma nova vida

Uma nova vida

Em busca de suas verdadeiras identidades, pessoas trans se assumem em uma sociedade preconceituosa e contam suas histórias de luta pela liberdade de serem quem são

A estilista de moda e costureira Yasmin Cristina de Carvalho Lima “nasceu” em 2020, aos 18 anos. Ela foi rebatizada por sua mãe após revelar que nunca se identificou com o gênero masculino e que era uma travesti. A auxiliar administrativa Rosa Carvalho Lima deu todo o suporte emocional que sua filha precisava. E, mais do que isso: deu a ela o nome feminino. Ali, uma nova vida começou. “Decidi viver minha verdade de gênero em 2020. Em um curso, a diretora me olhou no meio do auditório lotado e perguntou meu nome. Respondi meu nome morto (masculino) e ela falou ‘Quero saber seu nome de verdade’. Foi aí que percebi que alguém finalmente me viu e que não poderia mais me esconder”, conta. Aos 14 anos, o estudante Diogo Lys percebeu que não se identificava nem com o gênero masculino e nem com o feminino. Foi com a namorada Yasmin que ele conseguiu entender como se sentia e agora, aos 18 anos, é um trans não binário. “Não me limito em nenhum dos dois gêneros”, detalha. A cabeleireira e maquiadora Junnyper Policarpo Milani Mendes, de 21 anos, não entendia o porquê de não gostar de seu corpo e seu nome. Até que, em 2020, mudou-se para Ribeirão Preto e começou a vivenciar sua liberdade. “Vivia em um limbo. Não era masculino demais para ser homem e nem feminina demais para ser mulher. Me identifiquei por alguns meses como uma pessoa de gênero fluido, transitando pelos dois gêneros. No final de 2021, dei início à terapia hormonal e, desde então, vivo de acordo com o gênero que me identifico. Sou uma mulher trans”, explica.

Yasmin, Diogo Lys e Junnyper são pessoas trans. Segundo a psicóloga Rafaela Beraldo Modé (CRP-SP 06/142235), quem possui uma identidade de gênero que não corresponde ao designado ao nascer é transgênero. Ela afirma que identidade de gênero e sexo biológico se confundem, mas são conceitos diferentes. “Identidade de gênero é uma construção social e não está relacionada ao sexo biológico. Eu nasci com o sexo biológico masculino, mas me identifico como mulher. Mas o que é ser mulher e o que é ser homem? Essas identidades vivem em constante modificação conforme a sociedade se transforma. Ser homem ou mulher no século XVII não é o mesmo que ser homem e mulher nos tempos atuais”, comenta. A psicóloga esclarece que o processo para se entender como trans depende de cada indivíduo, mas que o primeiro passo é encontrar uma rede de apoio. “Isso vai dar a base de sustentação para seguir adiante. Depois, dependerá do que a pessoa sente que precisa”, descreve. Ela recomenda acompanhamento psicológico para dar suporte para lidar com o preconceito social que a pessoa trans terá de enfrentar. “Inclusive o próprio preconceito, que está internalizado por conta da educação que recebeu socialmente. Além de lidar com a resistência por parte da família, dos amigos, da própria sociedade. A transfobia da nossa sociedade é cruel e isso adoece”, lamenta.

Rafaela conta que, desde os 6 anos, se entendia como alguém diferente. “Mas mantive isso escondido, pois as informações que possuía sobre pessoas transgêneras estavam relacionadas a situações de vulnerabilidade social e isso me amedrontava. Passei a adolescência em um estado depressivo constante, por conta da sensação de inadequação social”, diz Rafaela. Aos 47 anos, percebeu que não dava mais para fugir de seu destino. Com a psicoterapia, conseguiu sair do casulo. “Busquei a minha rede de apoio e segui. Fiquei com medo de perder meus pacientes no consultório, mas todos lidaram muito bem com a mudança. Ser quem se é traz uma sensação indescritível”, completa.

CORAGEM

Para a professora de Arte, coordenadora pedagógica da Diretoria de Ensino Região de Ribeirão Perto, mestranda em Educação Sexual e militante da causa trans, Maria Fernanda Ribeiro Pereira, ser transexual é ter a coragem de romper com o padrão social cisgênero esperado para o comportamento. Ela detalha a diferença entre orientação sexual e identidade de gênero. “A orientação sexual é como as pessoas se relacionam com o outro e está ligada à afetividade e às práticas sexuais. É reconhecido como heterossexual quem se relaciona com gêneros opostos, homossexual quem se relaciona com gêneros iguais e bissexual quem se relaciona com os dois gêneros. As pessoas costumam perguntar: ‘Por que atratividade e afetividade por gênero e não por sexo biológico?’. Porque a determinação do que é ser homem e ser mulher não está ligada somente aos órgãos genitais, e sim, ao comportamento social e como a pessoa se reconhece e se apresenta enquanto identidade”, reitera. Fernanda explica que se compreende como menina desde nova, o que trouxe muitos problemas de relacionamento ao ingressar no universo escolar. “Sabendo que é o primeiro lugar em que aprendemos a conviver em sociedade, para mim a escola foi um ambiente violento e excludente. Ser travesti nessa sociedade é um ato de resistência e coragem. Ocupar o espaço de educadora e professora proporcionou a todos à minha volta a desconstrução do estigma imposto sobre as pessoas trans. Hoje, consigo transformar as vidas dos meus alunos promovendo a consciência de que ser diferente é legal e que todos somos diferentes”, desabafa.

Em Ribeirão Preto, a ONG Arco-Íris faz o acolhimento da população LGBTQIA+. Segundo o coordenador Fábio de Jesus, está para ser inaugurado no município o Centro de Cidadania LGBT. Enquanto isso, ele conta que a ONG faz os atendimentos e o papel do Poder Público. “Fazemos encaminhamentos aos órgãos de competência e denunciamos violações de direitos humanos. No mês passado, fizemos um mutirão de retificação de nome e gênero em parceria com o Núcleo de Práticas Jurídicas da Estácio. Também damos apoio na questão psicológica, encaminhando para nossos parceiros, e para a questão hormonal temos o Ambulatório de Sexualidade Humana do Hospital das Clínicas. Para quem está em situação de vulnerabilidade, entregamos cestas básicas”, comenta Fábio. Ele argumenta que faltam mais políticas públicas para a população trans, especialmente cursos profissionalizantes para colocar essas pessoas no mercado de trabalho. Fábio indica que o acolhimento de família e amigos é essencial. “Manter o diálogo e a proximidade com pessoas trans é o melhor caminho para quebrar tabus na sociedade. Quando a pessoa trans tem o amor da mãe, do pai, de um tio, de uma amiga, ela tem cidadania”, reforça.

SONHOS
Diogo Lys, Yasmin e Junny superam preconceitos e encontraram uma nova vida ao se assumirem como pessoas trans
Para Yasmin, Diogo Lys e Junnyper, a vida é feita da idealização de sonhos, na esperança de um mundo mais gentil. Yasmin lembra que um dos momentos mais felizes após a transição foi se olhar no espelho e se enxergar de verdade. “Quando aceitei meu corpo como ele é, depois de um processo doloroso, me ajudou a entender e amar minha beleza trans”, recorda-se. Seu maior sonho é cursar faculdade de Moda e ser estilista com seu ateliê. “Meu maior desejo é que parem de nos deslegitimar como pessoas e que nos entendam”, afirma. Diogo Lys conta que seu maior sonho é ser professor. “O mundo ideal tem pessoas mais empáticas. Espero que possam nos respeitar, além de respeitar nossas escolhas e nossa liberdade. Não há nada mais humano do que lutar por sua liberdade de escolha”, define. 

Junnyper diz que, recentemente, sua mãe a apresentou como filha e está se adaptando a chamá-la de Junny, seu apelido. “Entendo meu corpo e a minha existência como um ato político. Sou luta, força e resistência. Meu sonho é quebrar as barreiras que a nossa sociedade impõe. Profissionalmente, quero trabalhar com moda e maquiagem, voltada para a área artística”, explica. Ela diz que seria bom se a sociedade entendesse que as pessoas escolhem apenas viver a própria vida, mas não escolhem orientação sexual, identidade de gênero, sexo, cor, etnia, parentes e condições sociais. “Ninguém escolhe sofrer, apanhar, ser ameaçado, ter de viver nas sombras, com medo da reação e do ódio das pessoas. A intolerância, o ódio e o preconceito matam todo dia”, alerta. 


Fotos: Luan Porto e Arquivo Pessoal

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