Rompendo barreiras

Rompendo barreiras

A intervenção precoce é a fórmula para o sucesso no tratamento de pessoas diagnosticadas com Autismo, uma rotina que requer amor, dedicação e humanidade pelos profissionais, da família e da sociedade

Uma lição cotidiana de superação e amor. Essa é a mensagem que mãe, familiares e profissionais que convivem com pessoas diagnosticadas com Transtorno Espectro Autista (TEA) transmitem para aqueles que perguntam sobre seu cotidiano. Mesmo quando um casal tem um filho que não apresenta nenhum problema emocional ou físico, é impossível não temer pelo futuro dele, por sua adaptação ao mundo, pela incompreensão e pela intolerância humana. No caso dos casais que vivem a realidade do autismo, esse temor é ainda mais forte, já que as crianças que são diagnosticadas com o TEA têm uma dificuldade de se relacionar com as pessoas e com o próprio universo que as cercam. 

Diante dessa realidade, ensiná-las a se vestir, a ter cuidados com a higiene pessoal e autonomia para alimentar-se e locomover-se com desenvoltura, além de aprender a realizar tarefas de atividades de vida diária, são lutas travadas para que possam conquistar um nível considerável de autonomia. Significam um esforço diário para conquistar segurança, bem-estar e sobrevivência. 

O Transtorno do Espectro Autista é caracterizado por uma combinação de prejuízos na comunicação social — como ausência expressiva na comunicação não verbal e verbal usadas para interação social; falta de reciprocidade social; ou incapacidade para desenvolver e manter relacionamentos de amizade apropriados para o estágio de desenvolvimento —, no desenvolvimento da fala  e por interesses restritos e repetitivos — caso de comportamentos motores ou verbais estereotipados; comportamentos sensoriais incomuns; excessivo apego a rotinas e padrões ritualizados de comportamento; interesses restritos, fixos e intensos, que aparecem antes dos dois anos de idade.
Esses prejuízos, quando presentes em maior ou menor intensidade, determinarão um diagnóstico, que deve ser feito apenas por profissional especializado no atraso do desenvolvimento infantil, como neurologistas, pediatras e psiquiatras especializados no tema. 

Conforme a psiquiatra Gláucia Schiavon Matta Benedicto, as principais alterações observadas em pessoas com TEA são as comportamentais, assim como as mudanças na comunicação e na interação social. As causas do autismo são múltiplas e não definidas. “O estímulo precoce pode ajudar a mudar essas características. Em praticamente todos os casos, a interferência ambiental e familiar é fundamental e, quanto mais precoce, maiores as chances de melhora”, destaca a psiquiatra.

As combinações dessas características são muito amplas e determinam a distância entre os extremos do espectro. Ainda bebês, podem apresentar alterações no sono, deixando muitos pais surpresos com a quietude da criança ou com o choro incessante. Muitos não se aninham e, inclusive, apresentam certa aversão ao contato físico. Outros não imitam os gestos dos pais nem apresentam movimentos antecipatórios. A grande maioria não mantém contato visual, tende a uma forma atípica de olhar e não compartilha um foco de atenção. Ainda é possível observar aparente insensibilidade à dor e forma diferente de andar (na ponta dos pés). A presença de estereotipias e episódios de autoagressão pode acontecer, assim como uma hipersensibilidade a determinados sons e ecolalia (repetição de sons, palavras ou frases).

Os bebês vão desenvolvendo sua comunicação por gestos, mímica, vocalizações e, posteriormente, pela verbalização. Até os dois anos, espera-se que a criança tenha um razoável domínio verbal, falando várias palavras e formando frases curtas. Mesmo que o desenvolvimento seja individual, há uma faixa de evolução que, quando não ocorre, deve ser avaliada pelo pediatra e pelo especialista em desenvolvimento da infância.

Outras características da criança com atraso no desenvolvimento são a falta de  interesse por outras crianças; não aceitar que elas a convidem para brincar;  só gostar de brincadeiras repetitivas, exclusivas, com interesse bem específico e limitado. “Essas crianças dão atenção exagerada aos detalhes, têm repertório restrito de formas, apresentam manias,  rituais, fazem tudo sempre do mesmo jeito, caso contrário, desestruturam-se, ficam ansiosas, inconsoláveis, descontroladas, mostrando angústia intensa e forte desespero”, explica a médica, destacando que a inquietude faz parte do quadro. É fundamental que os pais procurem um psiquiatra ou um neurologista infantil para diagnóstico. Conforme a médica, outros profissionais, como psicólogo, fonoaudiólogo, pedagogo, fisioterapeuta e terapeuta ocupacional, podem contribuir ajudando a compreender a criança e seus potenciais. 

Geralmente, as famílias desconhecem o autismo e, muitas vezes, passam anos sem um diagnóstico preciso, inclusive, pela falta de profissionais especialistas. Cientes do problema, muitas vezes, demoram a aceitá-lo por conta das dificuldades e do medo do futuro. “Diante da TEA, as demandas são inúmeras: encontrar profissionais capacitados, pagar pelo tratamento, encontrar uma escola apropriada (apesar de este ser um direito da criança), sem esquecer a inclusão social, seja pelo preconceito ou pelas limitações impostas pelo comportamento da criança”, comenta a médica. 

Uma das instituições mais procuradas pelas famílias em Ribeirão Preto é a Associação dos Amigos do Autista de Ribeirão Preto (AMA). Conforme a coordenadora geral da ONG, Maria Cristina Carvalho, que iniciou suas atividades em 1988, a AMA atende, atualmente, cerca de 100 pessoas, de 3 a 37 anos, que se dividem entre os períodos matutino e vespertino. Para isso, são despendidos aproximadamente R$ 245 mil ao mês. O atendimento é feito por 71 funcionários, sendo que 41 trabalham diretamente com os autistas. A instituição tem, em média, 30 crianças na fila de espera. 

Apesar do atendimento ser gratuito, a média de custo mensal de cada aluno é de R$ 2.500,00. Para dar assistência a essas famílias, a AMA conta com convênios estabelecidos com os municípios, com o estado e o governo federal. Também possui serviço de telemarketing para arrecadar recursos e se beneficia da Nota Fiscal Paulista. Além de pedagogos, oferece atendimento nas áreas de psiquiatria, psicologia, terapia ocupacional, fonoaudiologia, educação física, assistência social e fisioterapia, enfermagem e musicoterapia, proporcionando, oficinas e inserção digital. O atendimento multidisciplinar favorece sempre o cuidado contínuo e zela, de forma responsável, pelos encaminhamentos necessários.

O jovem Leonardo 

A história de Maria Cristina na AMA começou em 1995, com Leonardo, seu filho autista de 29 anos. Formada em Química e pós-graduada em Química Orgânica, abandonou todas as atividades pelo filho. Na época, nenhuma escola regular aceitava crianças autistas. “Ele era hiperativo e dava um trabalho enorme. A AMA me ajudou muito a cuidar do meu filho”, conta a coordenadora, ressaltando que, atualmente, o rapaz frequenta academia, é tranquilo, carinhoso e muito colaborativo.

Participando da diretoria da Instituição desde 1997, Maria Cristina se apaixonou pelo que faz e comemora a cada vitória. “Muitos dos atendidos já receberam alta por tornarem-se independentes e isso é muito gratificante, cada conquista traz grande alegria porque a síndrome é muito complexa, não é fácil trabalhar com o autismo”, revela a coordenadora. 
 
Aprendendo com Felipe

A vida de Lucélia Aparecida Rocha Moura, 38 anos, seguia normalmente até que percebeu que seu filho de dois anos, Felipe, não se comunicava, tinha o olhar meio vazio, pedia as coisas só por meio do olhar. Quando descobriu que as características do filho se encaixavam nos sintomas do Transtorno Espectro Autista, ficou desesperada. 
Segundo Lucélia, o cotidiano de uma mãe de autista pode ser muito angustiante. “Como Felipe não se comunicava, eu não sabia onde doía, sem falar nas manias, no apego aos objetos, na relutância em descer em alguns lugares. Ele não saía da rotina e a rotina dele me escravizava. Em dias de angústia, jogava-se no chão, batia-se. Temos que parar tudo e prestar atenção o tempo todo, é exaustão total. Eu abandonava casa e serviço para estimular meu filho”, conta. 

Hoje, o menino, que começou a frequentar a instituição aos três anos e está com 8 anos, é mais tranquilo. Depois que começou a participar da AMA, apresentou melhoras no comportamento e na compreensão. “Para mim, agora, ele é perfeito, só falta falar”, ressalta a mãe. Lucélia também está mais forte e se sente mais preparada, pois lidar com o autismo, conforme ela, é algo que se aprende vivenciando, cada fase é diferente da outra, o que não deixa, em contrapartida, de fazê-la sentir-se meio perdida e assustada, diante do que pode vir. 

Como frequenta a AMA duas vezes por semana, a Lucélia começou a se relacionar com outras mulheres em situação semelhante, e descobriu certo conforto nesse contato: a troca de experiências e informações a faz sentir-se inserida e mais segura frente às lutas diárias. “A companhia das pessoas e a reciclagem são importantes para as crianças e para quem cuida delas”, destaca. Por sorte, nunca vivenciou o preconceito, apesar de Felipe frequentar a escola no período da manhã, sempre acompanhado por uma professora contratada. Ainda assim, afirma que as pessoas precisam conhecer mais o autismo, para que possam aprender a respeitar aqueles que vivem essa realidade. 

Os ensinamentos de Reginaldo

Rosemeire da Silva Santos Cardoso, 42 anos, tem dois filhos: Reginaldo, de sete anos e uma filha de 19 anos. Sua historia começou a se tornar semelhante à de Lucélia, quando seu filho completou dois anos e seis meses: o menino, que até então apresentava um desenvolvimento normal, estava parando de falar. Ela havia começado a trabalhar e matriculou o menino em uma creche. 

Um dia, a instituição a orientou a encaminhar o garoto ao fonoaudiólogo: a psicóloga da creche achava que a regressão na fala era, provavelmente, bloqueio, devido à ausência dela, em função do novo trabalho. Reginaldo foi, então, encaminhado a um psiquiatra, que suspeitou de Transtorno Espectro Autista. O diagnóstico chegou um ano após os primeiros sintomas. Desde 2015, Rosemeire decidiu abandonar o trabalho para dar mais atenção ao filho, acompanhá-lo na escola. “Hoje, não pararia de trabalhar, acho que me precipitei, mas, olhando a questão pelo lado do Reginaldo, penso que foi bom eu ter parado, creio que ele se desenvolveu mais”, esclarece a mãe do menino. 

Antes de frequentar a AMA, o garoto tinha um comportamento difícil, a ponto de a mãe evitar sair com ele. “Ele não se socializava, não tinha como fazê-lo parar. Ele abordava as pessoas, não parava um segundo, eu dificilmente entendia o que ele queria. Agora, o comportamento dele está ótimo, ele não fala, mas já mostra o que quer”, relata a mulher que, quando soube do diagnóstico do filho, teve um grande choque, pois nunca tinha ouvido falar da doença. Nessa jornada, Rosemeire afirma ter crescido muito como pessoa: passou a olhar o outro de forma mais generosa e a compreender melhor o próximo, mas sabe que ainda há muito a aprender. 

Hoje, Reinaldo está na fase pré-silábica do aprendizado, conhece o alfabeto, consegue fazer contas, comporta-se muito bem nos lugares e é mais independente. Consegue se alimentar e tomar banho sozinho. Todas essas conquistas, destacam as mães, são resultado do tratamento oferecido pela AMA.

Camila Goes do Amaral Pozzato, diretora escolar da AMA, pedagoga e especialista em psicopedagogia e em educação especial, auxilia na elaboração e na aplicação dos projetos terapêuticos individuais, dando orientação em questões pedagógicas e, principalmente, atuando na formação contínua da equipe multidisciplinar. “Estou na AMA desde 1998 e aprimoramos nossas discussões e avaliações, garantindo aos alunos continuidade e modificações necessárias para as respostas no longo caminho. Nossa equipe evita ocupar o lugar daquele que tudo sabe, somos flexíveis e nos autorizamos na tentativa de novas propostas, garantindo a plasticidade necessária para responder as complexas demandas dos alunos e de seus familiares”, comenta a pedagoga. 

Trata-se, entretanto, de um trabalho complexo, que exige muito dos profissionais, tornando a rotatividade grande. São 40 horas semanais de dedicação, o que exige dos profissionais envolvidos um cuidado especial com o aspecto emocional, o que nem sempre ocorre. Como muitos que atuam na AMA, Camila começou como voluntária. Ela considera a instituição um local de constante aprendizado e renúncia que, além de proporcionar bens materiais, por meio do trabalho, traz ainda mais recompensa com o privilégio de conviver e respeitar as diferenças.

Camila ressalta que, com o suporte adequado, as pessoas com TEA podem ter uma vida bem semelhante a de qualquer outra. A AMA não substitui a escola regular e, sem o atendimento especializado aliado à escola, essas crianças podem regredir enquanto aguardam em fila de espera. “A AMA é também um centro de diagnóstico, mas sabemos que as classificações são mutáveis, pois refletem somente um retrato instantâneo, necessitando de aperfeiçoamento constante à medida que surgem novas evidências científicas e consensos sociais”, observa a pedagoga. 
 
Compartilhando conhecimento

Dois de abril foi decretado pela ONU o Dia Mundial da Conscientização pelo Autismo e, em Ribeirão Preto, essa data ganha um apelo especial. Em torno dela acontece, há dois anos, a Semana Internacional do Autismo, o TEAbraço, realizado no Shopping Iguatemi de 28 de março a 3 de abril.

O evento nasceu da iniciativa do Dr. Carlos Gadia, diretor associado do Dan Marino Center, Miami Children’s Hospital (Flórida, EUA), em conjunto com a Jujuba – Autismo, Tecnologia e Desenvolvimento, um startup que oferece serviços e materiais pedagógicos para crianças e adolescentes com dificuldade de aprendizado, autismo (TEA) e outras síndromes. Focados na mesma causa, decidiram trazer ao Brasil mais informação e conhecimento sobre o autismo. A Semana tem apoio de instituições representativas e de um comitê executivo formado por profissionais de expressão internacional e por especialistas em TEA. 

Essa história começou com Carolina Felício, fundadora da Jujuba e mãe de Júlia, carinhosamente chamada de Jujuba pela família. Percebendo que a filha tinha um desenvolvimento atípico, procurou profissionais no exterior, buscando o melhor na área de neurologia. 

Há anos convivendo com grandes especialistas e pesquisadores internacionais que a ajudaram sua filha, Carolina sentiu que poderia contribuir com as famílias de pessoas menos favorecidas que lutavam contra a TEA, repassando o conhecimento e a experiência adquirida com suas vivências. “Sempre fui muito grata a Deus pelos resultados que obtive com a Julia fora do Brasil, pois, infelizmente, nossa realidade ainda é muito distante e com valores muito altos comparados aos resultados que podemos esperar. Imagine isso há 16 anos. Uma das vezes em que estava adaptando e preparando o material para a Ju, conversei com meu filho, Marcelo, sobre a ideia da Jujuba. Como ele é hi-tech poderia me ajudar. Queria utilizar o meio virtual para atingir um número maior de pessoas”, conta a mãe de Júlia.

A partir daí, compartilhou a ideia com o Carlos Gadia. Já que, para pôr em prática o projeto precisaria ter consultores altamente qualificados na retaguarda, convidaram profissionais para isso. Foi assim que nasceu a Jujuba, com o objetivo de apresentar às famílias e aos profissionais o que há de novo e funcional em conhecimento, além de desenvolver materiais pedagógicos e tecnológicos que possam proporcionar autonomia e independência para essas crianças e suas famílias, gratuitamente ou com baixo custo, de uma maneira simples e prática, podendo mudar futuros e histórias semelhantes a de Carolina. 

Segundo Carol, como é conhecida em Ribeirão Preto, o primeiro passo a ser dado em auxílio a essas famílias é informar, pois, quando se conhece sobre a jornada que se deve realizar, fica mais fácil achar bons profissionais e confiar neles, buscar informações livros e sites confiáveis. “Hoje, infelizmente, o autismo está virando moda e meio de vida, e tem muitas pessoas se aproveitando das situações das famílias para explorá-las. Há pessoas vendendo carros e outros bens em busca de curas e tratamentos milagrosos”, afirma a diretora da Jujuba. 

A melhor forma de ajudar uma criança, conforme Carolina, é aprender através das intervenções e dar continuidade na rotina do dia a dia: saber o que os profissionais estão aplicando, pedir relatórios, traçar metas, sair com os filhos a passeio, de acordo com a capacidade de cada um. “Aceitação, paciência, fé e amor são os melhores remédios. Temos que tirar as expectativas, aceitar, ter muita paciência e um infinito amor, pois somos abençoados por ter esses anjos em nossas vidas. Diferente do que muitos pensam, temos muito mais o que aprender com eles do que a ensinar”, ressalta Carolina. 

Não é só Carolina que tem aprendido com esses pequenos: empresas, como a Passaredo Linhas Aéreas e o Shopping Iguatemi, acabaram se tornando grandes parceiros e abraçaram a causa. “Realizar o TEAbraço em um shopping facilitou o acesso de toda comunidade ligada indireta ou diretamente ao TEA. Falar desse universo nos voos da Passaredo também foi de extrema importância, pelo alcance das pessoas. A mídia também nos surpreendeu, tivemos um resultado espontâneo muito importante”, comenta a mãe de Júlia, destacando que as frases, os recados e os e-mails que recebem mostram a diferença que a Jujuba e o evento TEAbraço tem feito na vida dos autistas e de suas famílias. 

A comunidade pode fazer sua parte difundindo informações e lutando contra o preconceito: pais trabalharem com seus filhos para que aceitem o diferente; convidarem para festas e para o convívio social as crianças autistas e seus responsáveis. “Precisamos de pessoas assim”, conclui Carolina. 

Texto: Carla Mimessi
Fotos: Júlio Sian

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