Permanentemente conectados

Permanentemente conectados

Mudança da internet discada para a banda larga trouxe avanços, mas também consequências preocupantes como a necessidade em estar ligado ao mundo digital 24h por dia, sete dias da semana

"Eu era uma leitora assídua, lia pelo menos um livro por semana. Hoje, esses momentos se tornaram mais raros. Com o uso das redes sociais, tenho demorado mais para ler um livro do início ao fim”. O depoimento é da jornalista e atriz Letícia Agostinho, de 27 anos. Assídua usuária do telefone celular, ela se mantém permanentemente conectada (e atenta) ao universo on-line e faz parte de uma tendência comportamental denominada por alguns estudiosos de “conexão perpétua”. Traduzindo: gente que não se desconecta nunca. O termo utilizado pela jornalista Issaaf Karhawi, doutora em Ciências da Computação pela Universidade de São Paulo (USP), está relacionado ao avanço da tecnologia e, especialmente, da internet discada para a banda larga. A primeira dependia da presença física, o ligar e o desligar do computador. Já a segunda está na palma das nossas mãos, nos aparelhos celulares, tablets e semelhantes que nos acompanham 24h por dia, sete dias da semana. “Não existe mais dissociação entre on-line e off-line. Não dá para ‘entrar’ na internet como a gente costumava dizer. Sair então...”, afirma Karhawi em um depoimento em sua rede social onde chama a atenção para as conexões perpétuas.

 

 


Letícia diz que é bastante ativa nas redes sociais e as utiliza tanto para entretenimento quanto para o trabalho, mas admite que perdeu o controle durante e após a pandemia de Covid-19. “Até o começo da pandemia, eu era uma pessoa bem controlada, conseguia fazer atividades extras que não envolviam o celular. Depois da pandemia, fiquei extremamente conectada. Acordo e durmo com o celular na mão”, conta. “Se estou assistindo TV ou até mesmo me alimentando, estou checando o celular, vendo notícias, conversando com alguém, navegando pelas redes sociais”, descreve. No final de 2018, a situação de estresse e esgotamento de Letícia chegou a um extremo, muito por conta do trabalho no qual ela estava envolvida, o que a levou a ficar internada em um hospital por uma semana. Por orientação médica, Letícia foi obrigada a ficar off: sem celular, sem televisão, desconectada do mundo externo. “Um dos motivos dessa internação foi o excesso de informação. No início, foi terrível ficar sem o celular, me sentia alheia ao mundo e tinha uma necessidade desesperadora de saber o que estava acontecendo. Percebi que não havia muito o que fazer e entendi a necessidade de passar por aquele momento de desconexão”, lembra.

 

 


Da experiência, um aprendizado. Letícia diz que hoje tem consciência dos limites, está mais comedida no uso do celular e adotou algumas “técnicas” para não cair mais na armadilha da conexão perpétua. Ela filtra conteúdos que vai consumir na internet, deixa o celular de lado em alguns momentos específicos e está procurando adotar uma rotina mais saudável. “Vou tomar uma xícara de café, por exemplo, e deixo o celular de lado. São pequenas mudanças, mas importantes para levar uma vida menos conectada. Sei que sou uma exceção porque aprendi, a duras penas, a prezar pela minha saúde mental. Consigo identificar gatilhos que me levam à superconexão. Não é fácil, até porque estar presente e conectado é uma exigência dos dias de hoje, especialmente no trabalho. Mas, sigo tentando. Acredito que chegará um tempo em que o extremo cansaço mental vai levar um número maior de pessoas a procurar ajuda”, prevê.
O levantamento Digital 2022: Global Overview Report, da consultoria estratégica Kepois, revela que há 4,6 bilhões de usuários de redes sociais em todo o planeta (cada um dos usuários não significa, necessariamente, um único indivíduo). O número é 10% maior que o registrado em janeiro de 2021. No Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há 171,5 milhões de usuários ativos nas redes sociais, um crescimento de 21 milhões de usuários de 2021 para 2022.

 

 


Navegar nas redes, assistir filmes, fazer compras, interagir socialmente, trabalhar, estudar e se divertir. Está tudo na palma da mão. E lá se vão horas e mais horas diárias com os olhos fixos na tela brilhante e quase hipnótica do celular. São, em média, quase cinco horas e meia, por dia, diante dos aparelhos de smartphone, segundo relatório da App Annie, empresa de análise de mercado. Considerando uma noite de sono de oito horas, o brasileiro passa mais de um terço do tempo que está acordado interagindo com o celular. Os números são relativos ao ano de 2021. “Sou fã número 1 da conexão em banda larga e móvel, não é saudosismo. Por sinal, foram os celulares que mudaram nossa forma de conexão, mas a conexão 24/7 é sinônimo de uma exposição infinita a conteúdos. E daí vem a ‘infoxicação’ pelo excesso de informação que gera estafa, um cansaço que nem conseguimos nomear (afinal, não é resolvido com o nosso descanso, quase sempre, conectado)”, salienta Issaaf Karhawi. “Tenho zero saudades da internet discada, mas estou bem interessada em pensar formas de desconexão ou desaceleração. Está longe de ser privilégio ou luxo. É necessidade e urgência”, frisa.

 

 

 

Recurso de fuga

 

 


A internet, as redes sociais e as conexões propiciadas por ela não devem ser vistas como vilãs, mas sim o uso que cada pessoa faz dessas ferramentas tecnológicas. Para a psicóloga Bruna Lopes Meghelli, não há um adoecimento específico relacionado à conexão ao universo on-line e sim sintomas que se formam a partir do uso excessivo dessas conexões. “Vejo muito na clínica pessoas lidando com incômodos e, ao invés de formularem uma questão interna a partir desses sentimentos e procurar compreendê-los, vão para a rede social. Está triste, vai para o celular; está cansado, vai para o celular; está entediado, vai para o celular. O aparelho vem se tornando um recurso de fuga, um ‘apagamento’ do sujeito. Ele é bombardeado de informações, muitas das quais não são processadas, apenas consumidas”, observa a psicóloga, para quem o mau uso da internet não é o responsável isolado desse estado de exaustão crônico e naturalizado, e sim reforçado por outras questões externas.

 

 


Mas, o que fazer com o tédio, aquele estado de vazio do qual tanta gente tem medo? Para Bruna, há uma grande diferença entre tédio e ócio, sendo o segundo extremamente necessário e importante. O ócio é um momento de descanso mental, abertura para a criatividade e para a formulação de respostas a questões internas. “É no ócio que nos desligamos e podemos inventar saídas para a sensação de mal-estar. No ócio, entramos em contato com nossas emoções, criamos espaço para os sentimentos e nos dedicamos a outros aspectos da vida que passam despercebidos quando estamos permanentemente conectados, como a família e os amigos, por exemplo”, ressalta. “O excesso de conexão também dificulta o enfrentamento aos sofrimentos. É uma forma de não lidar, de não entrar em contato com o desconfortável. É preciso criar outros espaços de vida, de pausa, descontinuidade, descanso e desligamento. É preciso aprender a se separar dessa postura on-line ao tempo todo. A terapia, em muitos casos, pode ser de grande ajuda se a pessoa sente que não consegue atravessar esse processo sozinha”, orienta. 

 

 

 

Dicas para se desconectar

 

 

Desconectar faz parte de um processo que pede esforço, paciência, tempo, dedicação, consciência e, sobretudo, mudança de hábitos. Algumas dicas básicas da jornalista Michelle Prazeres, idealizadora do movimento Desacelera São Paulo, que fazem parte de uma entrevista concedida a Mateus Camillo, do jornal Folha de São Paulo:

 

 

• Tirar as notificações das redes sociais e do que não é urgente e muito importante;

 

 

• Estabelecer horários para se conectar e estar on-line;

 

 

• Não precisa ficar ausente por muitos dias, mas ter pequenos momentos de desconexão ao longo do dia;

 

 

• Criar um filtro para conteúdos que são e que não são necessários;

 

 

• Não aderir a uma tecnologia só porque é moda e todo mundo entrou; 

 

 

• Não precisa responder e-mails e mensagens na hora e estar sempre on-line, disponível;

 

 

• Saber quanto tempo você fica no celular. Os números podem te surpreender (e assustar).

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