As paixões de Tilde

As paixões de Tilde

Aos 86 anos, a filósofa, psicóloga e pesquisadora Maria Clotilde Rossetti Ferreira se tornou referência acadêmica em seu ramo, além de conciliar os desafios da maternidade

Para  todos que a reverenciam como uma das principais autoridades brasileiras em desenvolvimento humano e educação infantil, a filósofa, doutora em Psicologia, professora e pesquisadora Maria Clotilde Rossetti Ferreira é tratada como “professora”. Para o grande parceiro de vida e amigos próximos, porém, ela sempre foi apenas Tilde, mulher vigorosa que cumpriu com paixão todos os papéis que assumiu em seus 86 anos de vida. Ribeirãopretana por escolha e adoção, Clotilde nasceu em São Paulo em 29 de setembro de 1936, no bairro Higienópolis, numa rua onde moravam 19 primos das duas famílias. “Era uma farra. Na casa de quem a gente estivesse na hora das refeições, a gente comia”, lembra.


A mãe, de uma família “quatrocentona” de São Paulo era do lar e extremamente culta. O pai, nascido quando os avós italianos de Clotilde haviam acabado de imigrar para o Brasil, formou-se em Medicina na Europa, mas exerceu sua carreira como dermatologista no país, em consultório próprio e no Instituto Adolfo Lutz, tendo sido também um dos fundadores da Escola Paulista de Medicina. Ambos valorizavam a educação e fizeram questão que todos os quatro filhos tivessem o melhor ensino possível. A menina Tilde estudou, do Fundamental ao Ensino Médio no mesmo colégio que a mãe, das cônegas belgas de Santo Agostinho, conhecido como Des Oiseaux (‘as passarinhas’ em francês). “Era uma escola de irmãs belgas só para meninas. Ali, se a gente quisesse conversar tinha que conversar em francês. Então foi minha segunda língua”, conta.

 

FACULDADE


Quando chegou o momento de escolher uma faculdade, Clotilde ficou indecisa entre Matemática, disciplina em que tinha muita facilidade, e Filosofia – porque ainda não havia o curso de Psicologia no Brasil à época. Como gostava de trabalhar com gente, escolheu cursar Filosofia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), entre 1954 e 1958. Universitária, engajou-se em movimentos estudantis. O despertar de seu interesse pela educação infantil surgiu em uma experiência de trabalho que teve ainda antes de se graduar. Como professora de filosofia no Colégio Sion, em São Paulo, fez um curso sobre o método Montessori-Lubienska para crianças. “Eu me inscrevi, fiz e me apaixonei. Acho que minha paixão por criança pequena devo a isso”, afirma.


Também no período de faculdade ocorreu seu grande encontro da vida, com o então estudante da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) Sérgio Henrique Ferreira, dois anos mais velho. Foi em um congresso da União Estadual dos Estudantes (UEE), na década de 1950. Quando começaram a namorar, não se largaram mais. Casaram-se em 29 de junho de 1961, ambos graduados e já trabalhando – ela como professora em São Paulo, ele em pesquisas do médico farmacologista Maurício Rocha e Silva, já na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP. Compartilharam, desde então, 58 anos de amor e parceria até Sérgio falecer, em 17 de julho de 2016, de uma pneumonia bacteriana não especificada. 
 

CARREIRA E FILHOS

Após se casar, Clotilde se mudou para Ribeirão Preto aos 24 anos. Vieram morar em uma casa confortável à rua Artur Bernardes. Sérgio assumiu cargo de pesquisador na área de farmacologia da FMRP-USP, mas Clotilde chegou sem contato profissional nenhum. Inquieta, decidiu embarcar numa oportunidade surgida para o marido: o curso Estatística Aplicada às Ciências Médicas e Biológicas, financiado pela Organização Mundial de Saúde, que duraria um mês na Faculdade de Saúde Pública, em São Paulo. “Eu falei: ‘não vou ficar em Ribeirão sozinha. E também não vou ficar em São Paulo a ver navios. Vou ver se me aceitam como aluna no mesmo curso”, conta. Aceitaram, e ela se saiu muito bem. Tanto que foi convidada a ingressar no Departamento de Matemática da FMRP-USP. Declinou, pois sua paixão era a psicologia. Quando o então Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da mesma universidade a convidou, porém, não teve dúvidas. Ingressou como professora para dar aulas de Psicologia no primeiro e segundo anos de Medicina e supervisionar exames do terceiro.
 


Isso tudo foi em 1962, mesmo ano em que deu à luz a Fernando, o primeiro filho. Quando viu o trabalho que dava ser mãe, Clotilde disse ao marido que mudaria sua carga horária na faculdade de integral para parcial. Ele não deixou. “Tilde, eu te conheço. Você vai trabalhar tanto como em período integral e ganhar menos. Eu te ajudo. Se não der certo, a gente pensa”, disse ele. E deu certo. Sérgio tornou-se o cozinheiro da família, entre outras coisas. Quando chegou o segundo filho, Marcos, em 1963, o casal já estava estruturado. Ainda conseguiam manter uma vida social. Costumavam reunir estudantes em casa e, embora nunca tenham se filiado a nenhum partido, discutiam e se posicionavam politicamente em público. Eram influenciadores entre os jovens e tinham amigos engajados. 


Quando veio o golpe militar, em 1964, a vida começou a ficar difícil no país. No mesmo ano, o casal protagonizou dois episódios em que teve de ajudar amigos a fugir de perseguição da ditadura, o que os colocou também na mira. Em um deles, Sérgio levou o médico Pedro de Azevedo Marques para o posto do seu tio, enquanto Clotilde levava a esposa dele para a fazenda de sua mãe. Depois, ela teve que enfrentar 24 horas de interrogatório numa delegacia. No outro episódio, Clotilde vinha da faculdade para amamentar Marcos quando foi surpreendida por um investigador aguardando pelos hóspedes em sua casa, os médicos pesquisadores Michael Rabinovitch e Luiz Hildebrando Pereira da Silva, que participavam na cidade de um congresso da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. A professora conseguiu distrair sua atenção e enviar uma pessoa que trabalhava em sua casa ao orelhão para avisar o marido, que ajudou os colegas. Visado pelo regime, o casal foi aconselhado por muitos a deixar o país. Clotilde e Sérgio conseguiram um afastamento com vencimentos da USP e partiram em agosto de 1965 para Londres.

 

AUTO-EXÍLIO


Sérgio partiu já com uma bolsa de pós-doutorado garantida no Royal College of Surgeons. Grávida de Bia, que nasceu em 1965, Clotilde chegou sem perspectivas profissionais. Inquieta, porém, logo começou a trabalhar para o centro psicanalítico Tavitock Institute of Human Relations. Foi lá que uma psicóloga norte-americana, supervisora sua, lhe aconselhou a fazer mestrado ou doutorado e lhe indicou quem procurar. Clotilde se inscreveu para seu primeiro mestrado e sua tese “A Interação mãe-criança antes e depois de um segundo filho ter nascido” rendeu muitos elogios, pois contribuiu para a criação de uma metodologia observacional. 


Foi assim que, em menos de dois anos, Clotilde defendeu uma tese em outra língua e pariu uma filha cuidando de dois meninos pequenos. Ainda emendou um doutorado. Perto da defesa da tese, porém, ficou cansadíssima, com vontade abandonar tudo e voltar para o Brasil, mas foi o marido quem, novamente, a impediu. “O Sérgio dividia as tarefas e dava muito apoio também na tese. Até arranjou um rapaz para me ajudar no inglês. Era um verdadeiro parceiro!”, suspira, saudosa.



Em 1967, o casal começou a ouvir que, com o presidente Castelo Branco no poder, as coisas estavam melhorando no Brasil. Iludidos, decidiram voltar para Ribeirão e seus cargos na USP. Na retomada, Clotilde começou a montar o primeiro Laboratório de Observação (de relação mãe-criança) do Brasil no Espaço Cultural de Extensão Universitária, da Faculdade de Medicina. “Eu, que cheguei magérrima e cansada, fui me recuperando e começando a ter estudantes para orientar. Estava se formando a Faculdade de Filosofia no campus da USP e ajudei em alguma coisa nisso também”, lembra. 


Mas a ilusão de estabilidade durou pouco. Em 13 de dezembro de 1968 Ato Institucional nº 5 reprimiu ainda mais as liberdades individuais dos brasileiros. “Nós tentamos nos equilibrar, porém as perseguições começaram. Nosso telefone foi grampeado, a gente era seguido, onde a gente ia na cidade tinha gente atrás”, conta Clotilde. Ainda assim, o casal demorou a voltar para a Inglaterra. Partiu de novo em 1970, desta vez afastados sem vencimentos de seus cargos na USP e deixando uma casa recém-construída no bairro Sumaré. Sérgio já tinha lugar para trabalhar. Clotilde não, mas de novo ela não se acomodou. Começou a frequentar seminários aqui e ali e a pegar alguns casos clínicos como psicóloga na Tavistock.

 

PERTENCIMENTO


Pouco tempo depois Clotilde arranjou emprego, pago pelo Social Science Research Council, como psicóloga numa pesquisa sobre 60 famílias com crianças de 1 a 3 anos, acompanhando o desenvolvimento das relações de apego. Encarregada de escolher novos técnicos para se juntarem ao trabalho, percebeu, avaliando 120 currículos com cartas de recomendação, que faltava aos candidatos expectativa e investimento no país deles. Isso ficou em sua cabeça.


Conforme o tempo passava, Clotilde também notava que seus filhos não eram considerados ingleses, mesmo dominando completamente a língua e tudo o mais. “Sempre seriam tratados como estrangeiros. Então, sabe quando você quer trazer os filhos de volta para seu país para se formarem como brasileiros e contribuir aqui? Questão de pertencimento. E também para trazer nossa contribuição para o Brasil”, raciocinou. Desta vez foi Clotilde quem convenceu Sérgio a voltar. “Se ele tivesse ficado, talvez tivesse ganho o Nobel com o trabalho dele, mas topou voltar por mim”, narra.


Retornaram em 1975 para Ribeirão Preto e as crianças se readaptaram muito bem. Mas novamente Clotilde chegava desempregada, já que foi desligada da USP em 1972, após ter liderado, mesmo de longe, um movimento contrário a uma junção dos departamentos de Psicologia Médica e Psiquiatria com a Neurologia, que acabou acontecendo. Recebeu convites para trabalhar como psicóloga em consultórios de Pediatria, mas sua vocação acadêmica prevaleceu. Em 1976 prestou concurso, e passou, para assumir um cargo de professora da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da mesma USP Ribeirão.

 

CINDEDI


Na FFCLRP-USP, após um breve tempo envolvida em estudos sobre desnutrição infantil, Clotilde passou a trabalhar na área de atendimento clínico. “Atendia muito filho de professor e crianças do HC [Hospital das Clínicas] e me caiu a ficha de que ali tinha um investimento grande para elas melhorarem, mas as condições que as levaram àquela situação permaneciam para um monte de outras crianças. Isso me levou a mudar da área clínica para a de prevenção. Foi quando comecei a estudar muito mais desenvolvimento humano e educação infantil”, conta.


As condições às quais se refere não tinham a ver só com desigualdades sociais, mas também com métodos de ensino, organização e parâmetros de qualidade para a educação infantil, que, percebeu, poderiam melhorar. Para trabalhá-las, Clotilde passou a fazer pesquisas em creches, onde observou uma série de problemas que acabaram por fazê-la reformular até suas próprias teorias sobre o assunto. "Uma das coisas que achávamos importante na educação infantil era a interação adulto-criança. O foco era se ter um tipo de cuidado materno substitutivo, fazendo com a criança como faríamos com um irmãozinho ou filho”, lembra. Mas uma experiência empírica numa creche, em que observou mães desesperadas aguardando para pegar suas crianças, fez a educadora constatar que o contexto da educação infantil exigia outra abordagem. “Me caiu a ficha que a gente tinha que pensar de outra forma, favorecendo a interação criança-criança. Também teríamos que pensar no tempo de espera das crianças em cada atividade, organizar seu espaço”, explica.


Dentro desse novo olhar, Clotilde criou, em 1977, em seu departamento na USP o Cindedi (Centro de Investigações sobre Desenvolvimento Humano e Educação Infantil). Das pesquisas que passou a orientar ali surgiram várias contribuições para o estabelecimento de novas metodologias e parâmetros de qualidade para a educação infantil. O que equivale a dizer que, como educadora e pesquisadora, Clotilde ajudou a revolucionar o ensino infantil no Brasil.
 

REVERÊNCIA


Hoje aposentada como professora titular e emérita da FFCLRP-USP Ribeirão, Clotilde segue colhendo homenagens pela vida de dedicação ao desenvolvimento humano na primeira infância, fase mais delicada da vida, onde costuma se formar o caráter e também os traumas que se leva para a vida adulta. Prova de que seu trabalho é valorizado mundo afora é que, antes da pandemia, Clotilde foi entrevistada por uma professora de Amsterdã (Holanda) para um projeto que fazia junto com outra australiana, de entrevistar pioneiros da educação infantil no mundo. 


Na homenagem mais recente, recebida no campus da USP, Clotilde destacou, em seu discurso, algumas das principais premissas a serem seguidas por quem segue trabalhando com o tema. Entre elas, a de que não há um programa de educação infantil adequado para toda e qualquer comunidade. Então, não adianta importar/impor modelos bem-sucedidos em um local de origem a comunidades com outras realidades. E se a comunidade não é ativa na formulação do Plano de Política Pedagógica será difícil levá-lo adiante. “E educação infantil é sempre um acordo de parceria entre a creche e a família. Um outro ponto que eu destacaria é que educar e cuidar são atividades indissociáveis. Não é possível separá-las”, disse. 


Foto: Luan Porto

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